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domingo, 14 de janeiro de 2018

Sobre desempenho escolar e questões sociais

Realçar as diferenças de desempenho entre gêneros, etnias ou classes, puro e simplesmente, é fazer um desserviço à sociedade. É claro que o Estadão -- e outro sem número de misóginos, racistas e privilegiados -- argumentará seu direito de divulgar um número que, na superfície da questão, está correto.
Essa manchete será usada por muitos como "prova" da inferioridade feminina em relação ao desempenho cognitivo, como se tal nota fosse, sozinha, parâmetro de medida de capacidade de desempenho intelectual.

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Lembro-me sempre do interessante estudo da Unesco que participei entre os anos 2004 e 2005, coordenado pelas doutoras Mary Garcia Castro e Miriam Abramovay, e que resultou no livro "Relações raciais na escola: reprodução de desigualdades em nome da igualdade", lançado pela Unesco em 2006.
(Quem quiser baixar o livro em PDF, segue o endereço:
http://unesdoc.unesco.org/images/0014/001459/145993por.pdf)
O foco da pesquisa da Unesco era estudar e entender a diferença de desempenho entre alunos negros e brancos nas escolas brasileiras de ensino médio e fundamental. Aqui não entrarei nos detalhes metódicos do estudo, que podem ser conferidos no texto do livro.
Após a longa e cuidadosa pesquisa, verificaram-se vários problemas em relação à atenção, ao cuidado e ao respeito devido aos alunos negros, que, certamente, além de todas as questões de ordem classista, social e econômica, influenciavam para o fraco desempenho, medido em notas, dos alunos negros.
Ou seja, havia mais e graves problemas para além da superfície breve do resultado das notas escolares.
Só para exemplificar, estive dentro de salas de aula, durante um mês em cada turma de escola de ensino fundamental, acompanhando o dia a dia letivo, os eventos festivos, as conversas entre professor e alunos e entre alunos, as idiossincrasias e os comportamentos dos atores envolvidos.
Assustavam meu olhar treinado e atento as diferenças de tratamento e de expectativas criada em torno de cada criança -- os relatos mais detalhados podem ser lidos no texto do livro, sem qualquer identificação de escolas, professores e alunos, evidentemente --. Crianças negras eram, quase sempre, impedidas de manifestação ou restritas de atenção por parte de professores e dirigentes. Vi situações que apenas meu compromisso com a pesquisa impediu que interviesse, tamanho absurdo racista vivido em sala de aula. E o mais interessante é que, ao terminar o período de observação em sala de aula, os professores foram questionados sobre algumas situações vistas por mim, e não se perceberam sendo racistas e dando tratamento diferente aos alunos. Uma professora chegou a chorar diante do que foi anotado na observação da pesquisa.
Para além do desempenho inferior aos alunos brancos, o que se pôde observar em sala de aula é que as crianças negras eram praticamente impedidas de terem melhor desempenho por conta do injusto sistema racial em que vivemos.
Portanto, apenas afirmar que uma classe, um gênero ou uma etnia possui desempenho escolar inferior a outro, sem analisar todos os problemas de fundo que compõem o fato observado, é fazer o jogo mais abjeto que apenas reproduz o preconceito e favorece a discriminação na sociedade e, em particular, na sala de aula. Fico a imaginar como alunos e professores darão significado nas escolas a esses números que estão prenhes de significado social.
O Estadão jogou para a plateia. A sua típica plateia.

sexta-feira, 30 de junho de 2017

"A esquerda branca me enoja"

