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sábado, 24 de fevereiro de 2018

Divaldo, a liberdade e a censura à crítica

“A crítica se torna, assim, elemento básico da filosofia e da prática espírita. Mas é evidente que deve ser exercida por pessoas que tenham condições de cultura e bom-senso para criticar”.

“Sem crítica não há correção de erros, não há renovação de conceitos nem abertura de perspectiva para evolução”.

J. Herculano Pires

A filosofia moderna, surgida no bojo das transformações econômicas e sociais do período da renascença, legou-nos valores e saberes que se tornaram referências ao pensamento e à prática contemporâneos.

Uma das mais importantes mudanças na postura desse homem moderno, renascentista, em relação ao conhecimento foi o questionamento do argumento de autoridade, muito comum em épocas anteriores. Descartes, marco imperativo desse momento, propõe a dúvida a tudo e a todos como etapa necessária a qualquer tentativa de construção gnosiológica. Mas são os pensadores iluministas que concluirão esse caminho árduo propondo, a partir dessa nova postura e centrando todo o esforço nos valores humanos, uma sociedade mais livre, laica e plural, inaugurando então o mundo contemporâneo.

Faço essa introdução breve para comentar o texto do médium baiano Divaldo Franco publicado no Jornal A Tarde, de Salvador, BA, no dia 22 de fevereiro de 2018. O texto trata, evidentemente, das muitas críticas recebidas pelo autor após sua confusa resposta a um jovem, que o perguntou sobre “ideologia de gênero”, num evento ocorrido em Goiânia, GO, no dia 13 de fevereiro de 2018.

O texto de Divaldo Franco publicado no Jornal A Tarde está aqui:
http://www.febnet.org.br/blog/geral/colunistas/artigos-espiritas/liberdade-de-consciencia/

Abstive-me de comentar o conteúdo de sua fala no referido evento, e assim pretendo continuar fazendo, por conta da inesperada associação, feita por Divaldo Franco, de questões políticas ao tema proposto pelo jovem. O que aqui faço é apenas comentar a contrarreação do famoso médium às críticas recebidas.

O autor começa seu texto colocando-se como vítima dos “cerceadores da liberdade dos outros”, sendo os “outros” identificados como aqueles que discordam de seu pensamento (“quando as ideias apresentadas não obedecem aos seus padrões de pensamento e de conduta”).

Retornei às críticas feitas às ideias do médium, e que estão disponíveis na rede virtual de informações, e não consegui identificar a qual ele se refere, uma vez que nenhuma das que tive acesso propõe calá-lo ou cercear sua liberdade de opinião. Ou o autor se refere a alguma crítica bem específica que não vi ou li, ou parece que confundiu alhos com bugalhos. Afinal, é preciso, no trato dialógico, não confundir crítica com censura.

Adiante, acusa seus críticos de não dialogar com ideias, mas com insultos de ordem pessoal, e de perseguir “os idealistas”, grupo ao qual se inclui e, obviamente, exclui seus críticos. Aqui também vale a ressalva que nas reações mais divulgadas à sua fala não houve ataque pessoal à figura do indivíduo Divaldo Franco, mas críticas contundentes ao seu pensamento. Parece que o médium não leu ou viu as críticas recebidas, tornando sua queixa infundada.

No mais, é no texto proposto como contrarreação que o autor vocifera ad hominem, reagindo de forma pessoal contra seus críticos, usando adjetivos à mancheia: rudes, agressivos, insanos, intimidadores, arrogantes, temerários, perseguidores, invejosos e despeitados. Talvez tenha esquecido um ou outro, diante da sua profusão.

Acho que Divaldo perdeu uma ótima oportunidade de argumentar sobre as críticas recebidas, preferindo, em vez disso, atacar aqueles que com ele não concordam. Mas isso é um direito seu.

E é também um direito seu inalienável, e disso ninguém discorda, escolher um lado político e defender publicamente essa opção; nutrir determinados valores morais e fazer deles sua pregação; crer e praticar sua fé livremente; pensar e expressar seu pensamento.

O problema é achar que seu pensamento não deve e não pode receber críticas, considerando-se um “grande líder perseguido” sempre que alguém argumentar contra suas ideias. Esse tipo de argumento é anterior à luz do modernismo e do iluminismo filosóficos, e retoma a ideia medieval da autoridade do “líder” ou do “idealista” como verdade inquestionável. A crítica também é um direito inalienável e compõe o quadro do direito às liberdades de consciência e de expressão, o que parece ter esquecido o médium em seu texto.

E, para ilustrar sua defesa, o autor cita um pensamento atribuído a Voltaire, não se apercebendo, porém, que a citação inicia afirmando o desacordo entre as ideias, portanto sem dispensar a crítica, defende a liberdade de expressão. É preciso estar pronto para receber críticas sempre que se expõem ideias, sob o risco de parecer inapto ao diálogo aberto e maduro.

Não se pode olvidar que as adjetivações pessoais na troca de ideias, tão profícua no texto do famoso baiano, é uma vã tentativa de diminuir seus interlocutores, impondo-se como autoridade e liderança a ser seguida, objetivando calar o oponente de ideias. Isso sim pode-se chamar de censura.

Aliás, Divaldo poderia ouvir mais os jovens com quem estava no referido evento, pois isso nos ensinam de forma simples: “não sabe brincar, não desce ao play”.

sábado, 17 de fevereiro de 2018

Divaldo, a "ideologia de gênero" e a reação progressista

Num evento espírita promovido pela Federação Espírita de Goiás (FEEGO), Divaldo Franco, o famoso médium e orador espírita baiano, participou no dia 13/02/2018 de uma sessão de perguntas e respostas com jovens. No referido evento, um jovem pergunta a Divaldo:

“O que dizer sobre a ‘ideologia de gênero’?”

