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terça-feira, 1 de maio de 2018

Trabalho, identidade e movimento

Texto publicado no Blog da Revista Espaço Acadêmico, da Universidade Estadual de Maringá:
https://espacoacademico.wordpress.com/2018/07/01/trabalho-identidade-e-movimento/

Em entrevista ao jornal espanhol El País, Guilherme Boulos, pré-candidato à presidência pelo PSOL, deu uma resposta que avaliza uma reflexão necessária:

“Nós fizemos um debate amplo e cuidadoso dentro do MTST. Com os 14 estados em que o MTST está presente, com as coordenações, com a base do movimento. E a definição pela nossa candidatura foi consensual. Foi uma decisão do movimento de compor uma aliança. E o movimento entra por inteiro por entender que estão colocados desafios políticos. Estamos em uma encruzilhada da história brasileira e não é possível se omitir. O MTST entendeu que era o momento de ocupar a política também. De ocupar outros espaços para apresentar outro projeto de sociedade e de país. Isso não prejudica em nada a autonomia do movimento.”[1]

A história recente do Brasil, e pode-se, talvez, ampliar para outros países[2], mostra que os movimentos sindicais (sindicatos e centrais sindicais) foram, pouco a pouco, perdendo o espaço de representação da classe trabalhadora. Não se pretende nesse breve texto entrar no mérito das causas desse fenômeno social e político, que poderiam ser também discutidas, mas refletir sobre as consequências desse fenômeno.

Uma frase do Boulos na resposta acima transcrita –“O MTST entendeu que era o momento de ocupar a política também”– ilustra um ponto fundamental: os movimentos sociais com pautas e reivindicações específicas, como o MTST ou o MST, dentre outros vários, e as organizações sociopolíticas de caráter identitário, como as que defendem pautas feministas, o direito à diversidade de gênero, a luta contra o racismo etc., têm ocupado o espaço de luta das antigas organizações sindicais.

É mais provável que um jovem recém-chegado à idade adulta tenha mais interesse em participar de movimentos identitários ou de lutas específicas do que se associar às estruturas sindicais que dão suporte e apoio à sua atividade laboral. Ou seja, um jovem se reconhece mais como negro, mulher ou LGBT do que como um trabalhador.

Mais um fato, além da frase do Boulos, que também aponta para esse sentido foi um momento singular no recente episódio do já famoso discurso de Lula, no dia da sua prisão em São Bernardo do Campo, SP. Em certo momento da sua fala, ele cita Manuela d'Ávila, a pré-candidata à presidência pelo PCdoB, e o próprio Guilherme Boulos como seus virtuais herdeiros políticos. Interessante perceber aqui que nenhum sindicalista e nenhum nome ligado à luta trabalhista foi citado pelo ex-presidente Lula, mas dois nomes que saem diretamente da luta dos movimentos sociais: da UNE e do MTST.

A fala do ex-presidente Lula, no evento de 7 de abril de 2018, foi: “E quero dizer a vocês, Guilherme e Manuela, a vocês dois, que para mim é motivo de orgulho pertencer a uma geração, que está no final dela, ver nascer dois jovens disputando o direito de ser presidente da República neste país.”[3]

O fato de ter florescido bastante no Brasil nessas duas últimas décadas, e continuar a mostrar intenso vigor político, faz dos movimentos sociais com pautas específicas e identitárias os protagonistas da nova ordem política que se instala no país. Não é possível mais, para políticos e partidos tradicionais, principalmente aqueles da esquerda, discutir a sociedade sem adentrar no mundo das lutas desses movimentos sociais, discutir direitos de mulheres e LGBTs, discutir a forma como os movimentos de luta por moradia serão inseridos nos programas de governo etc. Mas, como sua própria existência propõe, esses movimentos não lutam por mudanças sociais profundas, mas por conquistas pontuais naquilo que é sua pauta particular.

Foto de Ricardo Stuckert.
Foto simbólica: ex-sindicalista que chegou à presidência aponta herdeiros políticos oriundos dos movimentos sociais em evento político em Curitiba no dia 28 de março de 2018.

Usando um exemplo do próprio pré-candidato Guilherme Boulos, que é um dos coordenadores nacionais do MTST, um movimento de luta por moradia, lê-se na orelha da edição brasileira do livro Sobre a questão da moradia[4], de Friedrich Engels, o seguinte comentário de Boulos:

“A bandeira dos movimentos populares, em defesa da expropriação desses imóveis para destiná-los aos trabalhadores sem-teto, é levantada por Engels nos textos escritos entre 1872 e 1873. No entanto, ele é categórico em afirmar que o problema da moradia não poderá ser definitivamente solucionado nos marcos do capitalismo. [...] O ressurgimento de legiões de trabalhadores sem-teto, após 2008, nos Estados Unidos e na Europa, além da explosão de ocupações urbanas no Brasil, mostram que o prognóstico de Engels estava certo. O problema não é de construção de casas, mas da lógica social”.

Pode-se também citar a frase emblemática de Malcolm X, do começo de 1963: “O capitalismo costumava ser como uma águia, mas agora se parece mais com um urubu, sugando o sangue dos povos. Não é possível haver capitalismo sem racismo”.

