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sábado, 29 de abril de 2006

A verdade que liberta

Artigo de Sergio Mauricio publicado na coluna Religião do Jornal A Tarde, Salvador, BA, em 01/08/2005 .

A mensagem cristã divulgada há cerca de dois mil anos, apesar da idade, ainda é uma novidade entre nós, ainda é um evangelho, uma boa nova. Seu conteúdo moral e espiritual foi deturpado e conspurcado pelos homens durante esse longo período de história, tornando-se um amontoado de rituais tolos, crendices sem fundamentos e hierarquias e postos sacerdotais mais preocupados com os poderes terrenos do que com a construção do reino dos céus.

O espiritismo propõe reviver a mensagem original e inovadora ensinada por Jesus, a mensagem revolucionária da renovação pessoal através da prática do amor e da caridade e da busca da compreensão da condição humana diante da vida, mensagem bem representada pela máxima ditada pelo Espírito da Verdade constante n’O Evangelho segundo o espiritismo: “Espíritas! Amai-vos, eis o primeiro ensinamento; instruí-vos, eis o segundo”.

Mas, já próximo o seu sesquicentenário, o espiritismo, como todas as várias propostas de restauração do cristianismo, também sofre com a adulteração do tempo realizada pelos homens. A proposta espírita, fundamentada na moral de Jesus e ratificada pelas mensagens mediúnicas, é a do amor, da compreensão e do consolo, e esses objetivos deveriam ser alcançados, conforme os ensinos propostos pelos espíritos, através do esclarecimento, do incitamento à transformação pessoal de cada um que chega a uma casa espírita. Qualquer outra prática que não crie as condições de transformação pessoal, que não estimule o indivíduo à reflexão sobre seus valores morais e sobre suas ações na vida, é mero paliativo, é como uma distribuição de indulgências, é reviver o que de mais insensato a história humana já produziu em termos religiosos. E nós espíritas estamos fazendo isso.

Jesus ensinou que se conhecêssemos a verdade ela nos libertaria, faria de nós homens livres, e é esse o espírito do consolador, do paráclito anunciado que deverá estar conosco para sempre, é ele a compreensão da verdade, a verdade que explica e consola, pois só a bênção da verdade é consoladora. A função da casa espírita, portanto, como propulsora dos ideais cristãos, é a aspersão da verdade, pois só ela será capaz de libertar o homem que sofre, através do entendimento, da compreensão das razões profundas de sua necessidade de aprendizado nas experiências terrenas.

Muitas práticas espíritas, apesar de ostentarem o verniz da boa vontade, mais aprisionam o homem do que o libertam. Uma casa espírita que mantém, por exemplo, plantões de passes, além de grave erro doutrinário (Revista espírita, set.1865), estimula a irreflexão e a busca pelos meros analgésicos, que não são capazes de enfrentar seriamente o problema real da criatura humana. As pessoas vão em busca da solução dos seus problemas mais comezinhos, como as dificuldades financeiras, os dramas amorosos, as crises nos relacionamentos familiares, dentre outros; e a casa espírita deveria orientar, ensinar (e isso é verdadeiramente consolar), sobre a necessidade da transformação, da mudança de postura diante de problemas tão comuns à vida de todos nós que estamos nesse nível evolutivo, e não apenas aplicar passes ou fazer atendimentos de desobsessão. Ora, há espíritos em torno de nós a todo o momento, a nos acotovelar, no dizer de Kardec, e muitos querem-nos prejudicar e outros tantos ajudar-nos. Se a qualquer problema do cotidiano, a casa espírita for encaminhar o atendido a uma desobsessão, teremos que viver dentro dela, e o que é pior, numa versão moderna e espírita, cá estamos nós oferecendo as nossas indulgências. A desobsessão é remédio a ser usado com conhecimento profundo e aplicado em casos em que sua necessidade seja inconteste.