E eis a resposta, um tanto quanto confusa, mas é a resposta:

“É um momento de alucinação psicológica da sociedade.
[...]
Haroldo disse, em síntese, que se trata de um momento muito grave da cultura social da Terra e que é, naturalmente, algo que deveremos examinar em profundidade, mesmo porque nós vamos olhar a criança, graças à sua anatomia, como sendo o tipo ideal. E a criança nesse período não tem discernimento sobre o sexo. A tese é profundamente comunista, e ela foi lançada por Marx, sob outras condições. Que a melhor maneira de submeter um povo não era escravizá-lo economicamente, era escravizá-lo moralmente, como nós vemos através de vários recursos que têm sido aplicados no Brasil nos últimos 9 anos, 10, em que o poder central tem feito todo esforço para tornar-se o patrão de uma sociedade em plena miséria econômica e moral. Porque os exemplos de algumas dessas personalidades são tão aviltantes e tão agressivos que se constituíram legais e, porém, nunca morais. Todas essas manifestações que estamos vendo, graças à “República de Curitiba”, cujo presidente é o doutor Moro, e deve ser o desnudar da hipocrisia e da criminalidade. Aliás, o evangelho recomenda que não deveremos provocar o escândalo, e o nosso venerando juiz não provocou escândalo, atendeu a uma denúncia muito singela e, no entanto, levantou o véu que ocultava crimes hediondos, profundos, desvios de dinheiro que poderia acabar no Brasil com a tuberculose, com as enfermidades que vêm atacando recentemente, poderia educar toda a população e dar-lhe o que a nossa Constituição exige: trabalho, repouso, dignidade, cidadania. Mas, determinados comportamentos de alguns do passado muito próximo estabeleceram o marxismo disfarçado e a corrupção sob qualquer aspecto como princípio ético. A teoria de gênero é para criar na criança, no futuro cidadão, a ausência de qualquer princípio moral. Uma criança não sabe discernir, somente tem curiosidade. No mesmo banheiro, um menino e uma menina irão olhar-se biologicamente, sorrir e perguntar o de que se tratava aquele aparelho genésico que é desconhecido. E então nós defendemos repudiar de imediato e apelar para aqueles em quem nós votamos, somos responsáveis, e gritar para eles que somos contra, totalmente contra essa imoralidade ímpar. Vão me perdoar uma blasfêmia agora para adultos, os espíritas somos muito omissos. No nome falso e na capa da humildade achamos que tudo está bem, mas nem tudo está bem. É necessário que nós tenhamos voz. O apóstolo Paulo jamais silenciou ante o crime e a imoralidade. E Jesus muito menos, ele deu a César o que era de César, mas não deixou de dar a Deus o que é de Deus. Muitas aberrações nós silenciamos, afinal, disfarçadamente, vivemos numa república democrática. Os nossos representantes lá chegaram pelo nosso voto. Já está na hora de acabar de votar por uma alpercata japonesa, já está na hora de deixar de votar por causa do emprego que vai dar ao nosso filho, pensarmos na comunidade, uma comunidade justa não faltará emprego para todos, uma sociedade justa de homens de bem, de mulheres dignas, naturalmente estabelecerá as leis de justiça e de equidade, então nós evitaremos essas aberrações: o aborto provocado, esse crime hediondo, que está sendo tentado tornar-se legal. Por mais que seja legal, nunca será moral. Não somos contra quem aborta por essa ou aquela razão, falamos em tese: matar é crime, seja qual for a aparente justificativa. E agora, com a tese de gênero, estamos indiferentes, e de um momento para outro, pela madrugada, nossos dignos representantes adotam. Falávamos ontem a respeito de cartilhas do Ministério da Educação depravadas, para corromper as crianças, e que as escolas estão devolvendo ao Ministério. Que Ministério da Educação é esse? Que estabeleça fatos. Deu uma indignidade muito grande. Os pais devem vigiar os livros de seus filhos e, naturalmente, recusarem. Nós temos o direito de recusar, nós temos o dever de recusar. Victor Hugo já nos falava há mais de 150 anos: ‘o grande pecado é a omissão’. E Kardec nos falou que não era nobre apenas não fazer o mal, porque não fazer o bem é um crime muito grande. E então precisamos ser mais audaciosos, espíritas definidos, termos opinião. A doutrina nos ensina, e para os jovens, eu direi que há uma ética, liberdade, o sexo é livre, livre sim, mas ele não tem a liberdade de indignificar a sociedade. Poderemos sim exercer o sexo, é uma função do corpo e também da alma, mas com respeito e com a presença do amor. Portanto, a teoria de gênero, jamais!”


Um grupo de 65 espíritas, autodenominados progressistas, elaborou o seguinte manifesto, em reação às esdrúxulas declarações de Divaldo:

"Espíritas progressistas respondem à entrevista coletiva de Divaldo Franco e Haroldo Dutra no congresso de Goiás:

Espíritas que somos, os abaixo-assinados, tornamos pública a nossa desaprovação a diversas opiniões que foram expostas no vídeo que circulou essa semana nas redes sociais, e que depois foi retirado do Youtube. Declaramos que elas não nos representam e não representam o espiritismo, pois são apenas opiniões pessoais de seus autores, e que, em nosso entender, carecem de fundamento teórico e científico.

Aliás, médiuns e oradores não têm autoridade para falar em nome do espiritismo. Ninguém tem essa autoridade, nem mesmo instituições federativas. O espiritismo é uma ideia livre, cuja maior referência é Kardec, mas cujos livros também não podem ser citados como bíblia. Para manifestarmos ideias e posições do ponto de vista espírita, segundo a própria metodologia proposta por Kardec, temos de dialogar com a ciência de nosso tempo, usar argumentos racionais e adotar de preferência posturas que estejam de acordo com os princípios básicos da ética espírita, que são os da liberdade de consciência, amor ao próximo, fraternidade, entre outros.

O movimento espírita brasileiro está longe da unanimidade em todos os temas, sobretudo os que se referem a questões contemporâneas e, por isso, é importante delimitar as posições, para deixarmos claro que declarações como as que foram feitas neste vídeo não representam o espiritismo.

Dessa forma, rebatemos alguns pontos da referida entrevista:

1) Divaldo referiu-se à República de Curitiba e a seu suposto “presidente”, Sérgio Moro. Não existe uma República de Curitiba, pois segundo nossa Constituição só há uma República a ser reconhecida em nosso território, e é a República Federativa do Brasil. E a referência a um juiz federal de primeiro grau como o Presidente desta acintosa República é um grave desrespeito ao Estado, à nação brasileira, atribuindo a tal república poderes inexistentes em nossa Constituição. Além dessa nociva postura marcadamente messiânica e de culto à personalidade, pode dar a entender que o restante do povo brasileiro não presta e que não há pessoas boas espalhadas pelo Brasil dando o melhor de si.

2) Divaldo chama esse mesmo juiz de “venerando” – o que é altamente questionável, dadas as críticas de grandes juristas nacionais e internacionais à parcialidade desse juiz e a seus atos de ilegalidade, que feriram a Constituição, e às notícias que correm na mídia de seu conluio com determinados segmentos e partidos.

3) Divaldo assume uma postura claramente partidária, contrária ao PT – o que é de seu pleno direito, mas nunca em nome do espiritismo – fazendo, porém, uma crítica rasa, com uma miscelânea conceitual, chamando o governo desse partido de marxista e assumindo um discurso próprio da polarização extremista, manipulada e sem consistência que invade nossas redes sociais e nossa vida política, contribuindo para os momentos de incertezas e de medos em que vivemos.