O título da postagem foi a resposta dada a um comentário crítico acerca dum prêmio recebido pelo jornalista Leonardo Sakamoto(1), por conta de sua luta contra o trabalho escravo. Não quero entrar no mérito da questão do prêmio do jornalista reconhecidamente de esquerda, e que já apanhou bastante na internet e nas redes sociais(2), mas comentar a resposta dada por uma mulher negra, e de esquerda, ao fato.
O fascismo tem como maior característica a interdição ao diálogo, feita sempre por meio da violência, em quaisquer de suas facetas: física, verbal ou simbólica. Apesar de sempre vinculado à ideologia da direita, já que usado de forma explícita por alguns estados de direita, como o emblemático caso italiano da época de Mussolini, o fascismo em si não seria uma ideologia de estado, mas uma forma de relação com o mundo: é-se ou não fascista, se me permito ou não o diálogo pleno com o diverso(3).
O fascismo também se caracteriza pela negação de tudo o que não se encaixa no pensamento do indivíduo ou do grupo social. O fascista nega. Nega diferenças, nega a qualidade de seus oponentes, nega conquistas e processos históricos, enfim, nega. E sua negação, como já dito, dá-se pela violência dialógica ou física. Então, sempre que vejo alguém argumentando por meio da desqualificação do interlocutor, um sinal vermelho acende: é o fascismo!
Como corolário óbvio, o fascista especula somente a partir de dados imediatos, que não suportam juízo crítico, haja vista sua forma irrefletida e simplória de perceber a realidade complexa à sua volta.
Estando isso claro, resta-me, mais uma vez, tratar da diferença entre esquerda e direita, que são conceitos sempre muito confusos na cabeça de muita gente, inclusive algumas bem preparadas. Como a sociedade é basicamente dividida em duas classes sociais, cujo fundamento se dá a partir da propriedade dos meios de produção, ou seja, há os que detêm os meios de produção e os que os que alugam sua mão de obra aos que detêm os meios de produção(4). Chamemos essas classes de capital e trabalho. Então, como a sociedade está organizada a partir do embate entre os interesses dessas duas classes distintas, o que nomeamos de luta de classes, direita e esquerda são exatamente as posições assumidas nesse embate dialético entre capital e trabalho.
Dessarte, ser de esquerda é lutar pelo trabalho, suas conquistas e direitos. Ser de direita é privilegiar o capital e sua expressão máxima: o lucro advindo da exploração do trabalho.
Estando também esses conceitos claros, volto à frase que dá título a essa reflexão: "a esquerda branca me enoja". Bem, agora se pode perceber que, além de fascista, já que privilegia a interdição ao diálogo por meio da violência argumentativa, a frase perde todo o sentido quando qualifica a esquerda de branca. E seria tão estranha quanto adjetivá-la de preta, ou feminista, ou homofóbica. Não, a esquerda é apenas o lado que luta pelo trabalho. Nela não há cor, etnia, gênero ou fé, haja vista que todas as cores, etnias, gêneros e crenças estão presentes na classe trabalhadora.
Além disso, outra coisa parece não estar muito clara para aqueles que se entendem como de esquerda: a luta pela emancipação do trabalho na sociedade, dando-lhe o direito de gerir os meios de produção, engloba necessariamente todas as lutas conexas de emancipação humana: a luta dos negros, das mulheres, dos grupos LGBT, do laicismo, dentre outras. Assim, não faz sentido, dentro do discurso da esquerda, destacar como suprassocial a luta específica de grupos alijados de direitos sociais. Uma luta de mulheres, independente da classe social, é inócua e vazia, pois as mulheres só conquistarão efetivamente direitos iguais a partir da emancipação da classe trabalhadora como um todo. Aliás, as leis propostas na Rússia bolchevique, após a revolução de 1917(5), ilustram bem esse argumento.
Para finalizar, a autora da frase a alterou posteriormente, ficando assim editada: "o racismo da esquerda branca me enoja". A frase continua, infelizmente, sem nenhum sentido, pois todo racismo é nojento, seja ele da esquerda branca ou da direita preta, se é que essas categorias existem...
(2) SAKAMOTO, Leonardo. O que aprendi sendo xingado na internet. São Paulo, SP: LeYa, 2016.
(3) TIBURI, Marcia. Como conversar com um fascista. 6. ed. Rio de Janeiro, RJ: Record, 2016.
(4) VIANA, Nildo. Karl Korsch e a concepção materialista da história. São Paulo, SP: Scortecci, 2014.
(5) LIMA, Francis M. 100 anos da Revolução Russa e a luta das mulheres. in América Socialista, n. 10, abr 2017. São Paulo, SP: Esquerda Marxista, 2017.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Estatuto do Nascituro: ameaça para todos