É preciso evangelizar, não apenas com palestras e cursos introdutórios de espiritismo, é preciso que o público que procura uma casa espírita –e principalmente seus condutores– tenha contato direto com leituras dos evangelhos sobre Jesus e das obras de Kardec, prática infelizmente pouco comum. As casas espíritas devem seguir o caminho da divulgação desses textos, que fundamentam o verdadeiro cristianismo, como única forma de cumprir o papel de consolador e de orientador, libertando o homem ao invés de aprisioná-lo, além de ser também o único caminho de se buscar a coerência doutrinária e a tão desejada unificação.

segunda-feira, 17 de abril de 2006

Reflexões sobre a democracia e o 31 de março

Artigo de Sergio Mauricio publicado no Caderno Cultural do Jornal A Tarde, Salvador, BA, em 15/04/2006.

“Apesar de você, amanhã há de ser outro dia
Eu pergunto a você onde vai se esconder da enorme euforia?
Como vai proibir quando o galo insistir em cantar?
Água nova brotando e a gente se amando sem parar”
Fragmento duma canção de Chico Buarque

Imagine-se uma situação na qual alguns proprietários de latifúndios ou exploradores de minas pelo país reunir-se-iam, anualmente, numa data que, para eles, fosse representativa, e comemorassem o sistema escravocrata de produção. Nesse dia, seus expoentes fariam discursos enaltecendo a escravidão como responsável pelo desenvolvimento sócio-econômico do país por mais de 300 anos, e afirmariam o orgulho por um passado glorioso de força e poder, além de situar a escravidão como um valor imutável que daria sentido à economia brasileira.

Tal possibilidade seria considerada por muitos como esdrúxula e insensata, pois feriria a história e a dignidade daqueles que foram suas vítimas. Mas, apesar do absurdo, não se poderia negar tal direito de manifestação a quem quer que fosse, pois essa situação hipotética se inseriria no contexto das liberdades individuais, como a liberdade de expressão e pensamento, e, portanto, legítima. Entretanto, e se essa estranha comemoração fosse patrocinada por um órgão oficial do Governo Federal, como o Ministério da Agricultura, por exemplo? Nessa nova suposição, não se falaria mais em simples exercício das liberdades individuais, mas num posicionamento formal do governo de turno sobre a questão, que deliberadamente assumiria uma opinião sobre o tema. Haveria, obviamente, uma inadequação dessa postura oficial, pois se mostraria tolerante com a prepotência e a arrogância em detrimento da luta em favor da liberdade e da igualdade sociais.

Essa ficção inaceitável acima descrita acaba de ocorrer no Brasil, é preciso apenas trocar nomes e fatos históricos: no último dia 31 de março, o comandante do Exército, general Francisco Roberto de Albuquerque, protagonizou um momento insólito quando divulgou uma nota em comemoração ao golpe militar que submeteu o país a uma ditadura que durou mais de 20 anos.

Na nota, divulgada como ordem do dia, e, por conseguinte, lida em todos os quartéis do país, o general afirma: “o 31 de março insere-se na história pátria e é sob o prisma dos valores imutáveis de nossa Força e da dinâmica conjuntural que o entendemos”. Para melhor apreender o profundo significado dessa afirmação, precisa-se recorrer à história do país durante a vigência da ditadura militar, que foi responsável por um horror indescritível, que matou e torturou um sem-número de brasileiros, apenas por pensarem de forma diferente. A pergunta imediata que não se cala é a que valores o general se referiu? Seriam a tortura, o assassinato, o desaparecimento, a perseguição política, as prisões ilegais, o exílio contumaz, os tais “valores imutáveis de nossa Força”? É o que naturalmente se entende.