Interessante notar que tanto Boulos, na questão específica da luta por moradia urbana, quanto Malcolm X, na luta contra o racismo, percebem que a única forma de superar definitivamente os problemas de suas pautas específicas é a mudança na forma de organização social, política e econômica. Enquanto viger o sistema capitalista de produção, as pautas específicas dos movimentos sociais conquistarão apenas vitórias parciais e voláteis, sempre sujeitas a retrocessos quando a conjuntura política assim o permitir. A realidade política do Brasil hoje é um exemplo claro de retrocesso de antigas conquistas sociais.

E essa conclusão de Boulos e Malcolm X pode ser estendida a todas as outras pautas específicas. Os direitos da população LGBT, por exemplo, pode também sofrer retrocessos graves se a composição do novo Congresso Nacional a ser eleito em 2018 for ainda mais conservadora do que a atual. Os direitos femininos também sofrerão perdas significativas, como a luta contra a criminalização do aborto e o direito à licença-maternidade.

Fica evidente, então, que a questão não está em lutar apenas por determinados direitos ou conquistas sociais, pois todos poderão ser perdidos na primeira oportunidade política. A força de todos esses movimentos deveria ser canalizada para a luta de fundo que permeia todas essas questões, como bem evidenciaram Boulos e Malcolm X nas suas observações: a luta de classes.

Lutar pela superação do racismo, pela conquista dos direitos de mulheres e LGBTs, por mais e melhores moradias, por acesso à terra, por um estado plenamente laico etc., é lutar pela transformação das condições sociais, políticas e econômicas do país. Todas as lutas resumem-se na luta de classes, que é uma perspectiva que foi, de certa forma, abandonada pelos movimentos sociais. E quem sempre protagonizou essa luta foi o movimento trabalhista, justamente por representar explicitamente a classe trabalhadora oprimida e explorada pelo capital.

Tem-se, então, uma contradição colocada: dum lado o crescimento e as conquistas de movimentos sociais determinados. Doutro lado, a falta de perspectiva de mudança substancial na organização da sociedade que, mesmo reconhecida como a única solução definitiva para os problemas específicos, não é o objetivo desses mesmos movimentos.

Pode-se concluir, a partir dessas observações, que, não obstante sua força em conquistar adeptos e suas poucas e parciais vitórias, esses movimentos sociais têm contribuído pela manutenção dos problemas contra os quais lutam, fazendo, mesmo cheios de boa intenção, o jogo do capital na reprodução das condições sociais e econômicas em que se vive. Ou, como diz a citação do próprio Boulos acima, “o problema não é de construção de casas, mas da lógica social”.

Por fim, cabe como tarefa de todos os setores da esquerda a convergência dos movimentos de lutas específicas, incorporando seus objetivos, num grande movimento de lutas que priorize a conquista do poder pelos trabalhadores, evidenciando a realidade social e histórica da luta de classes, tal como propõe Alexandra Kollontai[5], que, em meio à luta pelos direitos políticos das mulheres, realça a necessidade da luta pelo socialismo:

“Em 1917, no dia 23 de fevereiro[6], no dia internacional das mulheres trabalhadoras, as mulheres saíram corajosamente às ruas de Petrogrado[7]. O movimento das mulheres foi forte e com um número de militantes que surpreendeu as forças do czar. Este dia foi memorável na história do movimento daquele país. As mulheres ergueram a tocha da revolução proletária e incendiaram todo mundo. A revolução de fevereiro se iniciou a partir deste dia. O dia das trabalhadoras foi organizado pela primeira vez como parte da campanha pela igualdade política para as mulheres e da luta pelo socialismo.”



[1] A entrevista completa está aqui:
https://brasil.elpais.com/brasil/2018/04/29/politica/1525035482_181891.html
[2] Ver Estratégias para uma esquerda racional, de Eric J. Hobsbawm, Paz e Terra, 2012.
[3] O discurso completo está disponível na página do Brasil de Fato:
https://www.brasildefato.com.br/2018/04/07/leia-a-integra-do-discurso-historico-de-lula-em-sao-bernardo/
[4] Ver Sobre a questão da moradia, de Friedrich Engels, Boitempo, 2015.
[5] Ver O dia das mulheres, de Alexandra Kollontai, publicado em Moscou em 1920.
[6] O dia 23 de fevereiro de 1917 no antigo calendário juliano, usado à época na Rússia, equivale ao dia 8 de março no calendário gregoriano, usado hoje por quase todos os países.
[7] A cidade de Petrogrado, na Rússia, hoje chamada de São Petersburgo, era a capital do país em 1917.

quinta-feira, 27 de julho de 2017

A aula magistral de Angela Davis

A presença de Angela Davis na UFBA, em Salvador, no dia 25 de julho de 2017, foi uma efeméride ímpar.

Muitas reflexões profundas podem ser feitas a partir de suas provocações intelectualmente brilhantes. Mas uma frase, no meio de tantas outras, motivou essa digressão:

"Não reivindicamos ser incluídas numa sociedade profundamente racista e misógina, que prioriza o lucro em detrimento das pessoas."

