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sábado, 24 de fevereiro de 2018

Divaldo, a liberdade e a censura à crítica

“A crítica se torna, assim, elemento básico da filosofia e da prática espírita. Mas é evidente que deve ser exercida por pessoas que tenham condições de cultura e bom-senso para criticar”.

“Sem crítica não há correção de erros, não há renovação de conceitos nem abertura de perspectiva para evolução”.

J. Herculano Pires

A filosofia moderna, surgida no bojo das transformações econômicas e sociais do período da renascença, legou-nos valores e saberes que se tornaram referências ao pensamento e à prática contemporâneos.

Uma das mais importantes mudanças na postura desse homem moderno, renascentista, em relação ao conhecimento foi o questionamento do argumento de autoridade, muito comum em épocas anteriores. Descartes, marco imperativo desse momento, propõe a dúvida a tudo e a todos como etapa necessária a qualquer tentativa de construção gnosiológica. Mas são os pensadores iluministas que concluirão esse caminho árduo propondo, a partir dessa nova postura e centrando todo o esforço nos valores humanos, uma sociedade mais livre, laica e plural, inaugurando então o mundo contemporâneo.

Faço essa introdução breve para comentar o texto do médium baiano Divaldo Franco publicado no Jornal A Tarde, de Salvador, BA, no dia 22 de fevereiro de 2018. O texto trata, evidentemente, das muitas críticas recebidas pelo autor após sua confusa resposta a um jovem, que o perguntou sobre “ideologia de gênero”, num evento ocorrido em Goiânia, GO, no dia 13 de fevereiro de 2018.

O texto de Divaldo Franco publicado no Jornal A Tarde está aqui:
http://www.febnet.org.br/blog/geral/colunistas/artigos-espiritas/liberdade-de-consciencia/

Abstive-me de comentar o conteúdo de sua fala no referido evento, e assim pretendo continuar fazendo, por conta da inesperada associação, feita por Divaldo Franco, de questões políticas ao tema proposto pelo jovem. O que aqui faço é apenas comentar a contrarreação do famoso médium às críticas recebidas.

O autor começa seu texto colocando-se como vítima dos “cerceadores da liberdade dos outros”, sendo os “outros” identificados como aqueles que discordam de seu pensamento (“quando as ideias apresentadas não obedecem aos seus padrões de pensamento e de conduta”).

Retornei às críticas feitas às ideias do médium, e que estão disponíveis na rede virtual de informações, e não consegui identificar a qual ele se refere, uma vez que nenhuma das que tive acesso propõe calá-lo ou cercear sua liberdade de opinião. Ou o autor se refere a alguma crítica bem específica que não vi ou li, ou parece que confundiu alhos com bugalhos. Afinal, é preciso, no trato dialógico, não confundir crítica com censura.

Adiante, acusa seus críticos de não dialogar com ideias, mas com insultos de ordem pessoal, e de perseguir “os idealistas”, grupo ao qual se inclui e, obviamente, exclui seus críticos. Aqui também vale a ressalva que nas reações mais divulgadas à sua fala não houve ataque pessoal à figura do indivíduo Divaldo Franco, mas críticas contundentes ao seu pensamento. Parece que o médium não leu ou viu as críticas recebidas, tornando sua queixa infundada.

No mais, é no texto proposto como contrarreação que o autor vocifera ad hominem, reagindo de forma pessoal contra seus críticos, usando adjetivos à mancheia: rudes, agressivos, insanos, intimidadores, arrogantes, temerários, perseguidores, invejosos e despeitados. Talvez tenha esquecido um ou outro, diante da sua profusão.

Acho que Divaldo perdeu uma ótima oportunidade de argumentar sobre as críticas recebidas, preferindo, em vez disso, atacar aqueles que com ele não concordam. Mas isso é um direito seu.

E é também um direito seu inalienável, e disso ninguém discorda, escolher um lado político e defender publicamente essa opção; nutrir determinados valores morais e fazer deles sua pregação; crer e praticar sua fé livremente; pensar e expressar seu pensamento.

O problema é achar que seu pensamento não deve e não pode receber críticas, considerando-se um “grande líder perseguido” sempre que alguém argumentar contra suas ideias. Esse tipo de argumento é anterior à luz do modernismo e do iluminismo filosóficos, e retoma a ideia medieval da autoridade do “líder” ou do “idealista” como verdade inquestionável. A crítica também é um direito inalienável e compõe o quadro do direito às liberdades de consciência e de expressão, o que parece ter esquecido o médium em seu texto.

E, para ilustrar sua defesa, o autor cita um pensamento atribuído a Voltaire, não se apercebendo, porém, que a citação inicia afirmando o desacordo entre as ideias, portanto sem dispensar a crítica, defende a liberdade de expressão. É preciso estar pronto para receber críticas sempre que se expõem ideias, sob o risco de parecer inapto ao diálogo aberto e maduro.

Não se pode olvidar que as adjetivações pessoais na troca de ideias, tão profícua no texto do famoso baiano, é uma vã tentativa de diminuir seus interlocutores, impondo-se como autoridade e liderança a ser seguida, objetivando calar o oponente de ideias. Isso sim pode-se chamar de censura.

Aliás, Divaldo poderia ouvir mais os jovens com quem estava no referido evento, pois isso nos ensinam de forma simples: “não sabe brincar, não desce ao play”.

sábado, 17 de fevereiro de 2018

Divaldo, a "ideologia de gênero" e a reação progressista

Num evento espírita promovido pela Federação Espírita de Goiás (FEEGO), Divaldo Franco, o famoso médium e orador espírita baiano, participou no dia 13/02/2018 de uma sessão de perguntas e respostas com jovens. No referido evento, um jovem pergunta a Divaldo:

“O que dizer sobre a ‘ideologia de gênero’?”

E eis a resposta, um tanto quanto confusa, mas é a resposta:

“É um momento de alucinação psicológica da sociedade.
[...]
Haroldo disse, em síntese, que se trata de um momento muito grave da cultura social da Terra e que é, naturalmente, algo que deveremos examinar em profundidade, mesmo porque nós vamos olhar a criança, graças à sua anatomia, como sendo o tipo ideal. E a criança nesse período não tem discernimento sobre o sexo. A tese é profundamente comunista, e ela foi lançada por Marx, sob outras condições. Que a melhor maneira de submeter um povo não era escravizá-lo economicamente, era escravizá-lo moralmente, como nós vemos através de vários recursos que têm sido aplicados no Brasil nos últimos 9 anos, 10, em que o poder central tem feito todo esforço para tornar-se o patrão de uma sociedade em plena miséria econômica e moral. Porque os exemplos de algumas dessas personalidades são tão aviltantes e tão agressivos que se constituíram legais e, porém, nunca morais. Todas essas manifestações que estamos vendo, graças à “República de Curitiba”, cujo presidente é o doutor Moro, e deve ser o desnudar da hipocrisia e da criminalidade. Aliás, o evangelho recomenda que não deveremos provocar o escândalo, e o nosso venerando juiz não provocou escândalo, atendeu a uma denúncia muito singela e, no entanto, levantou o véu que ocultava crimes hediondos, profundos, desvios de dinheiro que poderia acabar no Brasil com a tuberculose, com as enfermidades que vêm atacando recentemente, poderia educar toda a população e dar-lhe o que a nossa Constituição exige: trabalho, repouso, dignidade, cidadania. Mas, determinados comportamentos de alguns do passado muito próximo estabeleceram o marxismo disfarçado e a corrupção sob qualquer aspecto como princípio ético. A teoria de gênero é para criar na criança, no futuro cidadão, a ausência de qualquer princípio moral. Uma criança não sabe discernir, somente tem curiosidade. No mesmo banheiro, um menino e uma menina irão olhar-se biologicamente, sorrir e perguntar o de que se tratava aquele aparelho genésico que é desconhecido. E então nós defendemos repudiar de imediato e apelar para aqueles em quem nós votamos, somos responsáveis, e gritar para eles que somos contra, totalmente contra essa imoralidade ímpar. Vão me perdoar uma blasfêmia agora para adultos, os espíritas somos muito omissos. No nome falso e na capa da humildade achamos que tudo está bem, mas nem tudo está bem. É necessário que nós tenhamos voz. O apóstolo Paulo jamais silenciou ante o crime e a imoralidade. E Jesus muito menos, ele deu a César o que era de César, mas não deixou de dar a Deus o que é de Deus. Muitas aberrações nós silenciamos, afinal, disfarçadamente, vivemos numa república democrática. Os nossos representantes lá chegaram pelo nosso voto. Já está na hora de acabar de votar por uma alpercata japonesa, já está na hora de deixar de votar por causa do emprego que vai dar ao nosso filho, pensarmos na comunidade, uma comunidade justa não faltará emprego para todos, uma sociedade justa de homens de bem, de mulheres dignas, naturalmente estabelecerá as leis de justiça e de equidade, então nós evitaremos essas aberrações: o aborto provocado, esse crime hediondo, que está sendo tentado tornar-se legal. Por mais que seja legal, nunca será moral. Não somos contra quem aborta por essa ou aquela razão, falamos em tese: matar é crime, seja qual for a aparente justificativa. E agora, com a tese de gênero, estamos indiferentes, e de um momento para outro, pela madrugada, nossos dignos representantes adotam. Falávamos ontem a respeito de cartilhas do Ministério da Educação depravadas, para corromper as crianças, e que as escolas estão devolvendo ao Ministério. Que Ministério da Educação é esse? Que estabeleça fatos. Deu uma indignidade muito grande. Os pais devem vigiar os livros de seus filhos e, naturalmente, recusarem. Nós temos o direito de recusar, nós temos o dever de recusar. Victor Hugo já nos falava há mais de 150 anos: ‘o grande pecado é a omissão’. E Kardec nos falou que não era nobre apenas não fazer o mal, porque não fazer o bem é um crime muito grande. E então precisamos ser mais audaciosos, espíritas definidos, termos opinião. A doutrina nos ensina, e para os jovens, eu direi que há uma ética, liberdade, o sexo é livre, livre sim, mas ele não tem a liberdade de indignificar a sociedade. Poderemos sim exercer o sexo, é uma função do corpo e também da alma, mas com respeito e com a presença do amor. Portanto, a teoria de gênero, jamais!”


Um grupo de 65 espíritas, autodenominados progressistas, elaborou o seguinte manifesto, em reação às esdrúxulas declarações de Divaldo:

"Espíritas progressistas respondem à entrevista coletiva de Divaldo Franco e Haroldo Dutra no congresso de Goiás:

Espíritas que somos, os abaixo-assinados, tornamos pública a nossa desaprovação a diversas opiniões que foram expostas no vídeo que circulou essa semana nas redes sociais, e que depois foi retirado do Youtube. Declaramos que elas não nos representam e não representam o espiritismo, pois são apenas opiniões pessoais de seus autores, e que, em nosso entender, carecem de fundamento teórico e científico.