Adiante reflete o autor-general que o golpe militar "une-se, vigorosamente, aos demais acontecimentos vividos, para alicerçar, em cada brasileiro, a convicção perene de que preservar a democracia é dever nacional”. O advérbio de modo “vigorosamente” não poderia ser mais bem empregado e ilustra com rigoroso primor aquele momento vivido pelo país. Mas daí a concluir que a participação do Exército objetivou “alicerçar a convicção perene” dos valores democráticos soa a escárnio. O país vinha duma curta experiência democrática, após a ditadura Vargas, e os cidadãos escolhiam seus representantes políticos, à revelia de todos os problemas inerentes à frágil e jovem democracia brasileira. Após o golpe ditatorial de 1964, as primeiras providências tomadas pelos militares golpistas, através do Ato Institucional no 1 (AI-1), de 9 de abril de 1964, assinado por representantes das três forças armadas, foram a extinção das garantias constitucionais dos servidores públicos e as possibilidades de suspensão dos direitos políticos dos cidadãos brasileiros pelo prazo de 10 anos e de cassação de mandatos políticos em todas as instâncias legislativas nacionais.

No AI-2, decretado em 27 de outubro de 1965 pelo general Castelo Branco, após derrota, em alguns estados brasileiros, dos candidatos militares nas eleições para governador em 1965, com destaques para Israel Pinheiro, do PSD, em Minas Gerais e Negrão de Lima, pela coligação PSD/PTB, na Guanabara, extinguiram-se o pluripartidarismo e as eleições diretas para presidente, permitiram-se o fechamento do Congresso Nacional e a intervenção imediata em estados e municípios, e alterou-se a formação dos tribunais de justiça, buscando sua subserviência aos interesses da ditadura. No mesmo trajeto da violência contra a democracia e da supressão dos direitos políticos e das liberdades individuais, foi promulgado em 5 de fevereiro de 1966 o AI-3, que suprimiu a eleição direta para governador e prefeito das capitais estaduais, que passaram, então, a ser indicados pelos governadores nomeados pela ditadura militar. O AI-4, de 7 de dezembro de 1966, propôs um novo projeto de constituição, que, publicada em 24 de janeiro de 1967, instituiu a Lei de Segurança Nacional, instrumento legal que definiu o crime de opinião, o crime político e o crime de subversão, e a nova Lei de Imprensa, que impôs a censura prévia com agentes presentes em todas as redações de jornais, emissoras de rádio e de televisão.

E no AI-5, mais conhecido pelo nível da repressão que desencadeou, publicado em 13 de dezembro de 1968, permitiu-se ao presidente militar, sem qualquer limitação, a intervenção em todos os níveis da administração pública nacional e o fechamento por tempo indeterminado dos poderes legislativos brasileiros, suspendeu-se a garantia jurídica do recurso de habeas corpus e instituíram-se medidas de segurança que proibiram manifestações e reuniões públicas e a freqüência a determinados lugares. No AI-13, baixado em 5 de setembro de 1969 pela junta militar que substituiu o general Costa e Silva, motivado pelo seqüestro do embaixador estadunidense no dia anterior pelos membros do MR-8, a ditadura endureceu ainda mais o regime, pois oficializou o banimento do Brasil de qualquer cidadão que fosse considerado inconveniente para os militares. E, para finalizar, no Pacote de Abril, decretado em 1977 pelo general Ernesto Geisel, cassam-se diversos parlamentares e altera-se a composição do Senado Federal, com a criação dos senadores biônicos, indicados pelas assembléias legislativas com o objetivo de garantir a maioria parlamentar submissa à ditadura.

Esse breve histórico, disponível a todos os brasileiros que se interessam em conhecer um pouco do passado do país durante o regime militar de exceção, é uma ilustração contundente e irrefutável que não se pode argumentar jamais que se pretendeu, durante a ditadura, preservar os valores democráticos. Ou se trata de má fé ou da mais simplória ignorância.