Fonte: Aborto em Debate
http://www.abortoemdebate.com.br/wordpress/?p=1168

O Projeto de Lei 478/07, mais conhecido como Estatuto do Nascituro, ameaça a saúde de todos os brasileiros e brasileiras, mas principalmente das mulheres grávidas, em especial as enfermas, as mais pobres, e as sem acesso a informação e cuidados de saúde adequados.

Basicamente, o que o Projeto de Lei faz é dar “plena proteção” e “prioridade absoluta” ao nascituro, definido como “o ser humano concebido, mas ainda não nascido”, incluindo os seres humanos “concebidos in vitro, mesmo antes da implantação no útero da mulher“, além de determinar a punição de qualquer “violação” de seus direitos, por “ação ou omissão”. Com isso, impede a pesquisa com células-tronco embrionárias, restringe o acesso de mulheres grávidas ao aborto terapêutico e a uma série de tratamentos de saúde, e pode criminalizar gestantes por atos tão simples como fazer o trabalho doméstico. Cria ainda a surreal situação em que um embrião fertilizado in vitro, mantido no estoque de uma clínica de fertilização, merece uma proteção mais ampla do que uma pessoa já nascida, e um embrião implantado há um dia no útero da mulher teria prioridade de atendimento (por exemplo, em assistência médica) sobre um recém-nascido.

Veja abaixo quais são os problemas com o Estatuto do Nascituro:

- Proibição do aborto terapêutico e restrição da gestante a tratamentos de saúde contra doenças como o câncer: O Art. 4º do PL diz que o nascituro deve ter assegurado, com absoluta prioridade, entre outras coisas, seu direito à vida, à saúde e ao desenvolvimento. “Absoluta prioridade” significa prioridade sobre qualquer direito de qualquer pessoa, inclusive os da mulher que o carrega. Isso significa que a gravidez não pode ser interrompida mesmo que ameace a saúde da gestante, pois a “vida” do feto tem prioridade sobre a saúde da mulher. Como o Art. 5º do projeto determina que qualquer “violência” contra o nascituro será punida na forma da lei, um tratamento de saúde que ameace a continuidade da gravidez pode ser considerado ilegal, com a consequente punição dos profissionais responsáveis por ele e da paciente. Quando os abortos terapêuticos foram proibidos na Nicarágua, em 2006, os profissionais de saúde passaram a trabalhar com tanto medo de persecução penal e perda das licenças profissionais, que a consequência foi que gestantes tornaram-se incapazes de ter acesso a tratamentos como quimioterapia, radioterapia, cirurgia cardíaca e até mesmo analgésicos, pois tudo isso pode afetar o embrião ou feto. O medo de participar em um processo de abortamento (espontâneo ou provocado), mesmo que seja para interrompê-lo, é tão grande que mulheres com hemorragia simplesmente não recebem atendimento médico. Segundo a organização internacional Human Rights Watch, só no primeiro ano de legislação proibitiva, 82 mulheres morreram.

