Texto publicado no Blog da Revista Espaço Acadêmico, da Universidade Estadual de Maringá:
https://espacoacademico.wordpress.com/2018/07/01/trabalho-identidade-e-movimento/Em entrevista ao jornal espanhol El País, Guilherme Boulos, pré-candidato à presidência pelo PSOL, deu uma resposta que avaliza uma reflexão necessária:
“Nós fizemos um
debate amplo e cuidadoso dentro do MTST. Com os 14 estados em que o MTST está
presente, com as coordenações, com a base do movimento. E a definição pela
nossa candidatura foi consensual. Foi uma decisão do movimento de compor uma
aliança. E o movimento entra por inteiro por entender que estão colocados
desafios políticos. Estamos em uma encruzilhada da história brasileira e não é
possível se omitir. O MTST entendeu que era o momento de ocupar a política
também. De ocupar outros espaços para apresentar outro projeto de sociedade e
de país. Isso não prejudica em nada a autonomia do movimento.”[1]
A
história recente do Brasil, e pode-se, talvez, ampliar para outros países[2],
mostra que os movimentos sindicais (sindicatos e centrais sindicais) foram,
pouco a pouco, perdendo o espaço de representação da classe trabalhadora. Não
se pretende nesse breve texto entrar no mérito das causas desse fenômeno social
e político, que poderiam ser também discutidas, mas refletir sobre as
consequências desse fenômeno.
Uma
frase do Boulos na resposta acima transcrita –“O MTST entendeu que era o momento de ocupar a política também”– ilustra
um ponto fundamental: os movimentos sociais com pautas e reivindicações
específicas, como o MTST ou o MST, dentre outros vários, e as organizações
sociopolíticas de caráter identitário, como as que defendem pautas feministas,
o direito à diversidade de gênero, a luta contra o racismo etc., têm ocupado o
espaço de luta das antigas organizações sindicais.
É
mais provável que um jovem recém-chegado à idade adulta tenha mais interesse em
participar de movimentos identitários ou de lutas específicas do que se associar
às estruturas sindicais que dão suporte e apoio à sua atividade laboral. Ou
seja, um jovem se reconhece mais como negro, mulher ou LGBT do que como um
trabalhador.
Mais
um fato, além da frase do Boulos, que também aponta para esse sentido foi um momento
singular no recente episódio do já famoso discurso de Lula, no dia da sua
prisão em São Bernardo do Campo, SP. Em certo momento da sua fala, ele cita
Manuela d'Ávila, a pré-candidata à presidência pelo PCdoB, e o próprio
Guilherme Boulos como seus virtuais herdeiros políticos. Interessante perceber
aqui que nenhum sindicalista e nenhum nome ligado à luta trabalhista foi citado
pelo ex-presidente Lula, mas dois nomes que saem diretamente da luta dos
movimentos sociais: da UNE e do MTST.
A
fala do ex-presidente Lula, no evento de 7 de abril de 2018, foi: “E quero dizer a vocês, Guilherme e Manuela,
a vocês dois, que para mim é motivo de orgulho pertencer a uma geração, que
está no final dela, ver nascer dois jovens disputando o direito de ser presidente
da República neste país.”[3]
O
fato de ter florescido bastante no Brasil nessas duas últimas décadas, e
continuar a mostrar intenso vigor político, faz dos movimentos sociais com
pautas específicas e identitárias os protagonistas da nova ordem política que
se instala no país. Não é possível mais, para políticos e partidos
tradicionais, principalmente aqueles da esquerda, discutir a sociedade sem
adentrar no mundo das lutas desses movimentos sociais, discutir direitos de
mulheres e LGBTs, discutir a forma como os movimentos de luta por moradia serão
inseridos nos programas de governo etc. Mas, como sua própria existência propõe,
esses movimentos não lutam por mudanças sociais profundas, mas por conquistas
pontuais naquilo que é sua pauta particular.
Foto de Ricardo
Stuckert.
Foto simbólica:
ex-sindicalista que chegou à presidência aponta herdeiros políticos oriundos
dos movimentos sociais em evento político em Curitiba no dia 28 de março de
2018.
Usando
um exemplo do próprio pré-candidato Guilherme Boulos, que é um dos coordenadores
nacionais do MTST, um movimento de luta por moradia, lê-se na orelha da edição
brasileira do livro Sobre a questão da
moradia[4],
de Friedrich Engels, o seguinte comentário de Boulos:
“A bandeira dos
movimentos populares, em defesa da expropriação desses imóveis para destiná-los
aos trabalhadores sem-teto, é levantada por Engels nos textos escritos entre
1872 e 1873. No entanto, ele é categórico em afirmar que o problema da moradia
não poderá ser definitivamente solucionado nos marcos do capitalismo. [...] O
ressurgimento de legiões de trabalhadores sem-teto, após 2008, nos Estados
Unidos e na Europa, além da explosão de ocupações urbanas no Brasil, mostram
que o prognóstico de Engels estava certo. O problema não é de construção de
casas, mas da lógica social”.