Ainda em seu libelo, o general sofisma ao dizer que “Esse Exército, o seu Exército, é conciliador sem perder a altivez, generoso com os vencidos, nobre nas atitudes, respeitador da lei, avesso aos ressentimentos”. Poder-se-ia até mesmo aceitar a afirmação se o militar estivesse apenas se referindo ao momento atual do nosso país, mas como sua referência é histórica e busca exaltar o 31 de março de 1964, o deboche é inquestionável. Respeitar leis que foram impostas pela força e pela arbitrariedade é muito fácil e nada democrático; se ser conciliador é proibir a livre expressão e calar “vigorosamente” os cidadãos; se ser generoso é fazer os adversários, mesmo que apenas de opinião, desaparecerem; se ter atitudes nobres é torturar, exilar e matar por crimes políticos; e se ser avesso aos ressentimentos é tripudiar da história e dos massacrados pela ditadura, é preciso urgentemente reformar os dicionários e construir novas definições que se acomodem a essa extravagante realidade.

Waldir Pires, o Ministro da Defesa recém assumido, argumentou para imprensa nacional que o general tem o direito de expressar a sua opinião e que tem “que respeitar a posição de cada um”. Insiste-se em afirmar que o cidadão tem todo o direito de pensar e publicar tudo o que foi escrito nessa louvaminha à participação do Exército brasileiro na história da repressão, o que não se pode admitir sob qualquer pretexto é que o Governo brasileiro seja envolvido nesse episódio burlesco, pois, afinal, o general falou não na qualidade de cidadão, mas de representante formal duma instituição do Governo Federal –o Exército brasileiro–, portanto, o texto representa não apenas a sua opinião, mas a opinião do Estado constituído, cujo novo Ministro da Defesa é um cidadão que viveu o exílio durante a ditadura militar e o Presidente da República foi preso como criminoso político por sua participação em protestos e greves durante esse regime ditatorial. O que tinge o fato com tons ainda mais severos são outros dois acontecimentos prévios: primeiro, mais distante, a constatação que esse episódio não foi um caso isolado, pois em 31 de março de 2000, também numa leitura da ordem do dia do Exército, o mesmo general já havia afirmado que o golpe militar de 1964 fora um ato de “coragem moral” para “restaurar a democracia”, confundindo mais uma vez sua opinião pessoal com o Estado brasileiro; e, segundo, pela afirmação do próprio general, ao referir-se às reações aos seus intempestivos juízos históricos, que o texto fora submetido com antecedência de duas semanas à aprovação do Vice-Presidente e então Ministro da Defesa José Alencar, seu superior imediato, o que corrobora a idéia que o texto representa a opinião da atual gestão política do Governo Federal, transformando o que seria apenas uma pilhéria inoportuna dum general numa interpretação equivocada e atroz da história brasileira por parte da presente administração.

Na Argentina, o dia 24 de março, dia do golpe militar que fez desaparecer cerca de 30 mil pessoas, foi esse ano transformado em feriado nacional pelo atual presidente Nestor Kirchner, não para se comemorar nada, pois nada há para ser comemorado, mas para ser usado como o dia da “memória”, um dia de reflexão e de manifestações para ninguém jamais esquecer o horror que aquele país viveu. Estimulou-se uma maratona de eventos políticos e culturais para registrar o sofrimento dos que trazem as marcas físicas e psicológicas da crueldade da ditadura portenha.