4) Há uma fala extremamente problemática que se refere à chamada “ideologia de gênero”. Não existe “ideologia de gênero” – este é um termo criado por setores fundamentalistas da Igreja Católica e depois adotado pelas Igrejas Evangélicas. Existe sim uma área de pesquisa no mundo que se chama “Estudos de Gênero” – que teve influência de Michel Foucault, Simone de Beauvoir e Judith Buttler. Os “Estudos de Gênero” se dedicam a procurar entender como se constitui a feminilidade e a masculinidade do ponto de vista social, se debruçam sobre questões de orientação sexual, hetero, homo, transsexualidade – ou seja, todos fenômenos humanos, que estão diariamente diante de nossos olhos. Podemos concordar com algumas dessas conclusões, discordar de outras, deixar em suspenso outras tantas. Esse olhar é muito recente na história e ainda estamos apalpando questões profundas e complexas – e em nosso ponto de vista espírita, não é possível ter plena compreensão delas sem a chave da reencarnação. Uma abordagem puramente materialista jamais vai dar conta do pleno entendimento do psiquismo humano. Mas estamos muito longe de ter gente reencarnacionista competente, fazendo pesquisa séria, para dialogar com pesquisadores com abordagens meramente sociológicas ou psicológicas. Então, nós espíritas, não temos ainda melhores respostas que os outros e não podemos, por cautela, seguir a cartilha dos setores conservadores mais radicais de generalizar esses estudos sob o termo, usado aqui pejorativamente, de ideologia, para desqualificá-los como “imoralidade ímpar”. Parece-nos que uma dose de humildade científica, prudência filosófica e bom-senso faria bem a todos nesse ponto, especialmente quando o domínio sobre os corpos e a sexualidade sempre foi um ponto central para as religiões ocidentais.

5) Divaldo revela também completo desconhecimento dessa área de estudos de gênero, alinhando-a ao marxismo e ao comunismo. As grandes lideranças desses estudos estão nos Estados Unidos e na Europa. Aliás, os estudiosos desse tema encontram-se em diversas correntes de pensamento, desde marxistas até pós-modernos de diferentes matizes e até liberais. Ao fazer isso, mais uma vez, mostra a adesão a um discurso pronto, midiático, que ressoa nos setores evangélicos e católicos mais radicais, que primam por taxar qualquer ideia ou debate que lhes desagrade com o termo “comunista” – um grande espantalho generalizante, simplista e esvaziado de sentido, mas que tem sido eficaz, ao longo dos tempos, para dar forma a medos sociais e, assim, orientar o ódio e o ressentimento das pessoas contra certos alvos.

Por fim, deixamos aqui as seguintes afirmações:

• Nenhum médium ou orador pode falar em nome de todos os espíritas ou em nome do espiritismo. Isso é, por si só, desonestidade intelectual;

• Quando um espírita, sobretudo se tem influência sobre a comunidade, manifesta uma ideia ou uma opinião, tem por dever se informar sobre os temas de que está falando, usar referências confiáveis e estar em consonância com a lógica, com a ciência e com o bom senso.

• Deve também, preferencialmente, defender os direitos dos mais fragilizados socialmente, no caso, as mulheres, as crianças, os membros da comunidade LGBT+, que são objeto dessas discussões dos estudos de gênero, justamente por estarem vulneráveis a todo tipo de violência e desrespeito em nossa sociedade, além dos negros e negras, as juventudes periféricas e as pessoas com deficiência.

• Não deve alimentar discursos de ódio partidário e nem medidas punitivas contra quem quer que seja: nossa bandeira é a da educação, da fraternidade entre todos e da paz, comprometidos com a democracia, a justiça social e a regeneração da sociedade."

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

Reunião de desobsessão

uma abordagem kardecista

1 INTRODUÇÃO

Há uma recomendação difundida no movimento espírita brasileiro para que não se permita a presença de assistidos em reuniões de desobsessão realizadas nas casas espíritas. E o que se observa é que essa sugestão é, amiúde, fundamentada nalgumas obras psicografadas, principalmente em livros do espírito André Luiz, através das mediunidades de Francisco Xavier e de Waldo Vieira, e nalgumas psicografias do médium Divaldo Franco. A própria Federação Espírita Brasileira (FEB), em seus textos e manuais, também recomenda essa diretriz para tais reuniões.

Alguns exemplos dessa recomendação são também encontrados em livros como os do Projeto Manoel Philomeno de Miranda, que afirma, numa dessas obras, ser a privacidade –não apenas entendida como o caráter não público dos encontros mediúnicos, mas de qualquer presença estranha ao corpo de trabalhadores da casa– uma “condição normativa” e “princípio norteador” (Pugliese e outros, 2001, p.95), pois tais reuniões “não têm platéia, nem doentes interessados em curar-se, nem curiosos” (p.96). Num outro livro desse mesmo projeto, insiste-se: “Não há necessidade de franquear as reuniões aos apelantes do socorro desobsessivo” (Projeto..., 2000, p.140).

Entretanto, à revelia da disseminação dessa orientação prática às reuniões de desobsessão, a leitura cuidadosa das obras kardecistas aponta para um caminho oposto ao indicado pelo movimento espírita brasileiro. Entende-se que a presença do obsidiado não lhe traz inconvenientes e nem à reunião em questão, ao contrário, ela é benéfica ao seu melhoramento e deve ser incentivada pelas casas espíritas que buscam fundamentar suas práticas nos ensinamentos de Kardec. O que não invalida, e isso deve estar desde já bem explícito, o trabalho de assistência à distância, também citado nos textos e obras de Kardec como importante instrumento de auxílio.

Justifica-se esse estudo pela tentativa de esclarecer aqueles que, porventura, fazem suas reuniões com a presença de assistidos e sentem-se constrangidos diante dessa diretriz, como se descobrissem “erros” nas suas práticas mediúnicas, apesar do estudo contínuo e aprofundado e do bem que conseguem levar a tantas pessoas que procuram os recursos da desobsessão oferecidos em suas casas espíritas.

Para embasar a opinião sobre o tema, utiliza-se, sem parcimônia, a obra kardecista, que traz em vários pontos exemplos e discussões sobre a teoria e a prática das obsessões e desobsessões. Há referências óbvias em O livro dos espíritos, principalmente no capítulo 9 da parte 2, em O livro dos médiuns, espalhadas aqui e acolá, mas principalmente no capítulo 23 da parte 2, em A gênese, principalmente nos capítulos 14 e 15, além de inúmeros artigos espalhados pelos 12 anos da Revista espírita, editada por Kardec. Utiliza-se também, para servir de guia e modelo, das descrições dos Evangelhos que relatam as atividades de cura de Jesus durante sua experiência na Terra.