Pode-se
também citar a frase emblemática de Malcolm X, do começo de 1963: “O capitalismo costumava ser como uma águia,
mas agora se parece mais com um urubu, sugando o sangue dos povos. Não é
possível haver capitalismo sem racismo”.
Interessante
notar que tanto Boulos, na questão específica da luta por moradia urbana,
quanto Malcolm X, na luta contra o racismo, percebem que a única forma de
superar definitivamente os problemas de suas pautas específicas é a mudança na
forma de organização social, política e econômica. Enquanto viger o sistema
capitalista de produção, as pautas específicas dos movimentos sociais
conquistarão apenas vitórias parciais e voláteis, sempre sujeitas a retrocessos
quando a conjuntura política assim o permitir. A realidade política do Brasil
hoje é um exemplo claro de retrocesso de antigas conquistas sociais.
E
essa conclusão de Boulos e Malcolm X pode ser estendida a todas as outras
pautas específicas. Os direitos da população LGBT, por exemplo, pode também
sofrer retrocessos graves se a composição do novo Congresso Nacional a ser
eleito em 2018 for ainda mais conservadora do que a atual. Os direitos
femininos também sofrerão perdas significativas, como a luta contra a
criminalização do aborto e o direito à licença-maternidade.
Fica
evidente, então, que a questão não está em lutar apenas por determinados
direitos ou conquistas sociais, pois todos poderão ser perdidos na primeira
oportunidade política. A força de todos esses movimentos deveria ser canalizada
para a luta de fundo que permeia todas essas questões, como bem evidenciaram
Boulos e Malcolm X nas suas observações: a luta de classes.
Lutar
pela superação do racismo, pela conquista dos direitos de mulheres e LGBTs, por
mais e melhores moradias, por acesso à terra, por um estado plenamente laico
etc., é lutar pela transformação das condições sociais, políticas e econômicas
do país. Todas as lutas resumem-se na luta de classes, que é uma perspectiva
que foi, de certa forma, abandonada pelos movimentos sociais. E quem sempre
protagonizou essa luta foi o movimento trabalhista, justamente por representar
explicitamente a classe trabalhadora oprimida e explorada pelo capital.
Tem-se,
então, uma contradição colocada: dum lado o crescimento e as conquistas de
movimentos sociais determinados. Doutro lado, a falta de perspectiva de mudança
substancial na organização da sociedade que, mesmo reconhecida como a única
solução definitiva para os problemas específicos, não é o objetivo desses
mesmos movimentos.
Pode-se
concluir, a partir dessas observações, que, não obstante sua força em
conquistar adeptos e suas poucas e parciais vitórias, esses movimentos sociais
têm contribuído pela manutenção dos problemas contra os quais lutam, fazendo,
mesmo cheios de boa intenção, o jogo do capital na reprodução das condições
sociais e econômicas em que se vive. Ou, como diz a citação do próprio Boulos
acima, “o problema não é de construção de
casas, mas da lógica social”.
Por
fim, cabe como tarefa de todos os setores da esquerda a convergência dos
movimentos de lutas específicas, incorporando seus objetivos, num grande
movimento de lutas que priorize a conquista do poder pelos trabalhadores,
evidenciando a realidade social e histórica da luta de classes, tal como propõe
Alexandra Kollontai[5],
que, em meio à luta pelos direitos políticos das mulheres, realça a necessidade
da luta pelo socialismo:
“Em 1917, no dia
23 de fevereiro[6],
no dia internacional das mulheres trabalhadoras, as mulheres saíram
corajosamente às ruas de Petrogrado[7].
O movimento das mulheres foi forte e com um número de militantes que
surpreendeu as forças do czar. Este dia foi memorável na história do movimento
daquele país. As mulheres ergueram a tocha da revolução proletária e
incendiaram todo mundo. A revolução de fevereiro se iniciou a partir deste dia.
O dia das trabalhadoras foi organizado pela primeira vez como parte da campanha
pela igualdade política para as mulheres e da luta pelo socialismo.”
[1] A entrevista
completa está aqui:
https://brasil.elpais.com/brasil/2018/04/29/politica/1525035482_181891.html
[2] Ver Estratégias para uma esquerda racional, de Eric J. Hobsbawm, Paz e
Terra, 2012.
[3] O discurso completo está
disponível na página do Brasil de Fato:
https://www.brasildefato.com.br/2018/04/07/leia-a-integra-do-discurso-historico-de-lula-em-sao-bernardo/
[4] Ver Sobre a questão da moradia, de Friedrich Engels, Boitempo, 2015.
[5] Ver O dia das mulheres, de Alexandra Kollontai, publicado em Moscou em
1920.
[6] O dia 23 de fevereiro de 1917 no
antigo calendário juliano, usado à época na Rússia, equivale ao dia 8 de março
no calendário gregoriano, usado hoje por quase todos os países.
[7] A cidade de Petrogrado, na
Rússia, hoje chamada de São Petersburgo, era a capital do país em 1917.