Que se faça o mesmo no Brasil e se use a efeméride desse trágico momento histórico para uma reflexão profunda sobre o papel da democracia em nossa sociedade. Todo regime que suprime as liberdades individuais, que impede a livre manifestação da opinião e do pensamento, que penaliza seus cidadãos pela discordância ideológica e que usa da violência extrema contra seus adversários políticos não merece ser lembrado, a não ser como exemplo a ser preservado às novas gerações do que não se deve permitir que volte a acontecer jamais. O regime ditatorial que se instalou no Brasil após o golpe antidemocrático de 1964, e que se arrastou por mais de 20 anos deixando para trás um rastro de sangue e de arbitrariedade, é um desses claros exemplos. O Brasil tem o dever moral e político de sempre lembrar que não há nada que justifique a supressão dos direitos democráticos, não há “milagre econômico” nem controle inflacionário, não há “Brasil, ame-o ou deixe-o” nem reformas de base, que possam minimizar o horror da escuridão da falta da liberdade e da democracia. Essa lembrança reiterada não deve ser apenas uma “ordem do dia” a ser lida nas escolas, nas fábricas, nos sindicatos, nas ruas e até nos quartéis, mas um valor a ser preservado como patrimônio da educação política do povo brasileiro, para que seus cidadãos tenham a certeza que não há atalhos salvacionistas e que só o exercício longo e contínuo da experiência democrática permiti-los-á construir uma nação mais justa e melhor.

sexta-feira, 10 de março de 2006

Sobre desenhos, liberdade e Voltaire

Artigo de Sergio Mauricio publicado no Caderno Cultural do Jornal A Tarde, Salvador, BA, em 18/03/2006.

"A luz apagada
(mas pior: o gosto do escuro)"
Fragmento dum poema de José Paulo Paes

Muito se disse e se escreveu sobre os doze desenhos satíricos que ironizavam o profeta muçulmano Maomé publicados no jornal dinamarquês Jyllands-Posten, em 30 de setembro de 2005, e também sobre algumas das suas desproporcionais reações, principalmente no mundo islamizado.

Um articulista dum jornal estadunidense, Theodore Dalrymple do City Journal de Nova Iorque, escreveu um texto intitulado “Viva Voltaire”, publicado em 10 de fevereiro de 2006, no qual defende a liberdade de expressão e a classifica como “moeda inegociável”, enquanto um ilustre magistrado brasileiro, em artigo publicado na Folha de S. Paulo em 12 de fevereiro de 2006, pede “mais calma, mais razão” àqueles que divulgaram os desenhos, no qual opta por recriminá-los e encontra justificativas à reação da parcela mínima de muçulmanos pelo argumento da falta de respeito ao outro e à sua fé, rejeitando a evocação de Voltaire e seu “Tratado sobre a tolerância”, por considerar suas condições diversas das atuais. Já um renomado filósofo brasileiro propõe, também na Folha de S. Paulo, em artigo de 19 de fevereiro de 2006, a “ampla defesa do nosso direito sagrado de rir neste vale de lágrimas onde pontificam os que defendem o terror e a censura”.

Sim, é preciso evocar Voltaire, e com todas as nossas forças! A máxima a ele atribuída ainda não está clara para muitos e precisará ser lembrada à exaustão: “Não estou de acordo com o que dizeis, mas defenderei até à morte o vosso direito a dizê-lo”. O preceito da liberdade de expressão, pilar do pensamento iluminista, é fundamento da nossa sociedade ocidental e, portanto, não é mesmo negociável, em nenhuma hipótese. O artigo undécimo da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, decretada em 1789 pelos revolucionários franceses, afirma que “a livre comunicação de pensamentos e opiniões é um dos direitos mais preciosos do homem; cada cidadão pode falar, escrever, imprimir livremente, salvo responder pelo abuso desta liberdade nos casos previstos pela lei”. Rejeitar a evocação de Voltaire por diferenças jurídicas entre o caso da morte de Jean Calas em 1762 e a atual divulgação dos desenhos dinamarqueses é se apegar à forma e não à essência do problema, que não discute filigranas jurídicas, mas premissas e direitos da nossa cultura, aliás, como bem coloca a Declaração citada, dos “mais preciosos”.