2 ARGUMENTOS DE INTERDIÇÃO

Primeiramente, cabe rever alguns dos argumentos mais utilizados para defender a ausência dos assistidos nas reuniões de desobsessão. Classificam-se em três principais: as opiniões dalguns espíritos sobre o assunto, principalmente aqueles que se utilizam de médiuns renomados; a posição da FEB, defendida através dum opúsculo intitulado Orientação ao centro espírita; e, por último, algumas citações de obras kardecistas, utilizadas descontextualizadamente.

Dos três argumentos, o mais comumente usado pelos defensores da interdição são as opiniões de espíritos sobre tal procedimento, trazidas através dalgumas obras psicografadas, todas contrárias à presença dos assistidos nas reuniões de atendimento mediúnico. Uma das obras mais citadas é a Desobsessão, ditada pelo espírito André Luiz aos médiuns Francisco Xavier e Waldo Vieira, que se propõe a ser uma orientação “à constituição e sustentação dos grupos espíritas devotados à obra libertadora e curativa da desobsessão” (Xavier, Vieira, 2004, p.18). Nessa obra, que chega a tratar da organização física do espaço utilizado pela reunião, indicando até onde devem situar-se cadeiras e bancos ou o que devem comer ou não os seus partícipes, há a orientação clara do impedimento do acesso à reunião dos que a ela chegam necessitados de auxílio, estando a esses reservados os procedimentos inicias como orientação fraterna e passes, impedindo-se a entrada posterior nas tarefas propriamente mediúnicas (p.95). Somente em casos excepcionais, de gravidade confirmada, é que o autor considera a possibilidade de acolhimento do assistido no interior da reunião como “assistência precisa” à sua enfermidade (p.96).

Já na obra Conduta espírita –psicografada pelo médium Waldo Vieira–, André Luiz é direto na sua afirmação: “abster-se da realização de sessões públicas para assistência a desencarnados sofredores” (Vieira, 1986, p.90). Tal assertiva é muito usada em textos e artigos correntes para fundamentar o impedimento da presença do obsidiado nas reuniões. Entretanto, aqui se tem um grave problema de compreensão: o que se argumenta é a participação do atendido no transcorrer da própria reunião, jamais uma reunião que seja aberta ao público. E pelas citações das obras referidas do autor espiritual, o que ele claramente coloca é a interdição da publicidade da reunião, e não a interdição absoluta da presença do atendido em seus procedimentos, apesar das ressalvas que faz para tal presença.

E é interessante comentar que vários autores, tal como acima se vê, referem-se à interdição da publicidade da reunião, com o quê aqui se concorda, sem entretanto tratar especificamente da presença de obsidiados, como se lê em Obsessão/desobsessão, de Suely Schubert, ao sugerir que trabalhos mediúnicos “jamais devem ser abertos ao público” (1985, p.130); também em Mediunidade, de Richard Simonetti: “as reuniões mediúnicas devem ser privativas” (2003, p.59); ou ainda em Mediunidade, de Edgard Armond: “A assistência deve ser afastada dos ambientes de trabalho” (1999, p.203). É importante insistir em destacar que o que se propõe não é uma reunião aberta ao público, mas uma reunião de caráter estritamente privado, com a presença de assistidos, jamais espectadores.

São também usados como argumentos contrários à presença do assistido nas reuniões de desobsessão algumas obras do médium Divaldo Franco. Por exemplo, no livro do espírito João Cleofas, Suave luz nas sombras, o autor espiritual enumera alguns requisitos para a boa consecução de uma reunião, a saber: a afinidade entre participantes; a lealdade de propósitos; o comportamento no bem; a sinceridade entre os membros; o desinteresse pela frivolidade; e a vigilância na atividade (Franco, 1994, p.108-109). Opinar, como se lê em alguns artigos constantes em periódicos espíritas, que esses requisitos seriam incompatíveis com a presença do assistido é ilação desprovida de fundamento prático e racional, pois o que trata o autor espiritual é quanto à qualidade das reuniões mediúnicas, e não sobre a presença ou não de assistidos, que, como se verá, em nada desqualifica uma reunião.

Outro exemplo é a opinião do espírito Vianna de Carvalho, retirada do livro Atualidade do pensamento espírita, psicografado também pelo médium Divaldo Franco, que assevera: “Incontestavelmente, para que se realize o tratamento das obsessões, não se torna condição essencial a presença do paciente. Essa deve ser evitada, em razão do seu próprio estado de desequilíbrio psíquico e emocional” (Franco, 1988, p.172). Aqui o que se lê é uma argumentação comum: a de que a presença do enfermo poderia causar ainda mais problemas a ele devido ao seu estado de fragilidade psíquica e emocional. Isso não é real, pois os benefícios resultantes de tal prática são excepcionalmente maiores do que aqueles sem a sua presença. Seria como questionar se o tratamento médico se faz melhor sem a presença do paciente ou com a sua presença, mesmo que ele se sinta, por vezes, constrangido com alguns aspectos do tratamento.

Já o espírito Bezerra de Menezes, na obra Nas fronteiras da loucura, assinada pelo espírito Manoel Philomeno de Miranda e ditada ao médium Divaldo Franco, opina “que a presença dos que se candidatam aos benefícios não é indispensável”, e, de forma ainda mais veemente, insiste: “é o despreparo de quem se arroga as condições de dirigente de sessões que responde pela incompetência” (Franco, 1982, p.120), falando daqueles dirigentes que levam seus assistidos às reuniões de desobsessão.

É certo que esses espíritos acima mencionados têm uma credibilidade acima de qualquer questionamento, mas não invalida o fato de serem espíritos imperfeitos como todos nós, que trazem suas opiniões e idéias mitigadas pelas experiências individuais, e limitadas ao seu nível de conhecimento e evolução espiritual. Portanto podem, e devem, ser tratados como pessoas, iguais a todos, com seus preconceitos e imperfeições, apenas despojados de seu invólucro carnal. Não é porque emitiram suas opiniões que se deve, a partir de então, segui-las, como se fossem revelações de novas verdades plenas, transcendentais. Justo por considerá-los como todos os espíritos envolvidos de forma direta com o labor terreno, não se deve vê-los como mentores, nem os adjetivar de veneráveis, superiores ou outros qualificativos idólatras, como sói acontecer no místico movimento espírita brasileiro. O respeito por eles é demonstrado através da análise rigorosa de seus conteúdos, lição inesquecível dos espíritos que participaram das obras kardecistas. Posto isso, cabe agora comparar suas opiniões com o que se encontra nos textos básicos do espiritismo, e percebe-se, então, não haver fundamento nessa restrição prática da atividade mediúnica, o que ficará explicitado mais adiante nesse texto.