Aliás, médiuns e oradores não têm autoridade para falar em nome do espiritismo. Ninguém tem essa autoridade, nem mesmo instituições federativas. O espiritismo é uma ideia livre, cuja maior referência é Kardec, mas cujos livros também não podem ser citados como bíblia. Para manifestarmos ideias e posições do ponto de vista espírita, segundo a própria metodologia proposta por Kardec, temos de dialogar com a ciência de nosso tempo, usar argumentos racionais e adotar de preferência posturas que estejam de acordo com os princípios básicos da ética espírita, que são os da liberdade de consciência, amor ao próximo, fraternidade, entre outros.

O movimento espírita brasileiro está longe da unanimidade em todos os temas, sobretudo os que se referem a questões contemporâneas e, por isso, é importante delimitar as posições, para deixarmos claro que declarações como as que foram feitas neste vídeo não representam o espiritismo.

Dessa forma, rebatemos alguns pontos da referida entrevista:

1) Divaldo referiu-se à República de Curitiba e a seu suposto “presidente”, Sérgio Moro. Não existe uma República de Curitiba, pois segundo nossa Constituição só há uma República a ser reconhecida em nosso território, e é a República Federativa do Brasil. E a referência a um juiz federal de primeiro grau como o Presidente desta acintosa República é um grave desrespeito ao Estado, à nação brasileira, atribuindo a tal república poderes inexistentes em nossa Constituição. Além dessa nociva postura marcadamente messiânica e de culto à personalidade, pode dar a entender que o restante do povo brasileiro não presta e que não há pessoas boas espalhadas pelo Brasil dando o melhor de si.

2) Divaldo chama esse mesmo juiz de “venerando” – o que é altamente questionável, dadas as críticas de grandes juristas nacionais e internacionais à parcialidade desse juiz e a seus atos de ilegalidade, que feriram a Constituição, e às notícias que correm na mídia de seu conluio com determinados segmentos e partidos.

3) Divaldo assume uma postura claramente partidária, contrária ao PT – o que é de seu pleno direito, mas nunca em nome do espiritismo – fazendo, porém, uma crítica rasa, com uma miscelânea conceitual, chamando o governo desse partido de marxista e assumindo um discurso próprio da polarização extremista, manipulada e sem consistência que invade nossas redes sociais e nossa vida política, contribuindo para os momentos de incertezas e de medos em que vivemos.

4) Há uma fala extremamente problemática que se refere à chamada “ideologia de gênero”. Não existe “ideologia de gênero” – este é um termo criado por setores fundamentalistas da Igreja Católica e depois adotado pelas Igrejas Evangélicas. Existe sim uma área de pesquisa no mundo que se chama “Estudos de Gênero” – que teve influência de Michel Foucault, Simone de Beauvoir e Judith Buttler. Os “Estudos de Gênero” se dedicam a procurar entender como se constitui a feminilidade e a masculinidade do ponto de vista social, se debruçam sobre questões de orientação sexual, hetero, homo, transsexualidade – ou seja, todos fenômenos humanos, que estão diariamente diante de nossos olhos. Podemos concordar com algumas dessas conclusões, discordar de outras, deixar em suspenso outras tantas. Esse olhar é muito recente na história e ainda estamos apalpando questões profundas e complexas – e em nosso ponto de vista espírita, não é possível ter plena compreensão delas sem a chave da reencarnação. Uma abordagem puramente materialista jamais vai dar conta do pleno entendimento do psiquismo humano. Mas estamos muito longe de ter gente reencarnacionista competente, fazendo pesquisa séria, para dialogar com pesquisadores com abordagens meramente sociológicas ou psicológicas. Então, nós espíritas, não temos ainda melhores respostas que os outros e não podemos, por cautela, seguir a cartilha dos setores conservadores mais radicais de generalizar esses estudos sob o termo, usado aqui pejorativamente, de ideologia, para desqualificá-los como “imoralidade ímpar”. Parece-nos que uma dose de humildade científica, prudência filosófica e bom-senso faria bem a todos nesse ponto, especialmente quando o domínio sobre os corpos e a sexualidade sempre foi um ponto central para as religiões ocidentais.

5) Divaldo revela também completo desconhecimento dessa área de estudos de gênero, alinhando-a ao marxismo e ao comunismo. As grandes lideranças desses estudos estão nos Estados Unidos e na Europa. Aliás, os estudiosos desse tema encontram-se em diversas correntes de pensamento, desde marxistas até pós-modernos de diferentes matizes e até liberais. Ao fazer isso, mais uma vez, mostra a adesão a um discurso pronto, midiático, que ressoa nos setores evangélicos e católicos mais radicais, que primam por taxar qualquer ideia ou debate que lhes desagrade com o termo “comunista” – um grande espantalho generalizante, simplista e esvaziado de sentido, mas que tem sido eficaz, ao longo dos tempos, para dar forma a medos sociais e, assim, orientar o ódio e o ressentimento das pessoas contra certos alvos.

Por fim, deixamos aqui as seguintes afirmações:

• Nenhum médium ou orador pode falar em nome de todos os espíritas ou em nome do espiritismo. Isso é, por si só, desonestidade intelectual;

• Quando um espírita, sobretudo se tem influência sobre a comunidade, manifesta uma ideia ou uma opinião, tem por dever se informar sobre os temas de que está falando, usar referências confiáveis e estar em consonância com a lógica, com a ciência e com o bom senso.

• Deve também, preferencialmente, defender os direitos dos mais fragilizados socialmente, no caso, as mulheres, as crianças, os membros da comunidade LGBT+, que são objeto dessas discussões dos estudos de gênero, justamente por estarem vulneráveis a todo tipo de violência e desrespeito em nossa sociedade, além dos negros e negras, as juventudes periféricas e as pessoas com deficiência.

• Não deve alimentar discursos de ódio partidário e nem medidas punitivas contra quem quer que seja: nossa bandeira é a da educação, da fraternidade entre todos e da paz, comprometidos com a democracia, a justiça social e a regeneração da sociedade."

quarta-feira, 6 de julho de 2016

Espiritismo e política - II

Minha experiência em casas espíritas, e já é uma longa experiência, contada em décadas e muitas casas diferentes, mostra que o tema política costuma não ser muito bem vindo em palestras e estudos internos. O que é uma pena.

Há duas justificativas mais comuns para essa proibição implícita: uma é que o espiritismo não deve imiscuir-se em política partidária por pretender um discurso universal, portanto não deve tratar de política em suas atividades; outra é a crença que a discussão política leva à dissensão, quebrando a harmonia necessária às atividades da casa ou do grupo, focadas no atendimento a carências diversas.

Bem, penso que as duas justificativas são insustentáveis e ilustram um comportamento mais prejudicial do que construtivo. Mas as enfrentemos.

Sem dúvida, o maior objetivo das propostas espíritas é a transformação interior do homem, que significa a transformação de seus sentimentos, de suas atitudes e de seus pensamentos. Lutar contra o orgulho e o egoísmo que impedem nosso crescimento como indivíduos e cidadãos resume bem a proposta de Jesus transcrita nas obras kardecistas.

Mas como realizar a transformação pessoal sem a necessária convivência com o outro? Afinal, é justamente na convivência em sociedade que conseguimos expressar nossos sentimentos, praticar nossas atitudes e burilar nossos pensamentos. A comparação do homem em sociedade com o lapidar da pedra em contato com outras é bem ilustrativo do processo de transformação interior do indivíduo: só conseguimos melhorar a partir da convivência, do contato, do conflito com o outro. Ou, de outra forma, só mudamos a partir da experiência social com o outro. Isso significa que toda meditação, oração e estudo de nada servirão se não conseguirem mudar nossas posturas com o outro.

Nossas experiências sociais iniciam-se em família e transbordam para grupos cada vez maiores no nosso processo de amadurecimento. E em todos esses grupos precisamos colocar em prática nossa opção de ser espírita: empatia, caridade, compreensão e respeito. E saber viver em grupos sociais, buscando o melhor para nós e para todos é o que se pode traduzir muito bem como política. Portanto, fazemos política o tempo todo em nossas relações sociais. Fazemos política na família, no condomínio, na escola, no trabalho, na casa espírita, em qualquer lugar, pois fazer política é justamente buscar conviver bem nos grupos sociais a que pertencemos. E por que não podemos estender essa busca pela melhoria de nossos grupos relacionais à dimensão do nosso bairro, da nossa cidade ou da nossa nação?

Será que discutir nossas posturas em família causa dissensão? Se não, por que discutir nossas posturas na cidade causariam? Viver na cidade é ser cidadão e a casa espírita precisa discutir a cidadania. E isso é política da melhor qualidade! O espaço de discussão do espírita é a casa espírita por excelência e ela não se pode furtar a esse papel. Educar e orientar o cidadão são auxiliá-lo em seu processo de transformação pessoal, é ser espírita na melhor acepção da palavra.

Limitar a discussão política à discussão da política partidária é reduzir o papel da política em nossas vidas. Isso não quer dizer que não se pode também enfrentar esse tema, haja vista a nossa necessidade de dialogar sobre as questões da cidade, e que essas questões podem resvalar, algumas vezes, em questões partidárias. Mas outra coisa bem diferente da discussão partidária, e de candidaturas para cargos eletivos, é a discussão sobre ideologias e suas formas de enfrentamento dos problemas da cidade. Penso que o diálogo ideológico é essencial até para o bom entendimento dos discursos políticos, das notícias e dos fatos cotidianos que nos alcançam. E dialogar sobre ideologias e suas formas de entender o mundo não é doutrinar, é educar, portanto crescermos como indivíduos e melhor nos preparar para a atuação em sociedade.

Quanto à questão da manutenção da harmonia do ambiente da casa espírita como justificativa para a vedação do diálogo político interno, penso que são tantas as questões que causam desarmonia entre pessoas, que não seria esse o problema. Em verdade, não é o tema política que causa desarmonia, mas a situação emocional e mental dos indivíduos, pois nos desarmonizamos em qualquer situação que toque em ferida aberta ou melindre guardado. Se o tema em questão leva à desarmonia, é uma ótima oportunidade para o trabalho na casa espírita, pois temos a oportunidade de enfrentar um ponto que mexe na nossa paz e na nossa tranquilidade. Ora, não é esse justamente o papel da casa espírita? Deixaremos então de atender indivíduos, encarnados ou não, que exibem comportamento desajustado porque pode causar desarmonia? Como se vê, discutir política deveria ser como dialogar sobre qualquer questão, incluindo nossos problemas mais incômodos, como aqueles que nos tiram do sério e expõem nossas severas dificuldades emocionais e relacionais.

Sei que esse tema ainda é grande tabu nas casas espíritas, mas é preciso enfrentá-lo para conseguirmos superar esse obstáculo e tratar a política como parte da nossa formação integral.

terça-feira, 14 de junho de 2016

Espiritismo e política - I

Primeiramente, devo reconhecer o valioso esforço pessoal de alguns espíritas na consecução de determinados objetivos de assistência e promoção sociais. A criação de obras sociais, algumas grandiosas, que visam a auxiliar indivíduos e famílias em situação de risco social é algo a ser enaltecido e louvado.