Poder-se-ia argumentar que os valores ocidentais não são universais e, portanto, restritos ao seu escopo cultural, o que seria correto. Mas os fatos não extrapolaram o mundo ocidental, não obstante suas conseqüências sim, pois os desenhos foram publicados na Europa, no seio histórico da cultura ocidental. Se a reação islâmica, com mortes e violência exacerbada disseminadas por diversos países muçulmanos, restringisse-se ao alcance de seu mundo e de sua cultura, o ocidente não teria qualquer responsabilidade, mas inaceitável é ver líderes ocidentais pedindo a suprema violência da censura como forma de coibir a livre expressão. Os desenhos causadores de tamanho imbróglio foram proibidos de ser publicados por órgãos de imprensa em diversos países ocidentais; políticos e religiosos do ocidente manifestaram-se a favor dessa proibição, dessa atitude arbitrária e prepotente, a fim de garantir o respeito ao credo alheio, conforme suas argumentações interessadas.

A liberdade de credo, também fundamental, não implica no silêncio da crítica e do riso. Qualquer manifestação contrária à livre expressão é sintoma enfermo e medieval de mentes ainda acrisoladas num passado em que a religião era a medida de tudo. Respeitar o outro, seu credo, sua palavra, é permitir que se expresse, que viva a sua cultura, que reflita a partir de suas bases de pensamento, mas é aceitar que o outro também o faça, e que possa fazer, inclusive, de forma radicalmente diferente da minha. Por isso Voltaire ainda é atual e precisa ser evocado sempre que a escuridão da censura for colocada como hipótese.

A França, que a história reservou o papel de baluarte da liberdade de expressão, emitiu durante esse período sinais contraditórios ao mundo. Dum lado, a triste notícia da demissão do editor-chefe do jornal France Soir, o jornalista Jacques Lefranc, por ter autorizado a republicação dos fatídicos desenhos dinamarqueses em 1 de fevereiro de 2006, e assim ter “ofendido os muçulmanos”, segundo afirmação do proprietário do diário, o egípcio Raymond Lakah, apesar dos significativos protestos de seus funcionários e do Ministério do Exterior da França. Já outros dois jornais franceses, os semanários satíricos Le Canard Enchaîné e Charlie Hebdo, no começo de fevereiro, romperam com a hipocrisia reinante e republicaram os desenhos, além de novos que criaram. Outros jornais europeus também seguiram o caminho da defesa da liberdade de expressão, publicando os desenhos e editoriais que afirmavam tal postura, como Die Welt da Alemanha, La Stampa da Itália, El Periódico da Espanha, Volkskrant da Holanda e The Star da Irlanda.

Vive-se num estranho mundo, a liberdade de expressão é acuada ao ponto do ridículo, como uma lei austríaca que simplesmente proíbe a negação do holocausto judeu durante a II Guerra Mundial, o que já provocou a condenação à prisão por três anos, em novembro de 2005, do historiador britânico David Irving, devido a uma entrevista concedida em 1989. Mas tal absurdo também existe na própria França, é a Lei Gayssot, de julho de 1990, que foi usada para condenar o sociólogo Edgar Morin, em maio de 2005, por ter afirmado em artigo no jornal Le Monde, em 4 de junho de 2002, que “os judeus, que foram vítimas de uma ordem desumana, impõem agora uma ordem desumana aos palestinos”. Outros tantos países europeus também contam com suas leis censoras que impedem a negação do holocausto, como a Bélgica, a Polônia, a Alemanha, a Romênia etc. No Brasil, a Lei 8.882, assinada pelo então presidente Itamar Franco, em junho de 1994, depois substituída pela Lei 9.459, de maio de 1997, assinada pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, proíbe a divulgação de símbolos considerados nazistas. Várias sentenças judiciais no Brasil e no mundo têm proibido a circulação de livros e as manifestações artísticas por questões diversas, algumas consideradas de preconceito racial, outras consideradas ofensivas a algum credo religioso. Outrossim, o livro “Protocolos dos sábios de Sião”, obra do século XIX, está proibido no Brasil, e como não lembrar do lendário desfile da escola de samba Beija-Flor em 1989, organizado pelo carnavalesco Joãosinho Trinta com o enredo “Ratos e urubus, larguem minha fantasia”, que foi proibida de desfilar com uma imagem do Cristo, mas que ainda assim apresentou-a coberta por sacos de lixo e a faixa libertária e irreverente: “Mesmo proibido, orai por nós”.