O segundo argumento utilizado para justificar a opinião contrária à presença dos obsidiados nas sessões de atendimento mediúnico é uma recomendação da Federação Espírita Brasileira (FEB), aprovada pelo Conselho Federativo Nacional, firmada através de obra já citada, que se propõe a normalizar o funcionamento das casas espíritas, conforme o texto original. Nessa obra, a FEB argumenta a participação “de muitos estudiosos e dedicados obreiros” (FEB, 1985, p.11) para transformar suas opiniões em “princípios e normas básicas” (FEB, 1985, p.11), interpretando as orientações dadas pelo espírito André Luiz, na obra Desobsessão, na qual afirma a necessidade desse tipo de reunião: “Com base nessa afirmativa do espírito André Luiz, no intróito da obra Desobsessão, [...] e nas instruções dadas por ele neste livro para a realização das reuniões privativas (sem público) destinadas à desobsessão, elas deverão ser assim processadas” (FEB, 1985, p.34)[1], e aí se seguem as normas estabelecidas, definindo etapas e informando até mesmo os minutos a serem gastos em cada uma delas.

Acredita-se dever ser avaliada por todos os espíritas a criação de “princípios e normas básicas” a partir da opinião dum único espírito, e ainda mais, se cabe ao espírito essa tarefa ou aos encarnados. E mais grave, se se é possível falar em normalização dentro do meio espírita, mesmo que se queira argumentar a unificação. Outra avaliação que se faz quanto a essa argumentação é o esquecimento que a FEB, e todas as federações e uniões estaduais e municipais, são um conjunto de homens e mulheres envolvidos com idéias e propostas bem definidas, e que, portanto, nunca serão a representação plena de todo o movimento espírita, espalhado numa plêiade incontável de casas espíritas pelo Brasil. Por conta dessa reunião de pessoas em torno da FEB, é que se pode compreender algumas opiniões por ela emitidas, como as do Reformador, seu órgão de divulgação doutrinária, em julho de 1953, que afirma que “todo aquele que crê nas manifestações dos espíritos é espírita; ora, o umbandista nelas crê, logo o umbandista é espírita”, e vai além dizendo que “os que aceitam o fenômeno espírita como manifestação de ‘Satanás’, ou como ocasionado somente por forças desconhecidas, esses não são espíritas; mas aqueles que o têm como produzidos por espíritos, esses devem ser considerados como adeptos do espiritismo, isto é, espiritistas, admitam ou não a reencarnação e pratiquem ou não rituais que nós não adotamos” (FEB, 1953). É fato, e não se poderia esquecer, que a FEB se retratou no próprio Reformador de setembro de 1977, através de um editorial afirmando que a “Doutrina espírita é o conjunto de princípios básicos, codificados por Allan Kardec, que constituem o espiritismo. Estes princípios estão contidos nas obras fundamentais, que são: O livro dos espíritos, O livro dos médiuns, O evangelho segundo o espiritismo, O céu e o inferno e A gênese” (FEB, 1977). Essas citações são apenas para que não se esqueça os limites de atuação da FEB enquanto um dos órgãos de aglutinação do movimento espírita, mas nunca a representante do espiritismo, pois sempre estará sujeita às opiniões de pessoas da sua direção, e que podem ir de encontro aos princípios fundamentais do espiritismo, como a defesa longa e quase ingênua das obras de Roustaing, que se fazem constar inclusive em seus estatutos.

O terceiro, e último, dos principais argumentos trazidos pelos textos e artigos que buscam defender a idéia da interdição é mais profundo e requer uma análise mais acurada. Trata-se de citações de obras kardecistas com o propósito de fundamentar a recomendação da ausência do assistido nas reuniões mediúnicas. Se essa foi uma recomendação explícita de Kardec em suas obras, não há porque não acolher tal recomendação. Os fragmentos citados são geralmente os seguintes: 1) em O livro dos médiuns, no capítulo 29 da parte 2, itens 331 e 332, capítulo que trata das reuniões e sociedades espíritas (Kardec, 1996, p.427-428). Nesses fragmentos, Kardec versa sobre as condições ideais para que se tenha uma boa reunião espírita, falando da necessária homogeneidade de pensamentos e da dificuldade de encontrá-la em reuniões muito numerosas; e 2) na Revista espírita, de fevereiro de 1866, que descreve os procedimentos do Sr. Dombre em alguns processos de desobsessão acontecidos em Marmande, com alguns comentários de Kardec, em que afirma os benefícios das curas operadas à distância (Kardec, 1993c, p.38-43).

3 A EXPERIÊNCIA KARDECISTA

Inicialmente, devem-se contextualizar as palavras de Kardec nesses trechos citados de O livro dos médiuns. A Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, como se lê no seu regulamento, “tem por objeto o estudo de todos os fenômenos relativos às manifestações espíritas e suas aplicações às ciências morais, físicas, históricas e psicológicas” (Kardec, 1996, p.445), e Kardec ainda reafirma em artigo da Revista espírita: “Com este objetivo, recolhemos os fatos, examinamo-los, escrutamo-los naquilo que têm de mais íntimo, nós o comentamos, discutimo-los friamente, sem entusiasmo, e foi assim que chegamos a descobrir o admirável encadeamento em todas as partes dessa vasta ciência que toca os mais graves interesses da humanidade. Tal foi, até o presente, senhores, o objeto de nossos trabalhos, objeto perfeitamente caracterizado pelo simples título de Sociedade de Estudos Espíritas que adotamos” (Kardec, 2001, p.132). Portanto, quando fala no necessário controle de pessoas estranhas às reuniões, Kardec tem toda a razão, pois seria inconveniente a presença de estranhos que viessem às reuniões mediúnicas de estudo com o firme propósito de ver fraude e charlatanismo, ou que simplesmente buscassem seu convencimento das realidades espirituais, pois no mesmo artigo diz ainda: “as nossas sessões não são sessões de demonstração, sua publicidade não alcançaria, pois, o objetivo, e teria graves inconvenientes; com um público sem seleção, trazendo mais curiosidade do que desejo verdadeiro de se instruir, e ainda mais desejoso de criticar e escarnecer, seria impossível ter o recolhimento indispensável para toda manifestação séria” (p.131). Colocada essa questão com clareza, compreendem-se bem suas afirmações contidas no capítulo 29 de O livro dos médiuns, utilizadas, acredita-se, inadequadamente como refutação kardecista à presença de assistidos às reuniões de desobsessão. Kardec não realizou reuniões de desobsessão, a não ser de forma esporádica, e sob alguma solicitação, como se vêem exemplos espalhados por toda a Revista espírita.