Esses indivíduos, e conheço alguns muito proximamente, grosso modo, possuem caráter exemplar e vontade carregada de energia criativa. Mas há outra característica que gostaria de aqui destacar: o empreendedorismo. Essas pessoas, que dedicam parte de sua vida – e alguns toda a sua vida! – a amparar, proteger e cuidar de outras pessoas de forma voluntária, foram capazes de construir escolas, hospitais, asilos, creches e outros instrumentos, por meio da liderança de grupos de indivíduos para a realização dum sonho. Enxergaram um objetivo, agregaram outras pessoas para compartilhar metas, construíram mecanismos para a obtenção dos recursos necessários, lideraram a execução das tarefas e empenharam muito esforço no acompanhamento dessa realização.

Mostraram, com os resultados alcançados, que, além de indivíduos com um imenso coração, são administradores de qualidade e ótimos gestores de projetos.

Mas, e sobre os resultados? Quantas pessoas ou famílias são atendidas numa instituição qualquer de um desses casos de sucesso de acolhimento social? Bem, eu conheço algumas obras grandiosas, e a quantidade de pessoas atendidas chega à casa dos milhares. Um sucesso, se analisado apenas pelo resultado objetivo, pois aos atendidos restou a oportunidade ofertada de mitigar uma difícil situação social ou pessoal.

Não obstante o sucesso no atendimento a tantos indivíduos na mais grandiosa das obras sociais que se possa citar, a quantidade de pessoas atingidas sequer arranha o tamanho do problema social em que vivemos, haja vista a desigualdade social extrema, a precariedade crônica no atendimento à saúde e à educação e ao drama da renda miserável a que se submete a maioria da população.

Posso aqui citar a frase atribuída à madre Tereza de Calcutá:

“Por vezes sentimos que aquilo que fazemos não é senão uma gota de água no mar. Mas o mar seria menor se lhe faltasse uma gota.”

Sim, seria menor, mas numa proporção insignificante diante da imensidão do problema. O que me leva a pensar que as características já relatadas desses indivíduos empreendedores seriam mais bem aproveitadas se canalizadas para a busca de soluções em escala mais apropriada à dimensão do problema. Ou seja, em vez de construir uma escola ou um hospital, gastando esforços, capacidades e recursos valiosos, onde serão atendidas apenas poucas pessoas, por que não construir muitas escolas e hospitais? Ou administrar melhor os que existem? Em vez de mitigar o problema de algumas famílias, por que não os buscar solucionar para muitas famílias?

De que falo? Ora, de política! Esses indivíduos seriam o crème de la crème, o melhor que se poderia esperar dum político num país tão cheio de carências sociais e morais. Pensem num desses espíritas que construíram uma obra social grandiosa, que atendem a um sem-número de famílias. Agora, imaginem-no prefeito de sua cidade, governador de seu estado ou presidente desse país, propondo e executando políticas sociais consistentes. Ou mesmo vereador, deputado ou senador, legislando sobre os graves problemas que enfrentamos.

Teríamos então homens de caráter e coração bondoso, com visão social aguçada e forte espírito empreendedor, lutando para superar nossos abismos sociais e vencer nossas chagas morais. Penso que a política seria seu local de trabalho por excelência. Afinal, são talentos. E talentos que precisam ser direcionados para o melhor resultado.

A contradita se poderia fazer por meio da criminalização da atividade política, como sói acontecer, jogando todos os seus partícipes na mesma lama suja que hoje enxergamos. Mas, nesse ponto, tem-se outro problema: a política não é uma forma de resolver as questões da sociedade, é a única forma. E se não nos esforçarmos para mudar o perfil de nossos representantes políticos, nossos problemas jamais serão resolvidos a contento. Já não seria, então, a hora de olharmos a política de forma mais madura? Será que a crise moral e política que hoje percebemos não seria capaz de mudar nossa forma de participação? Afinal, se os políticos hoje nos envergonham, lá estão porque foram votados não por uma entidade mágica, mas por nós eleitores.

Aqui falo para espíritas, mas o mesmo se poderia dizer de qualquer outro segmento social com características similares: probidade comprovada, desejo de fazer o bem e forte espírito empreendedor. E isso para deixar claro que não apoio nenhum espírita por ser espírita, mas homens e mulheres que se enquadrem nessas características.

terça-feira, 11 de março de 2014

A ciência, o espiritismo e a FEB

Eu tento. E tento de boa fé. Sério, mas é difícil! Foi assim: vi o anúncio dum evento na FEB, a Federação Espírita Brasileira, marcado para a noite do dia 10/03/2014, com o instigante tema “A física e o espiritismo, paralelo e convergências – A ciência e a ciência espírita”. Como é um tema que muito me interessa, decidi assistir-lhe. Cheguei cedo, cerca de uma hora antes da apresentação, e despendi o tempo na livraria para inteirar-me das novidades literárias.

O assunto é árduo, principalmente quando abordado para uma plateia sem maiores conhecimentos de filosofia da ciência, teoria do conhecimento e, claro, rudimentos de física. O palestrante teria pela frente responsabilidades em relação aos público e tema.

Para minha surpresa, o palestrante que falaria da física e suas relações com o espiritismo era um... médico! Bem, tinha esperanças que fosse alguém interessado e ilustrado no que seria tratado. Ouvi-lo-ia então, sem preconceitos.

O cardiologista começou por tentar definir algumas questões de filosofia da ciência e teoria do conhecimento, objetivando o nivelamento do público ao que abordaria, já que necessárias, como explicara. Definições de verdade, certeza, crença e conhecimento saíam com superficialidade e pouco cuidado, apresentando já as credenciais do que eu enfrentaria naquela noite. Mas quando resolveu caracterizar a ciência “ortodoxa”, qualquer esperança de bom senso se esvaiu imediatamente e meu interesse seguiu o mesmo rumo.

Uma digressão: sempre que ouço alguém falar de ciência ortodoxa, um sinal de alerta é imediatamente soado: estou diante dum discurso bobo, pueril e pouco elaborado. Não existe uma ciência ortodoxa e outra heterodoxa, existe ciência. Assim, quando se quer dar um ar científico a um discurso infundado, diz-se que é uma ciência, mas não ortodoxa, como o fazem a astrologia, a homeopatia, a psicanálise, a teologia, o espiritismo e outras tantas.

Pobre ciência, violentada num leito de Procusto, adequando-se às necessidades das pregações inconsequentes. Mas não sou Teseu, e resolvi apenas ouvir, apesar de angustiado pelo sofrimento atroz imputado à indefesa ciência. Indefesa porque o público, em sua maioria ignorante de seus princípios teóricos, cria estar diante de novidades que a aproximavam daquelas bobagens que se seguiam numa verborragia torturante. E eu quase podia ouvir os urros da vítima sendo esticada e amputada em partes essenciais naquele leito de horror.

E eu, na balbúrdia da minha mente, não obstante o silêncio exterior, refutava cada argumento, cada frase, relembrando as já distantes aulas introdutórias de epistemologia na academia. Como aquilo poderia ser tratado com seriedade por pessoas com um mínimo de entendimento filosófico? Até um aluno dos semestres iniciais de filosofia seria capaz de perceber os absurdos conceituais.

Após destratar a filosofia e a história, o capataz resolveu também deitar a física no mesmo leito. E eu assistia àquela sessão de tortura silente, incapaz de qualquer manifestação. Fui um covarde, assumo, pois estava muito próximo ao patíbulo para ousar intervir. E, enquanto me contorcia diante daquela tragédia, percebia que o público deliciava-se com as palavras, sem perceber a dor do conhecimento, aceitando-as como nova revelação, como o fazem todos que ignoram algo e não foram educados para a reflexão crítica.

Terminou como começou e um vazio preencheu meus sentimentos. Senti-me como um parente de vítima perseguida num anfiteatro romano: enquanto todos aplaudiam, eu sofria. Fui-me embora, na noite fria da capital federal, num ônibus vazio. E eu cheio de nada. Pouco a pouco percebi a mente retomando a reflexão, depois daquele espasmo intelectual, e lembrei-me duma frase que usara noutros tempos sem parcimônia: olha no que deu o espiritismo...

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Conhecendo a FEB

Estou em Brasília. E não resisti à curiosidade de conhecer a FEB. Ontem tomei coragem, peguei um ônibus na W3 e fui à L2 para encontrar com aquilo que considero o que há de pior no movimento espírita. É verdade, não fui de coração aberto: fui cheio de prevenções. Mas curioso, confesso. Fiquei impressionado com a estrutura física: a FEB é imensa! Conheci cada construção interna. No Cenáculo conheci a bela livraria, o imenso salão doutrinário, o museu quase inteiramente dedicado à Chico Xavier, inclusive com um boneco de cera sentado à mesa na entrada que me pareceu quase real, e alguns documentos expostos que me pareceram interessantíssimos, assinados por Kardec (um estava assinado assim: HLD Rivail, Allan Kardec). Tirei fotos. Depois fui ao prédio da Unificação, onde funciona a administração e o salão de reuniões do CFN. Tudo muito bonito. Ali também funciona a Biblioteca de Obras Raras. A parte mais interessante de todo o conjunto! Pude passear pelas obras e senti-me premiado ao manusear um autêntico Le Livre des Esprits, primeira edição. Claro, minha mulher fotografou-me nesse momento ao perceber a cara de menino feliz. E ela me fez tomar um passe (argh!!) no atendimento que acontecia naquele horário. Pegamos a programação de atividades e fomos embora com o compromisso de retornarmos no dia seguinte (hoje) para assistir à primeira palestra pública de 2014.

Chegamos hoje à FEB uns 20 minutos antes do início da palestra. Ainda quase ninguém. Passeei pela livraria e retornei aos documentos raros expostos na entrada do auditório. Entramos e sentamos. Ainda vazio. Faltam agora 5 minutos para o horário previsto e um homem e duas mulheres sobem ao palco e sentam à mesa. A mulher do centro faz uma prece (muito chata) e passa a palavra à outra mulher à sua esquerda. Essa lê um capítulo de Pão Nosso, de Emmanuel, e tece alguns comentários. Achei-os insuportáveis e impertinentes. E mais: desfiguraram aquilo que fora proposto como análise evangélica na obra lida. Vá lá, eu aceito que tudo não passava de prevenção minha, afinal era uma palestra na FEB. O homem então começa a palestrar e sua primeira frase foi: "Daremos hoje continuidade ao estudo da obra de Roustaing, Os Quatro Evangelhos". Confesso que minha vontade foi levantar e ir embora naquele momento, mas pensei: "na França, como os franceses" e educadamente fiquei quieto a ouvir um chavascal de impropriedades proferidas daquele púlpito "espírita". Quando ele citou o Jesus agênere, quase tive uma síncope nervosa e minha mulher me olhava a sorrir. Ao terminar a palestra, todos seguiram para a fila do passe, menos eu, pois saí direto à livraria para reler a RE 1866 e rever a opinião de Kardec sobre a polêmica obra rustenista, enquanto minha mulher tomava a hóst..., ops, o passe.

Ao sair, fui refletindo no ônibus sobre o papel da FEB, não para o movimento espírita, mas para o espiritismo e sua divulgação. Afinal, é isso mesmo que se pode esperar daquela que se autoproclama a Casa-Máter do Espiritismo?