Talvez seja o caso de promulgar uma nova lei proibindo os historiadores de negarem a escravidão no Brasil ou, quiçá, as perversidades nos navios negreiros. Para não parecer perseguição aos historiadores, uma outra lei proibiria os astrônomos de afirmarem a existência de outros mundos além do sistema solar e os matemáticos de estudarem os números complexos, afinal, não estão descritos em nenhum livro considerado sagrado. Ou ainda uma nova lei que proíba o ateísmo, em respeito ao credo alheio, e dê-lhe como punição a pena máxima, pois, afinal, esses indivíduos não passam de hereges que não temem aos deuses. E para manter a coerência filosófica, uma outra que proíba a divulgação dos símbolos judaicos, visto representarem diversos massacres históricos apresentados nos livros do Velho Testamento e o holocausto atual do povo palestino. Outra sugestão seria a proibição definitiva do ensino do evolucionismo darwinista nas escolas, pois agridem o credo de tantos e tantos, e como pena, que tal a fogueira? Assim teríamos os nossos giordanos brunos e galileus modernos, e a glória da fé estaria salva ao fazermos o Sol girar em torno da Terra e o homem originar-se do barro. Aos livros antigos e novos que ainda ousassem ensinar tais blasfêmias, o fogo nas praças, e assim teríamos também os nossos autos-de-fé. Aos artistas que quisessem expressar suas idéias, na forma que fosse, a prisão ou o degredo. Nossa sociedade estaria finalmente livre desse incômodo chamado liberdade, ainda que tardia. Seria tudo muito engraçado, se não fosse triste e representativo do nosso momento, mas, como ensinou o filósofo já citado, temos o direito sagrado do riso, até sobre nossas próprias mazelas filosóficas e morais.

A censura obscurantista sempre está ao lado do fanatismo, seja ele político, religioso ou ideológico, e o fanatismo é o oposto da tolerância, aliás, relação já apontada por Voltaire, que tanto sofreu com a intolerância política e religiosa, e, para ele, “o melhor meio para diminuir o número dos maníacos, se é que permanecem, é confiar essa doença do espírito ao regime da razão, que lenta mas infalivelmente ilumina os homens”. Ave Voltaire!


quarta-feira, 30 de novembro de 2005

Reflexões sobre o movimento espírita

Após retornar à boa terra, informei-me acerca dum debate no movimento espírita baiano: um renomado médium, duma das casas espíritas mais conhecidas de Salvador, resolveu realizar um casamento espírita. O fato teria passado sem maiores problemas, posto algumas casas espalhadas pelo país o realizarem também, mas o imbróglio se deu quando a justiça não reconheceu o enlace como legal, por conta de determinadas minudências jurídicas, que envolvem o fato de o espiritismo não possuir sacerdotes profissionais, impedindo sua consumação como determina a letra fria da lei.

Sem me envolver nem no fato jurídico, já que não tenho tal capacitação profissional, nem no problema doutrinário (apesar de possuir um entendimento pessoal sobre o tema), pois envolve opiniões diversas e apaixonadas (aliás, como sói acontecer com a maioria dos debates entre espíritas), detive-me no problema do tal “movimento espírita”, e refleti muito sobre ele, o que tenho feito bastante nos últimos tempos. Passei, então, a perguntar-me: quem estaria credenciado a definir o que é o certo e o errado no espiritismo? Quem seria o responsável pela correta exegese das obras kardecistas? Será que o espiritismo necessita duma organização institucional para sua realização concreta? E essa organização passaria necessariamente por um processo de unificação através de instituições unionistas habilitadas para tal? Quem as habilitaria?