Se não eram os argumentos kardecistas contidos em O livro dos médiuns referentes a reuniões de desobsessão, fica, dessarte, resolvida a primeira questão acerca das citações de Kardec, resta tratar da citação da Revista espírita que descreve os procedimentos do grupo a qual pertencia o Sr. Dombre em processos de desobsessão em Marmande. A passagem citada, contida na Revista espírita de fevereiro de 1866, não é a única que relata os fatos ocorridos em Marmande, há ainda outras cinco citações, respectivamente em fevereiro, março e junho de 1864, janeiro de 1865 e em junho de 1867. Todas essas descrições do Sr. Dombre sobre os fatos ocorridos em Marmande e circunvizinhança trazem os procedimentos de seu grupo no acompanhamento e cura de processos obsessivos. Um dos casos mais interessantes é, sem dúvida, o da jovem Thérèse B., que tinha crises regulares, todas as tardes, havia mais de oito meses, narrado nos textos de 1864. Ao entrar em contato com o guia espiritual do médium, Sr. L., que acompanhara o Sr. Dombre, foram instados a evocar todas as noites o espírito obsessor e a moralizá-lo, chamando-o pelo nome de Jules. Do dia 11 de janeiro, dia da primeira reunião, ao dia 18, os procedimentos foram feitos regularmente na casa da jovem vitimada pela grave obsessão, com as presenças de parentes e da própria menina. É no dia 16 de janeiro que Jules, o espírito obsessor, vira-se para a jovem e diz: “Terna criança (se dirige à sua vítima presente à sessão), tu que escolhi por minha presa, como o abutre a doce pomba, ora por mim, e que o nome de condenado se apague de tua memória. Recebi o batismo de amor das mãos do anjo do Senhor, e hoje visto a roupa da inocência. Pobre criança, desejo que tuas preces dirigidas por mim ao Senhor me livrem logo do remorso que vai-me seguir como uma expiação justamente merecida” (Kardec, 1993a, p.176). Ao final do relato do Sr. Dombre, Kardec tece alguns comentários: “Devemos um justo tributo de elogio aos nossos irmãos de Marmande, pelo tato, a prudência e o devotamento esclarecido dos quais deram prova nessa circunstância. Por este brilhante sucesso, Deus recompensou sua fé, sua perseverança e seu desinteresse moral, porque nisso não procuraram nenhuma satisfação de amor-próprio; provavelmente, não teria ali ocorrido o mesmo se o orgulho tivesse deslustrado a sua boa ação” (p.178). Os textos falam por si, não seriam necessários comentários adicionais, mas por conta da evidência, ressalta-se o procedimento do Sr. Dombre nesse caso, que mantém a presença da menina (de apenas treze anos!) durante a evocação do espírito que a atormenta; e, mais importante, os comentários gravemente elogiosos de Kardec aos procedimentos corretos do grupo de Marmande, refutando qualquer hipótese de fundamentar a ausência do assistido nas reuniões de desobsessão através de textos kardecistas.

Já no texto de janeiro de 1865, num novo relato de cura de obsessão feita pelo círculo espírita de Marmande, vê-se outra jovem, também de treze anos, Valentine Laurent, ter crises convulsivas que se renovavam várias vezes por dia. Após o uso de recursos vários, médicos e párocos, o grupo resolveu evocar seus guias espirituais e receberam a recomendação de evocar o espírito obsessor, nomeando-o Germaine. Convidando o pai da jovem, realizaram uma primeira sessão em 16 de setembro de 1864, com a finalidade de iniciar o trabalho de moralização de Germaine e de mostrar ao pai da vítima a verdadeira razão do problema de sua filha. A partir do dia 17 de setembro, o Sr. Dombre freqüentou a casa da família diariamente para testemunhar as crises e conhecer melhor o problema. No dia 21 de setembro, convidou pai e filha, a menina Valentine, para estarem presentes à reunião (Kardec, 1993b, p.10), e, lá, o grupo recebeu de seus guias uma mensagem a ser passada ao espírito: “Germaine, sois nossa irmã; esta jovem é também nossa irmã e a vossa. Se outrora alguma ação funesta vos ligou, e fez pesar sobre vós duas a justiça divina, não podeis dobrar o Juiz supremo. [...] Nesta família onde provocais a maldição, não será falado de vós senão o bem; haverá ali reconhecimento; essa criança pedirá também por vós, e se o ódio vos desuniu, o amor um dia vos reunirá” (p.10-11). Continua mais adiante o Sr. Dombre: “O dia 23 passou sem crise, como o da véspera. À noite a jovem vai com seu pai à sessão, para ouvir Germaine por quem ela já levava muito interesse” (p.16). E ainda no mesmo texto, após o processo de moralização de Germaine já ter resultados, lê-se o diálogo entre a menina e o espírito: “‘Dizei-me todos, tu sobretudo, pobre jovem, que me perdoais. Tenho necessidade de ouvir esta palavra sair de teu coração. Dai-me, se vos apraz, essa consolação’. A jovem Valentine lhe disse: ‘Sim, Germaine, eu vos perdôo; muito mais, vos amo!’” (p.17). Aqui, mais uma vez, os textos citados são límpidos, não restando qualquer argumentação contrária quanto ao fato da presença da jovem nas reuniões, e mais, participando inclusive dos diálogos com o espírito obsessor.

Só os fatos relatados nos casos de Marmande já seriam bastante suficientes para rechaçar qualquer argumentação contrária à presença dos assistidos nas reuniões de desobsessão. Todavia, não se limitará a eles, para não haver qualquer possibilidade de dúvidas sobre esse ponto. Visita-se agora um caso relatado pelo Sr. Delanne, no número de maio de 1865, no qual conta: “Numa outra sessão, fez-se a evocação do espírito que obsidiava, há dez anos, um operário chamado Joseph, agora em vias de cura. Jamais fiquei tão penosamente emocionado quanto em presença das dores do paciente no momento da evocação; calmo de início, foi tomado de repente de sobressaltos, de espasmos e de tremores nervosos; assim tomado por seu inimigo invisível e se agitou em convulsões terríveis; o peito se enche, sufoca, depois, retomando sua respiração, se contorce como uma serpente, rola na terra, se levanta de um pulo, se bate na cabeça. Não pronunciava senão palavras entrecortadas, sobretudo a palavra: Não! Não! O médium, que é uma senhora, estava em prece; ela tomou a pena, e eis que o invisível deixando sua presa por um instante, se apoderou de sua mão, e o teria assassinado se o deixasse fazê-lo” (Kardec, 1993b, p.143). Aqui Delanne relata curas através de seu grupo espírita, com a presença do assistido.