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Crítica à obra "A crise da morte" de Bozzano

Segue brevíssima análise do aspecto metodológico da obra A crise da morte de Bozzano. Esse pequeno trabalho apresentei numa palestra no Teatro Espírita Leopoldo Machado (Telma), em Salvador, onde militava o saudoso Carlos Bernardo Loureiro. A análise é mais extensa do que a aqui apresentada, mas busquei reduzir sobremaneira os textos das citações e dos meus comentários, para que ficasse de mais fácil leitura.

1. Metodologia proposta: análise comparada.
“[...] material que se presta a ser examinado e analisado com fundamento na sua consistência intrínseca, que lhe confere um grau notável de probabilidade, da mesma forma que as narrações dos exploradores africanos se prestam a ser analisadas e verificadas, com fundamento em suas concordâncias..."

A comparação entre o material mediúnico analisado e "as narrações dos exploradores africanos" é estranha: é óbvio que o próprio autor poderia ir à África e retornar com suas próprias observações, atestando ou não aquilo que foi relatado anteriormente como verdadeiro ou falso. O mesmo não se poderia dizer da morte...

2. Ainda a metodologia: o ônus da prova.
“Ninguém pode afirmar ou negar a priori. O fato de negar ou de lançar ao ridículo as ‘revelações transcendentais’ equivale a pretender conhecer, de modo certo, o mundo espiritual, o que constitui presunção indigna de um céptico que raciocine...”

Da mesma forma que se pode afirmar sem provas, apenas amparado por um discurso pseudocientífico, poder-se-ia negar sem qualquer constrangimento. Mais há ainda algo mais sério nessa afirmação que vilipendia uma premissa científica: o ônus da prova é de quem propõe a hipótese. E isso, definitivamente, não foi feito pelo autor...

3. Metodologia: os médiuns.
“Se se chegasse a comprovar que um dos médiuns empregados ignorava absolutamente as teorias espíritas (o que excluiria a hipótese de uma colaboração subconsciente), seria conveniente experimentar com outros médiuns, para se obterem informações sobre o mesmo assunto; e assim por diante, sem que se estabelecessem relações entre eles.”

Médiuns que desconhecessem "as teorias espíritas" e que não tivessem relações entre si. Perfeito! Mas isso foi feito? Como são os exemplos trazidos por Bozzano?

4. Metodologia: como foi na prática.

“A coisa é teoricamente possível, mas de realização difícil, porque é raro que um só pesquisador chegue a encontrar numerosos médiuns, de maneira a poder levar a efeito uma empresa formidável como essa. Mais prático era, pois, aproveitar o material imenso que se acumulou [...], relativamente às ‘revelações transcendentais’, para empreender uma seleção severa de todas as peças, classificando-as, analisando-as, comparando-as, tendo o cuidado de colher informações sobre os conhecimentos especiais de cada médium, no tocante às doutrinas espíritas.”

Bem, aqui ele já começa a se desviar de sua proposta...

5. Metodologia: o corte metodológico.
“[...] todos os fatos, que citarei, de defuntos que narram sua entrada no meio espiritual são tirados de coleções de ‘revelações transcendentais’ publicadas na Inglaterra e nos Estados Unidos. “Por que – perguntar-me-ão os leitores – esse exclusivismo puramente anglo-saxônio? [...] é claro que, se os povos anglo-saxônios são os únicos que, até hoje, hão mostrado saber apreciar o grande valor teórico e prático das ‘revelações transcendentais’, como são os únicos que a isso se consagraram, empregando métodos racionais, não me restava outra coisa senão tomar o material necessário onde o encontrava.”

Esse corte epistêmico será analisado com mais propriedade num comentário feito no décimo-quarto caso apresentado.

6. Os casos: primeiro.
“Extraio este fato de uma obra intitulada Letters and Tracts on Spiritualism, obra que contém os artigos e as monografias publicadas pelo juiz Edmonds, de 1854 a 1874. Sabe-se que Edmonds era notável médium psicógrafo, falante e vidente. Alguns meses depois da morte acidental de seu confrade, o juiz Peckam, a quem ele muito estimava, [...]”

Um juiz que era notável médium psicógrafo, falante e vidente? Não eram para ser médiuns sem nenhum conhecimento sobre espiritualidade e sem relações com outros?

7. Os casos: terceiro.
“Reproduzo um último caso de data antiga, que extraio do livro do Dr. Wolfe, Starling Facts in Modern Spiritualism (pág. 388). ‘Jim Nolan’, o ‘Espírito-guia’ do célebre médium Sr. Hollis, que disse [...]”

À revelia do bobo erro na tradução feita pela FEB, pois não era Sr., mas Sra., o médium Sra. Mary J. Hollis era experiente, rica, membro da Igreja Episcopal e com excelente relações no meio espiritualista.

8. Os casos: quarto.
“[...] um fato tirado da obra de Mrs. Jessie Platts, The Witness. Trata-se de uma coleção de comunicações mediúnicas muito interessantes, obtidas graças à mediunidade da própria Mrs. J. Platts, viúva do Rev. Charles Platts, que teve a infelicidade de perder seus dois filhos na grande guerra. As comunicações publicadas provêm do filho mais moço, Tiny, rapaz de 18 anos apenas, morto quando combatia na frente francesa, em abril de 1917, e que se comunicou psicograficamente, mercê da mediunidade improvisada de sua mãe [...]”
“Termino lembrando que Mrs. Jessie Platts foi levada a cogitar de pesquisas mediúnicas e a tentar escrever automaticamente, pela morte de seus dois filhos na guerra. Ela, pois, nada conhecia – ou muito pouco – das doutrinas espíritas e tudo ignorava acerca do conteúdo das outras coleções de revelações transcendentais.”


Mais ou menos. O médium Sra. Platts levou mais de um ano entre a morte de seu filho Tiny, em 28/04/1917, e o recebimento da primeira mensagem em 03/07/1918. E em seu livro ela relata que durante esse período teve contato com as ditas doutrinas espiritualistas, apesar de afirmar ter sido pouco contato.

9. Os casos: sexto.
“A Sra. Duffey, que é de espírito muito cultivado, se tornou médium escrevente e escreveu as mensagens de que se trata, quando apenas havia pouco tempo que se interessava pelas pesquisas mediúnicas, quando, por conseguinte, ainda nada lera, ou muito pouco, sobre doutrinas espíritas.”

O médium Eliza B. Duffey, famosa feminista estadunidense, autora de diversos livros sobre saúde e educação da mulher, convertera-se um ano antes dessas comunicações ao espiritualismo e participava de uma sociedade espiritualista, dando inclusive palestras sobre o tema.

10. Os casos: nono.
“Tiro-o do recente livro de mensagens transcendentais intitulado A Heretic in Heaven. O médium-narrador é o Sr. Ernesto H. Peckham, conhecido pelas suas pesquisas metapsíquicas, o mesmo que precedentemente escreveu o belo volumezinho intitulado The Morrow of Death”

Conhecido por suas pesquisas metapsíquicas e já escrevera outra obra sobre o tema? Sem mais comentários...

11. Os casos: décimo-segundo.
“A mãe do autor das cartas (morto aos 30 anos, em 1918) começa por dizer que, não podendo consolar-se da morte de seu único filho, desejou pôr-se mediunicamente em comunicação com ele. Para esse fim, aconselharam-lhe fosse à Direção do British College of Psychical Science. Foi na sede dessa importante instituição que ela chegou a experimentar sucessivamente, com quatro dos melhores médiuns, [...] Por um deles – uma senhora dotada de faculdade para a escrita mediúnica – foi que recebeu do filho [...]”

Os melhores médiuns do centro de pesquisas! Sem mais comentários...

12. Os casos: décimo-quarto.
“Trata-se de uma santa mãe que se comunica por intermédio de sua filha. Orna a brochura o retrato da morta, cujos traços angélicos se harmonizam de modo muito sugestivo com o conteúdo das mensagens, das quais se exala o perfume celeste de uma bela alma, em suprema comunhão de amor com todos os seres do Universo. É tão espontânea, tão natural a forma em que são ditadas as mensagens, que sugere aos que as leem a intuitiva certeza da origem, autenticamente transcendental, donde promanam.”

Ou seja, a certeza da origem das comunicações é dada pela forma "tão espontânea, tão natural" das mensagens. Muito científico...

13. Os casos: ainda o décimo-quarto.
“[...] a hipótese ‘reencarnacionista’. Sabe-se que é o único ponto importante em que se depara com um desacordo parcial nas mensagens dos Espíritos que se comunicam: entre os povos latinos, eles afirmam constantemente a realidade das vidas sucessivas, ao passo que, entre os povos anglo-saxões, estão em desacordo, na proporção de dois terços que negam mais ou menos claramente esta forma evolutiva do ser humano, e de um terço que a afirma, de modo mais ou menos categórico. [...] Entretanto, conforme já o fiz notar em outras obras, este contraste de opiniões, relativamente a um problema insolúvel para os que o discutem – e, por conseguinte, essencialmente metafísico – nada significa, pois que os próprios Espíritos reconhecem que tudo ignoram a esse respeito e julgam do assunto segundo suas mesmas aspirações pessoais.”

Os relatos dos povos anglo-saxões sugerem, por cerca de 67%, que não existe reencarnação! Isso é muito significativo! Mas o autor resolve o problema dizendo que tudo não passa de discussão metafísica e que os espíritos não sabem de tudo! Resumindo a argumentação do autor: se a opinião do espírito serve para corroborar sua hipótese, ela é válida como prova; se a opinião, mesmo de 67% dos relatos, é contrária, tudo não passa de deficiências pessoais dos comunicantes. Não se pode negar que ele, ao menos, é muito esperto...

Mas fica uma pulga na orelha: 67% dos relatos mediúnicos trazidos nos países anglo-saxões afirmam não existir reencarnação! Isso sugere que o contexto talvez seja mais importante nos relatos mediúnicos do que supõe a nossa vã espiritologia...

14. Os casos: décimo-quinto.
“As mensagens mediúnicas que vamos reproduzir foram obtidas pela Sra. Rambova na residência de seu pai, situada nos arredores de Nice, com o auxílio do médium americano Jorge Benjamim Wehner, que também servia frequentemente para a fundadora da Sociedade Teosófica [...]”

Servia frequentemente de médium? Sem mais comentários...

15. Conclusões.
“[...] os informes que transcrevi deveriam bastar, para confirmação da grande verdade que ressalta dos casos dos médiuns improvisados, inteiramente ignorantes das doutrinas espíritas e que, não obstante, recebem mensagens concordantes, em que todos os detalhes coincidem com as outras narrações do mesmo gênero.”

Ops, o que eu perdi? Será que li outro livro ou o editor misturou a conclusão desse com a descrição de outro?

16. Ainda conclusões.
“Em primeiro lugar, cheguei a demonstrar incontestavelmente, fundando-me em fatos, que as mensagens mediúnicas, em que os Espíritos dos defuntos descrevem as fases por que passaram na crise da morte e as circunstâncias em que fizeram sua entrada no meio espiritual, concordam admiravelmente entre si, de maneira tal que nelas não se encontra uma só discordância absoluta com as afirmações dos outros Espíritos que se hão comunicado com os vivos.”