Primeiro, o reconhecimento tácito de que o sistema capitalista de organização econômica e social privilegia o lucro. Mas não é apenas a assunção do privilégio do capital sobre o humano, mas em seu detrimento, contra ele. O que ela nos ensina é que entre lucro e humanização há um vácuo, uma dissensão incompatível, um vale intransponível. Ou se está dum lado, ou do outro, não há consenso possível.

Bem, Marx e Engels chamaram essa incompatibilidade de "luta de classes". E essa luta entre lucro e homem é o motor da história.

Angela então nos ensina que a realpolitik praticada pelas esquerdas "sem frescuras" (assim se autodenominam) que assumiram o poder nos últimos 15 anos só poderia mesmo dar no que deu, porque não há "Carta aos brasileiros" que sirva de ponte de travessia nesse abismo entre capital e trabalho.

Lula certamente chamaria Angela Davis de "fresca".

Segundo, a estratégia de não se incluir num sistema que intenta apenas reproduzir as relações de produção. Não, a estratégia correta é transformar o sistema, reformular as relações, revolucionar a participação.

Angela, em suas palavras tão breves em Salvador, martela profundamente nossas mentes anestesiadas pelas falsas promessas de conciliação de classes, de jogos de "ganha-ganha", tão propalados pela miséria da nossa hodierna filosofia "sem frescuras".

Ou seja, a superação dos problemas conexos da sociedade desigual, como o machismo, o racismo, a homofobia, a misoginia etc, dar-se-á pela transformação do sistema de produção, e não pela inserção dos excluídos no processador de moer carne humana a favor do lucro.

A luta não é pela possibilidade de dar às negras a oportunidade de serem também carne a ser triturada pelo lucro, mas de dar às negras o protagonismo político e social de mudar o mundo. Só isso.

E, para encerrar, lembrei-me de trecho da música "Podres poderes", do baiano Caetano:

"Enquanto os homens exercem
Seus podres poderes
Índios e padres e bichas
Negros e mulheres
E adolescentes
Fazem o carnaval
"

segunda-feira, 18 de abril de 2016

Eu tenho um lado

Eu sempre soube que eu tinha um lado.

Minhas experiências de vida sempre tocaram num ponto: o sentimento de impotência diante da desigualdade e da injustiça social, e o aperto no coração por conta da dor dos excluídos. Isso me incomoda muito.

Nunca pensei em apenas “cuidar da vida” esquecendo-me dos outros. Eu sempre achei que deveria fazer algo. E não apenas orar ou torcer, mas fazer algo de concreto que pudesse significar, mesmo que em escala ínfima, um auxílio àqueles que vivem em condições de risco social. Saí às ruas da minha Salvador durante quase oito anos, todas as noites de terça-feira, para, juntamente com outros abnegados companheiros, alimentar e ajudar homens, mulheres e crianças de rua, que experimentavam a fome, o frio e o medo.

Sim, eu tenho um lado.

E isso gritou ainda mais alto dentro de mim nessa noite chuvosa de domingo, o 17/04/2016. Pois estávamos na rua lutando pela democracia e pela legalidade, e ao meu redor inúmeros homens e mulheres de rostos enrugados e mãos calejadas, gente simples, gente que sofre todas as mazelas sociais e econômicas desse país injusto, sob a chuva, enrolados em suas bandeiras vermelhas dos movimentos sociais, único apoio verdadeiro dessa gente.

Vê-los ali, ao meu lado, faces molhadas de suor e chuva, reivindicando, gritando, vibrando, torcendo e mostrando toda a força dessa gente de fibra, fez-me ter a certeza de que caminhar ao seu lado é o que de mais honroso e belo eu poderia fazer. Lutar por eles jamais, mas lutar com eles. Mostrar que gente como eu, da classe média, bem nutrida e estudada, pode e deve ser parceira nesse caminhar, porque, mesmo sem lutarmos a mesma luta da vida, sonhamos o mesmo sonho de igualdade, solidariedade, justiça e respeito.

Sim, eu tenho um lado.

E o meu lado é o lado do autêntico povo brasileiro e das suas lutas históricas por mais direitos e acesso a serviços públicos decentes. É o lado do trabalhador que acorda muito cedo para honrar seu mísero salário de explorado. É o lado dessa gente de corpos transformados pelo esforço de uma vida de muita dor e luta, mas que traz dentro de si um universo incomparável de amor e beleza.

Sim, eu tenho um lado.

E você, meu amigo, que não entende a razão de eu ter esse lado, só posso lamentar e torcer para que você também um dia acorde e se junte a nós nesse esforço de transformar nosso país num lugar de oportunidades iguais e justiça para todos. E porque essa luta não para, não cessa, também precisaremos de você. E nesse caminho, não se engane, haverá derrotas, percalços e tristezas, mas o horizonte que vislumbramos, os sonhos que temos, fazem-nos ter a certeza de que não poderíamos jamais ter outro lado.

Sim, eu tenho um lado. E esse é o meu lado!
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