- Criminalização de mulheres grávidas e do aborto espontâneo: Em países com legislações que punem atos contra o nascituro, como os EUA, mulheres grávidas são tratadas como criminosas em potencial. Em alguns Estados, elas podem ser investigadas e processadas se consideradas responsáveis por atos que ameacem o feto. Em outros, podem ser internadas contra sua vontade em hospitais, mesmo que a existência de filhos pequenos ou a necessidade de trabalhar tornem a estadia extremamente desaconselhável. Em alguns lugares, podem ser condenadas por homicídio se consideradas responsáveis pelo nascimento de um bebê natimorto. Essa lei criminalizaria principalmente mulheres pobres por não ter acesso a informação e a uma rede de apoio adequada. Talvez fazer trabalhos domésticos pesados, carregar crianças no colo, andar de moto ou de bicicleta, apenas para citar alguns exemplos, não sejam os atos mais recomendáveis para uma mulher com uma gravidez de risco. Mas muitas vezes não existe alternativa para a mulher que é pobre, mãe solteira, não pode deixar de trabalhar e não tem ninguém que possa cuidar de sua familia, ou que possa fazê-lo permanentemente. Embora algumas gestações exijam que a mulher faça pouco ou nenhum esforço, o repouso absoluto não é uma opção para a grande maioria das mulheres brasileiras. E nenhuma mulher deveria ser punida por tentar prover sua subsistência e a de sua família.

Mesmo quando o ato é claramente prejudicial, como o fumo ou o uso de drogas, a criminalização do comportamento da mulher durante a gravidez é desaconselhada por todos os organismos de saúde que já conduziram estudos sobre o tema. Nos EUA, onde gestantes podem ser presas e perder a guarda dos filhos por uso de drogas durante a gravidez, algumas cidades chegam ao cúmulo de conduzir testes toxicológicos em todas as pacientes que chegam ao hospital para dar à luz ou buscando cuidados pré-natais. Se é descoberta a presença de drogas no organismo, a polícia é chamada e a mulher é imediatamente presa (algumas ainda sangrando devido a complicações do parto). A Associação Americana de Saúde Pública, Associação Médica Americana, e o Conselho Nacional de Uso de Drogas e Álcool são contra a persecução criminal de gestantes por uso de drogas, já que numerosos estudos comprovam que tal política evita que as mulheres procurem cuidados pré-natais e tratamento contra a dependência, causando muito mais mal a sua saúde e à do feto.

Existe ainda o problema de determinar exatamente o que foi responsável pela “violação ao direito do embrião”. Há que se perguntar se é sensato submeter uma mulher que acabou de passar pela experiência traumatizante de um aborto espontâneo (evento que pode ocorrer em cerca de 25% das gestações) a uma investigação para determinar sua culpa no evento, e quem sabe puni-la por isso. É um verdadeiro atentado contra sua saúde mental, considerando que a maioria das mulheres experimenta sensação de culpa pelo abortamento, independentemente de sua responsabilidade nele, e sintomas de depressão e luto que, sem tratamento, podem inclusive agravar-se para um quadro de depressão clínica. Apontar o dedo para esta mulher em busca de sua parcela de culpa no evento é violar o direito constitucional de não sofrer tratamento cruel, desumano ou degradante.

- Proibição e criminalização de pesquisas com células-tronco: a pesquisa com células-tronco embrionárias, realizada com embriões fertlizados “in vitro” , é de enorme importância na busca de cura para doenças hoje consideradas incuráveis, como a distrofia muscular progressiva (doença que gera degeneração dos músculos, culminando em comprometimento dos músculos cardíacos e respiratórios), diabetes, doenças neuromusculares, renais, cardíacas ou hepáticas. Ela é realizada com embriões que seriam descartados por clínicas de fertilização in vitro. O Supremo Tribunal Federal decidiu em 2008 que esse tipo de pesquisa não viola o “direito à vida” do embrião, pois este direito é inexistente, e integra o direito fundamental à saúde. Já que o Estatuto do Nascituro pretende punir qualquer violação ao direito à vida de embriões, inclusive os fertilizados in vitro, o Projeto passa por cima da interpretação do STF, guardião e intérprete maior da Constituição, viola o direito inviolável à saúde, e pretende reinstaurar a vergonhosa situação em que embriões que poderiam salvar vidas eram descartados no lixo.

CHAMADO PARA AÇÃO: ASSINE A PETIÇÃO CONTRA O ESTATUTO DO NASCITURO
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