Ainda outro caso, relatado no número de junho de 1865, de uma cura realizada pelo grupo de espíritas de Barcelona, na Espanha, informa que a Sra. Rose N., atingida muitos anos “por ataques espasmódicos que se repetiam muito freqüentemente e com violência” (Kardec, 1993b, p.173), recorreu a vários recursos médicos e religiosos, sem qualquer resultado. Em julho de 1864 o grupo teve notícias do fato e se propôs a auxiliar a pobre senhora, afirmando o relato: “Aceitamos com zelo essa ocasião de fazer uma boa obra; reunimos vários adeptos sinceros, e fizemos vir a doente. Alguns minutos bastaram para reconhecer a causa da doença de Rose; era, com efeito, uma obsessão das mais terríveis. Tivemos muita dificuldade em fazer o obsessor vir ao nosso chamado. Ele foi muito violento, nos respondeu algumas palavras sem nexo, e logo se lançou com uma fúria sobre sua vítima, à qual deu uma crise violenta que foi, no entanto, logo acalmada pelo magnetizador” (p.174). O relato afirma que depois de algumas reuniões mediúnicas de moralização do espírito, sempre com a presença da vítima, essa estava completamente curada. Após o caso exposto, Kardec faz algumas considerações e afirma: “Os fatos de curas como este, como os de Marmande e outros não menos meritórios, sem dúvida, são um encorajamento; são também excelentes lições práticas que mostram a quais resultados se podem chegar pela fé, pela perseverança, e uma sábia e inteligente direção” (p.177). Aqui cabem alguns comentários adicionais, além de Kardec elogiar peremptoriamente o trabalho realizado pelo grupo de Barcelona. Enquanto o espírito Bezerra de Menezes, segundo citações já comentadas, chama os dirigentes de reuniões de desobsessão, que contam com a presença dos assistidos, de incompetentes e despreparados, Kardec os chama de sábios e inteligentes.

Se ainda restar um mínimo de dúvida sobre esse ponto, cita-se ainda o caso relatado na Revista espírita de junho de 1867, no artigo Nova sociedade espírita de Bordeaux, no qual o seu presidente, Sr. Peyranne, descreve as atividades desse grupo espírita no seu relatório anual, e dentre essas atividades fala da desobsessão: “Há de resto, em Bordeaux, muitos casos de obsessão, e uma sessão por semana especialmente consagrada à evocação e à moralização dos obsessores está longe de ser suficiente, uma vez que o médium curador, acompanhado de um médium escrevente, de um evocador e, freqüentemente, de certos de nossos irmãos, vai ao domicílio dos doentes, a fim de treinar os obsessores e ali virem mais facilmente, lado a lado” (Kardec, 1993d, p.178). Após esse e outros relatos, Kardec comenta: “Não podemos senão aplaudir o programa da Sociedade de Bordeaux e felicitá-la por seu devotamento e a inteligente direção de seus trabalhos. [...] A maneira pela qual ela procede para o tratamento das obsessões é ao mesmo tempo notável e instrutiva, e melhor prova de que essa maneira é boa, é de que ela triunfa” (p.181). Aqui se vê Kardec, mais uma vez, elogiando a direção da casa pela forma como conduz seus trabalhos, e sobre a reunião de desobsessão, especificamente, é contundente, adjetivando-a de “notável e instrutiva”.

Como já dito no início desse estudo, e demonstrado pelas citações da Revista espírita, Kardec dá preferência à presença dos assistidos nas reuniões de acompanhamento mediúnico de desobsessão, não obstante não invalidar a possibilidade do atendimento à distância. Inclusive, na região de Marmande, no artigo de fevereiro de 1866, que foi utilizado para afirmar a contrariedade de Kardec em relação à presença de assistidos em reuniões de desobsessão, há um relato de uma cura de obsessão operada à distância. Nele, o assistido, um camponês vitimado “de uma loucura de tal modo furiosa, que perseguia as pessoas a golpes de forcado para matá-las, e que na falta de pessoas, atacava os animais do galinheiro” (Kardec, 1993c, p.40), residia numa aldeia distante algumas léguas da região de Marmande. A família do camponês foi orientada a interná-lo em uma casa para alienados, mas antes de executar tal orientação, “um de seus parentes tendo ouvido falar das curas obtidas em Marmande, em casos semelhantes, veio procurar o Sr. Dombre e lhe disse: ‘Senhor, me disseram que curais os loucos, é por isso que venho vos procurar’” (p.40). A partir desse momento, não sem antes consultar seus guias espirituais, o grupo de Marmande passou a evocar o espírito obsessor do camponês, e solicitou que o parente os procurasse em Marmande a cada dois dias para dar notícias sobre o assistido. Após oito dias de reuniões, conseguiram moralizar o espírito que perseguia o camponês, que passou a apresentar melhorias sensíveis em seu comportamento social. Kardec se vê admirado com o resultado e comenta: “Poder-se-ia colocar à conta da imaginação as curas operadas à distância, sobre pessoas que jamais se viram, sem emprego de nenhum agente material qualquer” (p.41). Percebe-se, portanto, que Kardec, longe de recriminar a presença do assistido, antes se entusiasma com os resultados obtidos, apesar da sua ausência.

Mas em vários casos cuja presença do atendido é inviável, talvez pela distância ou pela impossibilidade de locomoção (problema bem superado pelo grupo de Bordeaux), o acompanhamento à distância e as preces são o melhor meio de assisti-lo. Um exemplo que se vê na Revista espírita de janeiro de 1863, quando discute os fenômenos de Morzine, ilustra essa possibilidade. É uma cura através de preces relatada por um membro da Sociedade Espírita de Paris, de uma jovem que casou de forma contrariada, o que “levou-a a uma alteração em suas faculdades mentais” (Kardec, 2000, p.5). Um espírito superior orientou-o assim: “A idéia fixa dessa senhora, por sua própria causa, atrai, ao seu redor, uma multidão de espíritos maus que a envolvem com seu fluido, mantendo-a em suas idéias, e impedindo que cheguem a ela as boas influências. Os espíritos dessa natureza pululam sempre nos meios semelhantes ao que ela se encontra, e são, freqüentemente, um obstáculo à cura dos enfermos. No entanto, podeis curá-la, mas é preciso para isso uma força moral capaz de vencer a resistência, e essa força não é dada a um só. Que cinco ou seis espíritas sinceros se reúnam todos os dias, durante alguns instantes, e peçam com fervor a Deus e aos bons espíritos para assisti-la; que vossa ardente prece seja, ao mesmo tempo, uma magnetização mental; não tendes, para isto, necessidade de estar junto dela, ao contrário; pelo pensamento podeis levar sobre ela uma corrente fluídica salutar [...]” (p.6).