Das duas, uma: ou eu sou um completo maluco que não consegue compreender um texto rudimentar ou o autor acha que somos todos acríticos...

sábado, 21 de setembro de 2013

Um exemplo da "ciência espírita"


A falta de seriedade no trato científico faz o espiritismo tornar-se um arremedo de conhecimento, uma tolice inominável. E isso é uma pena...

domingo, 7 de abril de 2013

Reflexões sobre uma ciência espírita


Artigo apresentado no XXI Congresso Espírita Pan-Americano, ocorrido em Santos, SP, entre os dias 5 e 9 de setembro de 2012.
Autor: Sergio Mauricio Pinto

INTRODUÇÃO

A ciência espírita seria, segundo Kardec, uma ciência que trata da natureza, origem e destino dos espíritos, bem como de suas relações com o mundo corporal, mas essa proposição não é suficiente para caracterizar uma ciência, pois seu objeto –o espírito– não é passível de verificação empírica, além de pressupor, não como hipótese, a sua existência. Para superar essa dificuldade, Kardec afirma que a ciência propriamente dita é incompetente para se pronunciar sobre a questão do espiritismo, propondo uma nova ciência. Ressalta-se daí um grave problema, pois ao propor essa nova ciência, Kardec rompe com paradigmas fundamentais da epistemologia, e não apenas propondo métodos que se adequassem às especificidades de seu objeto, mas propondo um objeto que não seria da alçada da “ciência propriamente dita”. Entretanto, uma especialidade científica qualquer pode, sobre seu objeto verificável, definir critérios e metodologias adequados à sua abordagem, sem romper com os princípios que fundamentam a atividade prospectiva da ciência, sob o risco de se ter um simulacro de ciência, uma pseudociência, em seu lugar. Portanto, para que se possa um dia falar em verdadeira ciência espírita, é preciso que os pesquisadores interessados no tema superem a abordagem epistêmica kardecista, abandonando-a por completo, e proponham nova definição do objeto estudado e sua metodologia associada.
Não se pretende, nesse texto, propor novo método de pesquisa para a ciência espírita, apesar da especificação clara de seu objeto. O objetivo principal é defender a ideia de superação e negação do pensamento kardecista, propondo um espiritismo científico que se afaste por completo do pensamento original de Kardec: um espiritismo não kardecista.

CIÊNCIA

A ciência, como hoje conhecida, é uma construção gnosiológica moderna, e não se confunde com a generalidade do conhecimento humano, que incorpora outras tantas produções culturais como a filosofia, a arte, a religião etc.
Nos primórdios da discussão gnosiológica, no mundo grego dos séculos VII e VI a.C., os primeiros pensadores já delineavam uma forma de conhecimento que buscava compreender a natureza por meio da observação e do uso da lógica[1], características precursoras daquilo que se estabeleceria posteriormente como ciência.
Como um dos produtos socioculturais das transformações político-econômicas ocorridas na transição do sistema de produção feudal para o capitalismo, que marca na história a mudança de eras, da medieval para a moderna, a ciência possui características que a distinguem das demais instâncias do conhecimento e a posicionam de forma clara como um saber essencialmente objetivo, experimental e metódico.
Sua objetividade é caracterizada pela mudança moderna de paradigma na construção gnosiológica, que passa a ter o objeto como centro estruturante do conhecimento, relegando ao sujeito o papel de observador, compilador e sistematizador das informações oriundas do objeto de estudo.O objeto deve caracterizar-se como “perfeitamente observável, quantificável, purificado de qualquer referência à experiência vivida, a significações, memórias, interpretações incontroláveis”[2]. Não se pretende, obviamente, dissimular o papel da subjetividade na elaboração científica, que se apresenta em todas as etapas acima e cria, ao próprio pesquisador, dificuldades para o alcance da objetividade pretendida, seja por conta de suas crenças pessoais ou do contexto cultural em que vive. Não obstante o comprometimento da atuação objetiva por meio de um único indivíduo, ou grupo cultural similar, a intersubjetividade, que é a análise dos estudos feitos através de outros indivíduos ou grupos em contextos diversos, a conhecida revisão por pares, garante a objetividade pretendida, pois consegue superar as armadilhas da subjetividade vividas por homens ou grupos isolados.
A experiência é a pedra angular do conhecimento científico. Todas as hipóteses jamais passarão disso se não forem corroboradas por experimentos que demonstrem sua pertinência. Qualquer construção de conhecimento que não possua fundamentação empírica não poderá se classificar como uma ciência. O fato empírico é a evidência objetiva duma ciência. Aqui se pode também questionar a objetividade do fato já que sua observação submete-se ao olhar do sujeito,como o fazem alguns pensadores da epistemologia e da linguagem, argumentando de forma correta sobre a falta de passividade da observação empírica, afinal “uma observação é uma interpretação”[3], ratificando a ideia comtiana de que “se de um lado toda teoria positiva deve-se necessariamente fundar-se sobre observações, é igualmente perceptível, de outro, que, para entregar-se à observação, nosso espírito precisa de uma teoria qualquer”[4]; entretanto, mais uma vez, é a intersubjetividade que a garantirá. Destarte, é necessário que o objeto a ser perscrutado pelo pesquisador seja passível de verificação empírica, caso contrário não se poderá falar em ciência.
Apesar de o fato empírico ser a base do conhecimento científico, o método é a maneira de garantir a coerência das informações observadas. Ou, no dizer de Poincaré, “fazemos ciência com os fatos assim como uma casa é feita com tijolos; mas uma acumulação de fatos não é ciência assim como um conjunto de tijolos não é uma casa”[5]. O método é o que faz um conjunto de fatos observados tornar-se conhecimento científico, pois é o método científico que estipula um conjunto de regras e técnicas com base nas quais devem ser feitos os estudos que se proponham científicos. Elaborando de outra forma, “a entrada, quantitativamente prolífica, gera uma saída organizada e composta por interpretações que se destacam, entre outras coisas, pela capacidade de unificar o que estava disperso na experiência”[6], e é o método esse processo intermediário que transforma entradas factuais em saída do saber.
Rizzini[7] sugere uma lista de nove características associadas ao conhecimento científico, que ressaltam e completam as acima citadas. Dentre elas, pode-se citar como complemento a que identifica a ciência como uma construção contínua e que, portanto, suas assertivas sempre são parciais e efêmeras. Pode-se, nesse sentido, dizer também que “a verdade científica muitas vezes é concebida como a meta de um trabalho científico, ‘assíntota’ poderia ser a melhor palavra, já que na ciência nenhuma certeza é irrefutável ou além do alcance das críticas”[8], ou seja, o conhecimento científico é sempre assintótico, aproximativo, nunca definitivo.

KARDEC E A CIÊNCIA

Allan Kardec, o sistematizador do espiritismo, quis propor uma nova ciência: a ciência espírita. E essa ciência, o espiritismo, teria por objeto a natureza dos espíritos, sua origem e seu destino, além das suas relações com o mundo físico[9]. Além disso, essa ciência espírita conteria “duas partes: uma experimental, sobre as manifestações em geral; outra filosófica, sobre as manifestações inteligentes”[10].
Ciente das dificuldades epistemológicas que sua proposta enfrentaria, argumentou que essa nova ciência deveria pautar-se por paradigmas bem diversos daqueles que forjaram a ciência desde seus primórdios no Renascimento, e afirma: “A ciência propriamente dita, como ciência, é incompetente para se pronunciar sobre a questão do espiritismo: não lhe cabe ocupar-se do assunto e seu pronunciamento a respeito, qualquer que seja, favorável ou não, nenhum peso teria.”[11]
O rompimento kardecista com os fundamentos do conhecimento científico, propondo uma “nova ciência”, apenas ressalta o que já se faz claro: a proposta de Kardec em nada pode ser equiparada ao conhecimento construído pela ciência. E não é a classificação da ciência como “ciência materialista” que conseguirá superar o imbróglio epistemológico construído pelo fundador da doutrina espírita, haja vista que toda ciência, por definição, deverá amparar-se pela verificação factual de suas hipóteses e, portanto, necessariamente ligada à realidade empírica e material.
Para diferenciar sua proposta científica, Kardec adjetiva a ciência de várias formas: “ciência propriamente dita”[12], “ciência material”[13], “ciência comum”[14], “ciência ordinária”[15], “ciência positiva”[16], “ciências exatas”[17], dentre outras. No entanto, o problema da classificação duma espécie de conhecimento como científico esbarra nas premissas já tratadas: objeto, empiria e método; e se a proposição do novo conteúdo gnosiológico não se lhes consegue adequar, a conclusão é única: não se trata de ciência, pois não há uma “ciência propriamente dita” e outro tipo de ciência; ou se é ciência, ou não se é. E isso não desmerece nenhum outro tipo de conhecimento em comparação ao conhecimento científico, apenas os classifica, evitando-se a confusão teórica que acabou por se perceber na proposta epistêmica kardecista. Assim, a filosofia e a arte não são menores por não serem ciência e, da mesma forma que a ciência não pretende ser arte, a filosofia não é ciência.
A proposta epistêmica de Kardec consegue ferir todas as premissas do conhecimento científico: o objeto sugerido não é um objeto propriamente científico; a experiência não caracteriza o objeto especificado; e o método é inconsistente e sem validade demonstrativa.
Das três características basilares da ciência acima apresentadas, inicialmente discute-se a especificação do objeto na doutrina kardecista, buscando identificar seus problemas em relação ao paradigma científico. O objeto é aquilo que melhor caracteriza uma especialidade científica qualquer. A biologia tem como objeto todos os fenômenos que se relacionam com a vida e suas consequências; a química trata da matéria, sua estrutura e propriedades; a sociologia debruça-se sobre as relações humanas em sociedade; e assim se dá para todos os ramos da ciência. É interessante notar que em todas essas ciências particulares o objeto é empírico, ou seja, passível de verificações factuais a partir de metodologias específicas adequadas a cada objeto. As especialidades científicas conseguem “fazer falar”[18] seus respectivos objetos.
O objeto a ser perscrutado pela nova ciência espírita trataria, segundo seu autor, “da natureza, da origem e do destino dos espíritos, e das suas relações com o mundo corporal”[19], em suma, o objeto dessa ciência seria o espírito. E ante qualquer questionamento sobre a possibilidade empírica do objeto proposto, Kardec assevera que “a dúvida, no que se refere à existência dos espíritos, tem como causa primeira a ignorância sobre sua verdadeira natureza” e que, ao determinar sua nova ciência, “tomamos, portanto, nosso ponto de partida na existência, na sobrevivência e na individualidade da alma”[20].
Quando pretende tomar como ponto de partida a existência do espírito, a fim de usá-lo como objeto de investigação sem que haja o amparo factual necessário que lhe assegure essa opção, Kardec utiliza de recurso dogmático incompatível com o que se depreende do conhecimento científico. Afinal, não há demonstrações objetivas da existência de espíritos, pois, em verdade, os espíritos seriam uma hipótese a ser verificada, se possível, do fenômeno observado por Kardec e por tantos outros, jamais um “ponto de partida”.
Uma ciência deve pautar-se pelo exame dos fenômenos observados, seu objeto, por meio de experimentos orientados por métodos rigorosos que sustentem alguma garantia demonstrativa das hipóteses formuladas. No caso espírita, o fenômeno observado não é o espírito, que se enquadraria então não como objeto, mas como hipótese daquilo que se pesquisa.
Todos os relatos trazidos por Kardec sustentam essa afirmação, pois em nenhum momento observou-se o objeto pretendido, mas manifestações de indivíduos vivos que se diziam, ou se entendia, intermediários de seres imateriais, no caso das manifestações classificadas como “inteligentes”; ou ainda manifestações de movimentos e surgimentos de objetos que não se enquadravam nos cânones da ciência da época, como exemplificam as famosas “mesas girantes”, no caso dos fenômenos tidos como “físicos”.
Nesse segundo momento, discute-se a experiência, outra característica fundante da ciência, e suas relações com as propostas de Kardec.
O mesmo se pode analisar acerca dos experimentos propostos como norteadores do espiritismo prático, pois para Kardec, tratando dos fenômenos acima citados, “esses fatos, nós os encontramos no fenômeno das manifestações espíritas, que são, assim, a prova patente da existência e da sobrevivência da alma”[21]. Afirmação compatível com a presunção dogmática do objeto de estudo, já que não há experiência possível que demonstre de forma patente a existência de espíritos, ou qualquer outro objeto que não se deixe observar.
As manifestações estudadas pela ciência proposta por Allan Kardec não caracterizam o objeto pretendido, pois as hipóteses que delas advêm podem ser inúmeras, a depender do tipo verificado, se “inteligente” ou “física”. Manifestações “inteligentes” podem e são estudadas por outras especialidades científicas, que propõem hipóteses mais coerentes com o fenômeno observado, haja vista não lançarem mão de proposições imateriais para a explicação desses fatos, que caracteriza o princípio lógico da navalha de Ockham. Quanto às manifestações “físicas”, saltam aos olhos duas coisas, no mínimo, interessantes: primeiro, é um fenômeno que, após sua explosão social no oitocentos, tornou-se muito raro de ser observado, o que não passou desapercebido por Beloff: “a dura realidade é que não há mais nenhuma Palladino”[22]; e, segundo, grande parte daqueles fenômenos relatados por pesquisadores do século XIX foi refutada como fraude e outra parte desses relatos carece de metodologia que ampare qualquer conclusão isenta de sectarismo ideológico.
Como exemplo da segunda assertiva, um dos mais famosos objetos de estudo do século XIX, a italiana Eusapia Palladino, investigada por quase todos os grandes pesquisadores desse tipo de fenômeno na época, como Charles Richet, Alexandre Aksakof, Cesare Lombroso, Oliver Lodge, Frederic Myers, Julijan Ochorowicz, e até mesmo o casal Curie, dentre outros, “foi surpreendida em flagrante delito de trapaça”[23] por Richard Hodgson, em experimentos sob seu controle em 1895, quando produzia os impressionantes fenômenos que a tornaram tão conhecida. Fato que foi também anotado por Lombroso[24], ao informar que em Gênova, Eusapia Palladino recorreu a truques, supostamente obedecendo a ordens de um espírito.
Exemplificando também a falta de sustentação metodológica da maioria dos relatos da época, cita-se Russel Wallace, que ao descrever um fenômeno de transe magnético por ele produzido alega:

Produzi o estado de transe em dois ou três garotos, de 12 a 16 anos de idade, com grande facilidade e pude me assegurar que era genuíno. Em primeiro lugar, pelo giro dos olhos em suas órbitas, de tal forma que a pupila não era vista quando as pálpebras eram levantadas. Em segundo, pela mudança característica da fisionomia. E em terceiro, pela prontidão com que eu podia produzir catalepsia e perda de sensibilidade em qualquer parte do corpo.[25]

É evidente que as formas de reconhecer a legitimidade do fenômeno pelo famoso pesquisador, coautor da teoria evolucionista, não asseguram aquilo que afirma, carecendo de maiores detalhamentos metodológicos.
Também William Crookes, conhecido cientista inglês, descreveu uma experiência com a inglesa Florence Cook, ao ver o espectro chamado de Katie King:

Confesso que a figura era surpreendente na sua aparência de vida e de realidade, e tanto quanto eu podia ver, à luz um pouco fraca, os seus traços assemelhavam-se aos da Srta. Cook; mas, entretanto, a prova positiva, dada por um dos meus sentidos, pois que o suspiro vinha da Srta. Cook, no gabinete, enquanto a figura estava fora dele, esta prova é muito forte para ser destruída por simples suposição do contrário, mesmo bem sustentada.[26]