Em fevereiro de 1863, ainda tratando dos problemas de Morzine, Kardec relata um delírio sofrido por um senhor de seu conhecimento que reside em outra cidade da província. Atendido por médicos, foi diagnosticada loucura e recomendado que fosse internado numa casa de saúde. Dispondo-se a ajudar, Kardec consulta um espírito sobre o problema, e esse afirma: “Esse senhor não é louco, mas da maneira a que isso se prende, poderia tornar-se; bem mais, poderia matá-lo. O remédio para o seu mal está no próprio espiritismo, e é tomado em contra-senso” (Kardec, 2000, p.35). Kardec então pergunta: “Poder-se-ia agir sobre ele daqui?” (p.35), e o espírito responde: “Sim, sem dúvida; podeis fazer-lhe o bem, mas vossa ação é paralisada pela má vontade daqueles que o cercam” (p.35). A pergunta de Kardec, se para ele fosse normal a ausência do assistido em suas reuniões, soaria incompreensível. Claro que se perguntou, é porque não estava convicto da eficácia do atendimento à distância.

Citam-se agora alguns trechos do Evangelho, conforme o capítulo 15 de A gênese, nos quais Jesus opera curas em homens possessos. Em Mc 1, 21-27, lê-se que “achava-se na sinagoga um homem possesso de um espírito impuro, que exclamou: – Que há entre ti e nós, Jesus de Nazaré? Vieste para nos perder? Sei quem és: és o santo de Deus. – Jesus, porém, falando-lhe ameaçadoramente, disse: Cala-te e sai desse homem. – Então, o espírito impuro, agitando o homem em violentas convulsões, saiu dele. Ficaram todos tão surpreendidos que uns aos outros perguntavam: Que é isto? Que nova doutrina é esta? Ele dá ordem com império, até aos espíritos impuros, e estes lhe obedecem” (Kardec, 1984, p.327-328). O homem doente estava na sinagoga, no meio de todos, e lá Jesus expulsa o espírito impuro. Em Mt 9, 32-34, apresentam a Jesus “um homem mudo, possesso do demônio” (p.328), que ele cura no meio do povo. Em Mc 9, 13-28, Jesus pede, em torno de uma grande multidão, ao pai de um rapaz, possesso de um espírito mudo, que lho traga para curá-lo. Em Mt 12, 22-28, apresentam-lhe um possesso surdo e mudo que ele cura no meio do povo. Há ainda outras passagens de curas de obsessões realizadas por Jesus, e vê-se, em quase todas, o procedimento de levar os doentes à presença de Jesus, e a cura acontecer à vista de todos. Kardec, comentando essas passagens, diz que a “prova da participação de uma inteligência oculta, em tal caso, ressalta de um fato material: são as múltiplas curas radicais obtidas, nalguns centros espíritas, pela só evocação e doutrinação dos espíritos obsessores, sem magnetização, nem medicamentos e, muitas vezes, na ausência do paciente e a grande distância deste” (p.329-330), ressaltando, mais uma vez, o fato de que a cura das obsessões na ausência dos assistidos ser também uma possibilidade real.

A desobsessão é tarefa essencial de qualquer casa espírita que queira seguir as orientações dos espíritos que participaram da obra kardecista, como se vê em O livro dos médiuns, no qual os espíritos propõem como atividade regular, após pergunta de Kardec, reuniões que visassem o auxílio aos espíritos errantes: “P. Não se pode também combater a influência dos maus espíritos, moralizando-os? R. Sim, mas é o que não se faz e é o que não se deve descurar de fazer, porquanto, muitas vezes, isso constitui uma tarefa que vos é dada e que deveis desempenhar caridosa e religiosamente. Por meio de sábios conselhos, é possível induzi-los ao arrependimento e apressar-lhes o progresso” (Kardec, 1996, p.322); ou ainda em O livro dos espíritos, pergunta 476: “P. Mas, não pode acontecer que a fascinação exercida pelo mau espírito seja de tal ordem que o subjugado não a perceba? Sendo assim, poderá uma terceira pessoa fazer que cesse a sujeição da outra? E, nesse caso, qual deve ser a condição dessa terceira pessoa? R. Sendo ela um homem de bem, a sua vontade poderá ter eficácia, desde que apele para o concurso dos bons espíritos, porque, quanto mais digna for a pessoa, tanto maior poder terá sobre os espíritos imperfeitos, para afastá-los, e sobre os bons, para os atrair. Todavia, nada poderá, se o que estiver subjugado não lhe prestar o seu concurso. Há pessoas a quem agrada uma dependência que lhes lisonjeia os gostos e os desejos. Qualquer, porém, que seja o caso, aquele que não tiver puro o coração nenhuma influência exercerá. Os bons espíritos não lhe atendem ao chamado e os maus não o temem” (Kardec, 1995, p.251). E o método de evocação de espíritos também é colocado em O livro dos médiuns: “Convém igualmente que só com muita prudência se façam evocações, na ausência das pessoas que as pediram, sendo mesmo preferível que não sejam feitas nessas condições, visto que somente aquelas pessoas se acham aptas a analisar as respostas, a julgar da identidade, a provocar esclarecimentos, se for oportuno, e a formular questões incidentes, que as circunstâncias indiquem. Além disso, a presença delas é um laço que atrai o espírito, quase sempre pouco disposto a se comunicar com estranhos, que lhes não inspiram nenhuma simpatia” (Kardec, 1996, p.351).

4 CONCLUSÃO

Diante de evidências tão explícitas, de exemplos tão contundentes, seria, no mínimo, incoerência afirmar a adesão de Kardec à sugestão dos espíritos e da FEB para que não se façam reuniões de desobsessão com a presença dos atendidos. Ao contrário, como já afirmado, sugere-se às casas espíritas que verdadeiramente querem seguir as orientações kardecistas que façam, por caridade e eficácia, seus atendidos adentrarem suas reuniões de desobsessão, deixando o atendimento sem sua presença limitado às necessidades pontuais, como a distância ou uma doença impeditiva. Isso não significa afirmar que as reuniões tornar-se-ão públicas, visto que o caráter privativo e íntimo dos encontros mediúnicos continua muito bem preservado.

NOTA

[1] Em 2007 a FEB lançou uma nova edição desse manual, com novo texto aprovado pelo Conselho Federativo Nacional, seu órgão deliberativo, em reunião de novembro de 2006. Na nova edição, as referências à obra de André Luiz como base para a reunião de desobsessão desapareceram, sem, entretanto, deixar de referir-se à necessidade da ausência de assistidos na reunião: “Deve-se evitar a presença de pessoas necessitadas de auxílio espiritual durante a fase de manifestação dos espíritos” (FEB, 2007, p.63).

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