Interessante perceber que, apesar de os traços do espectro Katie King serem semelhantes aos da Srta. Cook e de a luz estar fraca, conforme seu próprio relato, Crookes prefere confiar no suspiro que cria vir de dentro do gabinete, achando tal evidência “muito forte para ser destruída por simples suposição do contrário”, o que chamou noutra correspondência de “a prova cabal”[27].
Discutidos os dois primeiros aspectos, parte-se nesse ponto à discussão da terceira característica do conhecimento científico, o método, e suas relações com o pensamento kardecista.
Retomando Kardec, salienta-se nesse ponto o problema do método na elaboração de seus estudos e de suas obras. E é o próprio Kardec, em seus textos póstumos, que mostra os caminhos que percorreu até a conclusão daquela que seria a obra capital da sua doutrina espírita: O livro dos espíritos. Relata que seus primeiros contatos com o tipo de fenômeno que motivaria a proposta duma ciência espírita ocorreram a partir de maio de 1855, em reuniões na casa da Sra. Plainemaison, onde presenciou pela primeira vez os fatos conhecidos como “mesas girantes” e a escrita em ardósia.
Daí passou a frequentar reuniões semanais na casa da família Baudin, que contavam com a presença de duas jovens sensitivas, as senhoritas Baudin, que escreviam em ardósia por meio duma cesta carrapeta, artefato usado para escrever textos com o auxílio de duas pessoas. Nessas reuniões que Kardec afirma ter começado seus estudos sérios, levando às sensitivas questões que envolviam filosofia, psicologia e espiritualidade. Com o crescimento do volume de material disponível, resolvera, ainda em 1855, elaborar um livro que contivesse aqueles conhecimentos.
Em 1856, passou também a frequentar as reuniões na casa do Sr. Roustan, que tinha como sensitiva a Srta. Japhet, uma sonâmbula, que usava a cesta de bico como forma de comunicação escrita. Afirma Kardec que, nesse momento, a maior parte do trabalho a que se propusera já se concluíra e que, a partir de então, usaria as reuniões que frequentava para revisar seu trabalho. Adita que além das jovens Baudin e da Srta. Japhet, Kardec lançou mão de alguns outros poucos sensitivos, de forma eventual, conforme se apresentava alguma oportunidade, para realizar a verificação de seus estudos e concluir sua obra. Segundo o próprio Kardec, “foi assim que mais de dez médiuns prestaram sua assistência para este trabalho”[28].
Fica evidente que a obra kardecista foi praticamente elaborada com o concurso de apenas três sensitivas: as duas jovens Baudin e a Srta. Japhet. Os demais, que somaram cerca de uma dezena, como diz o autor, foram consultados, quando se apresentava uma ocasião para tal, buscando corroborar questões ou esclarecer aquelas mais complexas.
Problemas metodológicos se destacam no relato histórico de Kardec. Primeiro, a quantidade de sensitivos usados para a elaboração de sua obra é pequena, mesmo que seu trabalho intelectual que tratou de comparar e fundir respostas, coordená-las e classificá-las, tenha conseguido superar muitas dificuldades das experiências vividas nas reuniões descritas. Grosso modo, pode-se afirmar que todo o trabalho de Kardec que resultou na primeira edição de O livro dos espíritos se resume a observações sistemáticas de três sensitivas e observações eventuais de outros dez. Enfim, para uma proposta científica, que não prescinde de observações que garantam a adequada aplicação da indução, não parece que o tamanho da amostra seja significativo para a consecução de qualquer conclusão acerca do objeto estudado.
As sensitivas, ou seus objetos de observação, eram jovens, francesas e de determinado nível social e cultural. Ao menos as três que foram fundamentais no trabalho de Kardec e são citadas em seus relatos. Para se propor alguma conclusão válida não apenas nesse contexto específico, seria necessário que mais sensitivos fossem observados, e de preferência com variedade de características humanas como faixa etária, sexo, nível social e cultural, crença, nacionalidade etc. Nesse ponto se poderia perguntar se um sensitivo observado fosse árabe, muçulmano, homem e velho, se as respostas obtidas por Kardec seriam as mesmas.
Segundo, deve-se também ressaltar a questão da intersubjetividade, que é garantidora da objetividade científica. Não há, no período de observação, relatos significativos de outros estudiosos que se debruçaram nessas questões, e os poucos que o fizeram e chegaram a conclusões mesmo que pouco diferentes foram refutados por Kardec como formadores de “sistemas contraditórios” que tenderiam a desaparecer, “pois que a unidade se faria”[29]. A busca dessa unidade também inviabilizou a proposta cientificista kardecista, já que impediu a proposição de hipóteses divergentes, como se dá normalmente em qualquer construção epistêmica. É a observação amparada por metodologia rigorosa que se coloca como juiz das hipóteses, corroborando-as ou refutando-as.
Um exemplo que se pode dar sobre esse problema são os comentários de Kardec sobre a obra de J.-B. Roustaing, Os quatro evangelhos. Kardec, cuidadoso, não a aprova nem a desaprova, mas observa que as alegações do autor “até mais ampla confirmação não poderiam ser consideradas como partes integrantes da doutrina espírita”[30].
Ainda sobre o método kardecista, outro ponto interessante é o que é ele chama de controle universal do ensinamento dos espíritos, detalhado na introdução da obra O evangelho segundo o espiritismo. Em suma, podem-se enumerar duas etapas desse método de estudos espíritas: a avaliação do bom senso e a concordância dos ensinamentos dos espíritos. Em relação ao primeiro ponto, é o próprio Kardec quem observa os problemas inerentes à confiança no bom senso: “Esse controle, porém, em muitos casos é incompleto, por causa da insuficiência de conhecimentos de certas pessoas, e da tendência de muitos em considerar, como único juiz da verdade, o seu próprio julgamento”[31].Pode-se também acrescer a clássica introdução do Discurso sobre o método, do pensador francês René Descartes, que vaticina: “O bom senso é a coisa mais bem dividida no mundo, pois cada um se julga tão bem dotado dele que ainda os mais difíceis de serem satisfeitos em outras coisas não costumam querê-lo mais do que têm”[32]. Essa crítica cartesiana à evocação do bom senso em prejuízo do uso do método racional é bem conhecida para ser ainda trazida por Kardec como valor epistemológico.
Para superar esse obstáculo na busca do conhecimento sobre a natureza dos espíritos, Kardec lança mão da opinião da maioria, considerando-a como baliza para a consecução do bom senso, afirmando que aqueles que não têm confiança plena em si mesmos “aceitam a opinião do maior número de pessoas, a opinião da maioria é o seu guia”[33] e que esse deve ser o caminho a se seguir na relação mantida com os espíritos, completando que “seria tão ilógico”[34] não seguir essa premissa.
Faz-se necessária nova reflexão sobre essa escolha metodológica kardecista, pois a opinião da maioria jamais será garantia do conhecimento científico. Aliás, retomando Descartes, diz o filósofo racionalista: “a pluralidade dos votos não é prova que tenha algum valor para as verdades um tanto difíceis de descobrir”[35]; afinal, não se trata de democracia ou uma escolha cultural qualquer, mas de conhecimento científico. Assim, a se usar a metodologia proposta por Kardec que valora epistemologicamente a opinião da maioria, dever-se-ia lembrar, apenas como exemplo ilustrativo, que em certo momento da história, antes do período renascentista, a maioria absoluta dos homens considerava a Terra plana. E, como complemento, que uma parte significativa da sociedade contemporânea prefere crer em mitos milenares a aceitar as evidências factuais do mecanismo da seleção natural que forjou as espécies hoje existentes, incluindo o homo sapiens.
Quanto ao segundo ponto, a concordância dos ensinamentos dos espíritos, explica Kardec: “A única garantia séria do ensinamento dos espíritos está na concordância que existe entre as revelações feitas espontaneamente, por intermédio de um grande número de médiuns estranhos uns aos outros, e em diversos lugares”[36].
Volta-se às questões discutidas anteriormente, pois as “revelações”, como diz Kardec, não demonstram o objeto pretendido nem são respostas a uma única hipótese. Não obstante se destacar a importância desses pontos cruciais na frágil construção epistemológica kardecista, parte-se para uma análise interna de seus pressupostos metodológicos, evidenciando os problemas inerentes ao seu uso.
O que, parece, pretendeu Kardec foi atingir a validade do conhecimento construído a partir do mecanismo da multiplicidade das comunicações, alternando médiuns e garantindo seu isolamento uns dos outros, evitando-se a influência mútua de suas respostas às questões propostas. Seria, então, a intersubjetividade espiritual o método validador do saber espírita. A falha que se apresenta na sugestão kardecista é que o objeto de estudos não tem valor epistêmico, pois as generalizações induzidas a partir de suas análises pressupõem o objeto espírito como verdade, sem considerar outras hipóteses possíveis. Mas essa análise já foi feita anteriormente.
Outros pontos destacam-se ainda dessa metodologia: o primeiro, como se vê na descrição kardecista do processo de elaboração de O livro dos espíritos, contida em Obras póstumas, apenas poucos sensitivos foram consultados, sendo que a maior parte da obra foi elaborada a partir das respostas produzidas por três jovens. Assim, parece que o método proposto foi cobrado de outros que tentaram produzir saberes espíritas, mas não foi usado de forma rigorosa por seu proponente. Poder-se-ia argumentar, em favor da elaboração do espiritismo por Kardec, que em O evangelho segundo o espiritismo é dito que: “recebendo comunicações de quase mil centros espíritas sérios, disseminados pelos diversos pontos do globo, temos condições de ver os princípios sobre os quais essa concordância se estabelece”[37]. Entretanto, uma dúvida se apresenta: a que questiona a validade das comunicações recebidas dos “quase mil centros”, já que tais relatos não foram objeto de observação empírica do pesquisador durante seu processo de confecção, mas que foram aceitas como evidências usando-se o argumento de autoridade (“centros espíritas sérios”). Sabe-se que o critério de ajuizar evidências apenas pela autoridade de quem as elabora não é um critério científico, pois a metodologia da ciência não corrobora experimentos pela posição moral ou intelectual de seu autor, e sim pela possibilidade de se reproduzir aquele experimento, a partir do método descrito, por meio de equipes diversas, em condições culturais diversas.
Sinteticamente, não há garantias científicas sobre as comunicações recebidas por Kardec de outros sensitivos longe de sua análise e verificação, relegando tais comunicações a mera retórica desprovida de conteúdo epistêmico, não as podendo considerar como dados no processo indutivo de elaboração de generalizações. Afinal, não há como saber quantas e quais dessas inúmeras comunicações foram produzidas dentro de condições controladas, ou não são simples opinião de alguém travestida de comunicação espiritual, mesmo que se desconsidere a possibilidade da má-fé.
O segundo ponto refere-se à necessidade de existirem revelações espontâneas oriundas de sensitivos mutuamente desconhecidos. O desconhecimento mútuo entre sensitivos não garante o desconhecimento do conteúdo elaborado, pois, provavelmente, esses indivíduos em questão, já que os centros que participavam mantinham contato regular com Kardec, conheciam a obra kardecista até então produzida e acompanhavam as novidades divulgadas. Seria difícil para esses sensitivos, conhecendo a opinião kardecista expressada em seus textos, emitir e enviar opiniões e elucubrações que, de alguma forma, ferissem aquilo que Kardec propunha como doutrina espírita, pois, segundo seu credo, “o princípio da concordância é ainda uma garantia contra as alterações que o espiritismo poderia sofrer pelas seitas que quisessem apoderar-se dele e acomodá-lo à sua vontade”[38].
Kardec chega mesmo a desestimular a divulgação de qualquer ideia que não tenha sido avalizada por seus estudos, solicitando prudência na sua publicação, apresentando-as estritamente “como opiniões individuais,mais ou menos prováveis, havendo, porém, em todos os casos, necessidade de confirmação”, pois não se poderia pretender “colocar-se contra a corrente de ideias, estabelecida e sancionada”[39]. O estabelecimento e a sanção das ideias eram atividades exclusivas de Allan Kardec.
Ou seja, apesar de afirmar o contrário, quando diz que “não nos colocamos, em absoluto, como juiz supremo da verdade e nem dizemos a pessoa alguma: ‘acreditem em tal coisa, pois estamos lhes dizendo’”[40], Kardec coloca-se, afinal, como juiz único das questões a serem incorporadas ou não às bases de sua nova doutrina, pois, ainda segundo ele, sua posição de centralizador das comunicações impunha essa responsabilidade.Responsabilidade que fora revelada por um dos seus espíritos comunicantes: “é o operário que reconstrói o que foi demolido”[41].
Das afirmações kardecistas sobre o princípio da concordância pode-se inferir que qualquer opinião que contradissesse suas ilações seria julgada como improcedente e qualificada como seita a buscar um cisma doutrinário. Essa postura de se colocar como missionário dos espíritos, um profeta da contemporaneidade, não condiz com suas alegações positivistas e impõe um argumento de autoridade ineficaz para um diálogo científico.
Um terceiro ponto deve ainda ser analisado: o conteúdo das comunicações trazidas pelos sensitivos. Segue a reflexão de Kardec sobre a questão:

Sabe-se que os espíritos, em consequência da diferença que existe entre seus conhecimentos, estão longe de possuir toda a verdade; que não é dado a todos penetrar certos mistérios; que o seu saber é proporcional à sua depuração; que os espíritos comuns não sabem mais que os homens, podem até saber menos que certos homens. Que há entre eles, assim como entre os homens, os presunçosos e os falsos sábios, que creem saber o que na realidade não sabem; os sistemáticos, que tomam suas ideias como sendo a verdade, e, enfim, os espíritos de ordem mais elevada, aqueles completamente desmaterializados e que são os únicos despojados das ideias e dos preconceitos terrenos. Porém, sabe-se, também, que os espíritos enganadores não têm escrúpulos de se utilizarem de nomes que não são os seus, para fazerem aceitar suas ideias fantasiosas, quiméricas. Daí resulta que, para tudo aquilo que está fora do ensino exclusivamente moral, as revelações que cada um pode obter têm um caráter individual, sem autenticidade; que essas revelações devem ser consideradas como opiniões pessoais deste ou daquele espírito, e que seria uma imprudência aceitá-las e promulgá-las levianamente como verdades absolutas.[42]

É interessante notar que Kardec, em sua exposição metodológica sobre a autoridade da doutrina espírita, afirma que as únicas revelações que podem ser alçadas à categoria de “verdades absolutas” são aquelas que tratam do “ensino exclusivamente moral”. Entretanto, uma leitura, mesmo que superficial, em suas obras primaciais indica que seu conteúdo longe se encontra de ensinos exclusivamente morais.
O livro dos espíritos, por exemplo, que é a obra fundamental de todo o pensamento espírita, contém diversas divagações acerca de questões teológicas, históricas, filosóficas e até mesmo científicas, que em nada se assemelham a ensino moral. O livro dos médiuns contém um sem-número de observações que se pretendem científicas. A gênese, sua última obra editada em vida, discute longamente problemas científicos e teológicos. A única exceção talvez seja O evangelho segundo o espiritismo, que contém praticamente apenas discussões de caráter moral, como explicado na sua introdução.
O critério usado por Kardec para a preparação de suas obras não foi o mesmo recomendado na metodologia em discussão, direcionada aos curiosos e estudiosos do espiritismo. Em A gênese, Kardec redigiu longos capítulos acerca da astronomia e da geologia, nos quais analisa a matéria e as leis físicas, a formação de planetas e estrelas, as eras geológicas da Terra, a gênese da vida no planeta, dentre outros temas de caráter filosófico-científico. E na introdução do livro afirma que “a sua iniciativa pertence aos espíritos, ela, porém, não é formada da opinião pessoal de cada um deles; ela não é, e nem pode ser, mais que o resultado do seu ensino coletivo e concordante”[43]. Portanto, para o autor, todo o texto apresentado na referida obra foi submetido à sua metodologia de concordância do ensino dos espíritos, o que deveria garantir, segundo seu entendimento, a verdade nos conteúdos apresentados.
Entretanto, a explicação apresentada em A gênese para o movimento e a estrutura lunar[44] não está correta; além disso, a defesa da geração espontânea da vida, que no texto kardecista chega a afirmar que “o musgo, o líquen, o zoófito, o infusório,os vermes intestinais e outros”[45] ainda aparecem pelo mecanismo abiogenético, é algo plenamente superado pelo conhecimento científico contemporâneo. Também O livro dos espíritos tem seus problemas científicos, como a mesma defesa da geração espontânea, o surgimento da espécie humana e o entendimento acerca dos cometas.
As conclusões que se pode chegar a partir desses erros científicos apresentados em seus livros é que, de acordo com o método da concordância do ensino dos espíritos, aqueles que assessoraram Kardec em seu labor de produção do espiritismo eram pouco afeitos às questões científicas e que a falha em não seguir sua própria recomendação custou alguns problemas na elaboração de sua obra, pois a incoerência entre a metodologia proposta e seu uso por Kardec é explícita.
O quarto, e último, ponto da crítica interna a ser examinado no método kardecista é sua ideia de que a rápida propagação do pensamento espírita seria a prova inconteste de sua vitalidade e seu conteúdo verdadeiro. Diz, de forma otimista, o criador do método da concordância do ensino dos espíritos acerca do crescimento do número de adeptos da sua doutrina: “Esse conjunto harmonioso já se delineia. Ora, este século não passará sem que ele resplandeça em todo o seu esplendor, de maneira a anular todas as incertezas”[46].
O que se segue após a morte de Allan Kardec é um movimento contrário ao esperado por ele. O espiritismo decresce rapidamente em França e chega ao final do século XIX praticamente esquecido, lembrado apenas como uma febre curiosa ocorrida durante o meado do referido século, quando muitos se divertiam com as mesas girantes.O que se vê, mais uma vez, é o viés profético de Kardec que, entusiasmado com o seu trabalho, não conseguiu realizar uma crítica mais aguda às suas elaborações doutrinárias, pois considerava o espiritismo uma revelação divina, do qual era o “missionário em chefe”[47], ao invés de mera elucubração humana.

UMA CIÊNCIA ESPÍRITA NÃO KARDECISTA

A ciência espírita, como proposta por Kardec, com objeto e metodologia inadequados, não conseguirá superar a crítica, correta e fundamentada, daqueles que nela veem nada além do que um simulacro de ciência, uma pseudociência, a disputar o mercado profícuo da fé dos espiritualistas interessados num misticismo pouco elaborado. Ainda é uma ciência a ser construída.
Para Carl G. Jung, por exemplo, que se dedicou sobremaneira ao estudo desse tipo de fenômeno, com diversos textos publicados sobre o tema, numa de suas cartas ao Dr. Fritz Blanke, em tom pesaroso, diz: “Infelizmente essas coisas ainda são pouco pesquisadas. É assunto para os próximos séculos”[48]. Talvez se possa divergir de Jung e afirmar que tais coisas foram e são muito estudadas. O que precisam é de melhor definição epistêmica.
Primeiramente é preciso reelaborar o objeto proposto. Se se pretende fazer ciência, esqueça-se o discurso sobre deus, provas de sua existência e seus atributos, como aparecem na primeira parte de O livro dos espíritos. Esse jamais será um tema da ciência, pois o objeto não é passível de verificação empírica. Esse tema é exclusivo da filosofia e a crença em deuses restrita ao campo da fé.
Abandone-se a proposição, já citada de O que é o espiritismo, que sugere o objeto dessa nova ciência como tratando “da natureza, da origem e do destino dos espíritos, e das suas relações com o mundo corporal”. Espíritos não podem ser o objeto de pesquisa, mas uma das hipóteses de estudos da ciência espírita, pois não há como “fazer falar” esse objeto, ou seja, não há formas de se o alcançar por meio de experimentos e métodos adequados, haja vista que as técnicas metódicas propostas por Kardec para tal objeto mostraram-se incoerentes e ineficazes.
Que objeto poderia, então, fundamentar uma ciência espírita? Aquilo que Kardec chama de fenômeno mediúnico. E apenas isso.A objetividade desse fenômeno é patente e sua pesquisa possibilitada por técnicas empíricas que satisfizessem as necessidades das hipóteses elaboradas.
Esse objeto, evidentemente, tem relações próximas com outras especialidades científicas, como as das ciências humanas, pois envolve aspectos antropológicos, psicológicos e sociológicos do fenômeno pesquisado, e não poderia abrir mão de seu apoio e conhecimento, como o artigo de Almeida e Lotufo Neto[49], que trata das relações entre mediunidade e distúrbios mentais, exemplifica bem essa colaboração, sem aqui avalizar hipóteses e conclusões.
O cuidado com as variáveis, evitando-se inserções espúrias de dados não controlados e a sempre presente possibilidade de fraudes, deverá nortear o caminho do pesquisador espírita, evitando-se os percalços vividos pelos grandes experimentadores do passado, já citados anteriormente.
Aqui se deve fazer breve análise sobre a linguagem utilizada na ciência espírita. O termo mediúnico, usado amiúde por Kardec e tantos outros estudiosos do tema, não é apropriado para qualificar o tipo de fenômeno a ser estudado pelo espírita, pois carrega consigo forte carga ideológica e conteúdo hipotético, já que a mediunidade pressupõe a existência de comunicação entre espíritos e indivíduos, caindo-se no mesmo problema de definição de objeto que incorreu Kardec. Da mesma forma, devem-se rejeitar outras qualificações como fenômenos parapsicológicos, sobrenaturais ou espirituais, pois incorrem todos exatamente no mesmo problema.Na falta de nomenclatura adequada para adjetivar essa classe de fenômenos, propõe-se, apenas como sugestão, o resgate do uso da expressão cunhada por Charles Richet[50]: fenômenos metapsíquicos.
O objeto de estudo da metapsíquica é amplo e variado em suas manifestações, Charles Richet[51] dividiu-o em fenômenos objetivos e subjetivos, o que Kardec classificou de manifestações mediúnicas de efeitos físicos e inteligentes. Os primeiros caracterizam-se por ações de consequências físicas suscetíveis de mensuração instrumental e percepção sensorial, como ruídos em móveis e paredes (raps), deslocamentos de objetos (apports), materialização de espectros etc.; os outros se caracterizam pelos fenômenos psíquicos subjetivos, puramente intelectuais, como a capacidade telepática, a pré-cognição, a xenoglossia, as comunicações ditas mediúnicas, dentre outro sem-número de manifestações.
Quanto ao método, o controle universal do ensinamento dos espíritos, com sua proposta de concordância em relação ao conteúdo das comunicações recebidas, é inviável como método científico, pois, como já analisado, além de não conseguir atingir o objeto proposto originalmente, o espírito, já que observa o conteúdo da comunicação e não o fenômeno em si, parte de pressupostos incompatíveis com o necessário ceticismo científico.
Portanto, propor para o avanço do conhecimento espírita apenas a aplicação do método kardecista em nova etapa de observações sistemáticas seria persistir no mesmo erro conceitual e impedir, de fato, o surgimento dessa ciência, que continuaria sendo, mesmo renovada, nada além do que pseudociência.
O controle universal do ensinamento dos espíritos, proposto por Kardec, deve ser abandonado como metodologia científica e relegado exclusivamente a atividade de caráter religioso-doutrinário.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Sempre que se fala em superar Kardec ou avançar além daquilo que foi por ele proposto, uma miríade de vozes se levanta a defender seu legado e, empunhando a bandeira da pureza doutrinária do espiritismo, classifica seus interlocutores de cismáticos, banindo-os do diálogo cultural.
Tal postura reflete um dogmatismo incompatível com o conhecimento científico e dele mantém distância conceitual. E de nada adiantará a citação contínua de Kardec, evocando a criação duma ciência especial, diferente da “ciência ordinária”, porque não existem concessões na construção do conhecimento científico: é-se ciência ou não.
Assim, a doutrina espírita sufocou, e ainda sufoca, o surgimento duma verdadeira ciência espírita, sem ranços dogmáticos ou vícios religiosos, pois a restrição à critica do pensamento de Kardec é um fator que impede o florescimento desse saber.
Poder-se-ia comparar a obra de kardecista com a obra comtiana e traçar alguns paralelos curiosos: primeiro, ambos, Comte e Kardec, foram contemporâneos e franceses; segundo, propuseram em seus estudos uma nova ciência, Kardec o espiritismo e Comte a sociologia; terceiro, ambos, a partir do conhecimento que construíram, propuseram doutrinas de caráter religioso, Kardec a doutrina espírita e Comte a igreja positivista.
A partir desse ponto, começam as diferenças. As propostas científicas de Comte foram abraçadas pelos estudiosos das ciências humanas, que não tiveram nenhum problema, como caracteriza a boa postura científica, em discutir, negar, ampliar e propor novos caminhos às bases científicas da sociologia. Esse enfrentamento do pensamento comtiano foi capaz de gerar diversos novos grandes sistematizadores da sociologia, como Durkheim e Weber. Quanto à sua proposta doutrinária, a igreja positivista não passa hoje de curiosidade histórica, com pouquíssimos adeptos.
Já as propostas científicas de Kardec foram, por seus discípulos, impedidas de qualquer revisão, crítica, negação, correção ou mesmo complementação, pois são consideradas verdades absolutas reveladas por espíritos superiores arregimentados pela própria divindade.
Dessa forma, enquanto a proposta científica de Comte ganhou vida e se estabeleceu como uma ciência humana, ao espiritismo restou ser apenas mais uma curiosidade religiosa dentro da variedade das doutrinas espiritualistas.
Concluindo com Kardec, “vê-se, portanto, que o espiritismo não é da alçada da ciência”[52]. Ao menos o espiritismo kardecista.


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[2] STENGERS, Isabelle. Quem tem medo da ciência?:ciência e poderes. São Paulo: Siciliano, 1990.
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[9] KARDEC, Allan. O que é o espiritismo: introdução ao conhecimento do mundo invisível pelas manifestações dos espíritos. Rio de Janeiro: CELD, 2008.
[10]______. O livro dos espíritos: filosofia espiritualista. 8.ed. São Paulo: FEESP, 1995.
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[17] KARDEC, Allan. O que é o espiritismo: introdução ao conhecimento do mundo invisível pelas manifestações dos espíritos. Rio de Janeiro: CELD, 2008.
[18] STENGERS, Isabelle. Quem tem medo da ciência?:ciência e poderes. São Paulo: Siciliano, 1990.
[19] KARDEC, Allan. O que é o espiritismo: introdução ao conhecimento do mundo invisível pelas manifestações dos espíritos. Rio de Janeiro: CELD, 2008.
[20]______. O livro dos médiuns: ou guia dos médiuns e dos evocadores. Rio de Janeiro: CELD, 2009.
[21]______. ______.
[22] PRACONTAL, Michel de. A impostura científica em dez lições. São Paulo: Unesp, 2004.
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[28] KARDEC, Allan. Obras póstumas. Rio de Janeiro: CELD, 2002.
[29]______. O livro dos espíritos: filosofia espiritualista. 8.ed. São Paulo: FEESP, 1995.
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[31]______. O evangelho segundo o espiritismo. Rio de Janeiro: CELD, 2000.
[32] DESCARTES, René. Discurso sobre o método. São Paulo: Hemus, s.d.
[33] KARDEC, Allan. O evangelho segundo o espiritismo. Rio de Janeiro: CELD, 2000.
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[35] DESCARTES, René. Discurso sobre o método. São Paulo: Hemus, s.d.
[36] KARDEC, Allan. O evangelho segundo o espiritismo. Rio de Janeiro: CELD, 2000.
[37]______. ______.
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[39]______. ______.
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[41]______. Obras póstumas. Rio de Janeiro: CELD, 2002.
[42]______. O evangelho segundo o espiritismo. Rio de Janeiro: CELD, 2000.
[43]______. A gênese, os milagres e as predições segundo o espiritismo. Rio de Janeiro: CELD, 2008.
[44]______. ______.
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[46]______. O evangelho segundo o espiritismo. Rio de Janeiro: CELD, 2000.
[47]______. Obras póstumas. Rio de Janeiro: CELD, 2002.
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[50] RICHET, Charles. Thirty years of psychical research: being a treatise on metapsychics. EstadosUnidos: Kessinger, 2003.
[51]______. ______.
[52] KARDEC, Allan. O livro dos espíritos: filosofia espiritualista. 8.ed. São Paulo: FEESP, 1995.
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