Refletindo, motivado pelo debate acerca do casamento espírita, sobre esses pontos, e outros mais, passei a questionar a própria atuação da casa espírita, núcleo primacial da existência do espiritismo institucionalizado (ou o “movimento espírita”). Questionei-me se não bastaria a minha busca pela transformação moral e comportamental, abstendo-me de qualquer atividade de cunho religioso, tão afeita a posições extremadas e fundamentalistas. Algo já havia precedido essas questões: a deliberação da total independência da casa espírita em que atuo de qualquer participação no tal “movimento espírita”, não aderindo ou associando-se a UDEs, AREs, federações ou uniões. Mas e quanto à própria casa espírita, seria ela realmente necessária? Será que o objetivo deve ser a casa (ou a causa) ao invés da minha transformação pessoal? Vou além, como instituição, será que a casa espírita não dificulta meus objetivos principais ao invés de promovê-los?

Bem, são muitas as questões. E ainda não tenho as respostas. Algo sinto em mim: adoro a casa espírita em que atuo (aliás, já se vão alguns anos...), as pessoas, o trabalho, o desejo de ajudar, mas ao mesmo tempo não gosto da luta desmesurada pelo destaque, a presença insana da vaidade, a necessidade de crescer a casa mais do que o homem etc.

Sim, o “movimento espírita” parece uma luta, um clima de guerra intenso, posições contrárias e dogmáticas, religiosos X cientificistas, sincréticos X ortodoxos, Kardec X Roustaing, livros psicografados X obras kardecistas, dentre outros confrontos. Vejo-me partidário de posições, e isso me incomoda, já que me sinto sempre motivado a “lutar” pelas minhas posições, como num embate franco numa planície, em que guarnições entrincheiradas buscam conquistar um mínimo espaço do adversário, que sempre representa o “mal”.

Não quero lutar por nenhuma posição, não quero lutar pelo espiritismo, por nenhuma causa ou casa, quero apenas aproveitar o máximo possível a minha atual experiência terrena para me transformar, para sair daqui melhor do que entrei, e para isso busco seguir, nas minhas precárias possibilidades, os ensinos de Jesus e o que me propõe o espiritismo.

Cada um, cada casa, cada instituição, que busque seus caminhos, prescindindo de qualquer orientação formal, conforme aquilo que crê e deseja. Que cada um siga seus mestres, suas doutrinas e seus guias, é apenas um problema de cunho pessoal. Se um gosta de ler Zíbia, outro admira Ramatís, aqueloutro execra essas possibilidades, que possam apenas conviver em paz, mantendo suas posições e suas idéias, sem, entretanto, jamais querer definir o que é o certo e o que é o errado, pois quem estaria habilitado para tal? Quem se arvoraria a parâmetro doutrinário do espiritismo?

São apenas algumas reflexões. Ainda encontro problemas com elas. Receio a profundidade a que me levarão, ainda assim seguirei em meus mergulhos, em minhas reflexões. Preciso mudar, e essa é a minha tarefa na vida, não posso parar em lutas que só desconstroem essa possibilidade.

sábado, 15 de outubro de 2005

Sim ou não?

A propósito do referendo sobre a proibição da comercialização de armas...

Corre na internet, dentre outras bobagens, uma mensagem na qual aqueles que, no referendo, votam no SIM, são tratados como tolos e descerebrados. Além da sua ironia tosca, a mensagem, em seu final, sai com essa pérola da convivência e da cidadania (peço antecipadamente desculpas pela grosseria de algumas expressões no texto citado, seria um reflexo da opção pelo NÃO?):

“E que não me apareçam aqui os caras dos Direitos Humanos, porque Direitos Humanos é o caralho! O dia que algum desses putos tiver a mãe sob a mira de um assaltante venha falar comigo... enquanto isso se atenham à sua mediocridade!”

Engraçado (ou seria trágico?), não é o pessoal do NÃO que faz sua campanha na afirmação, pode-se dizer, pouco aristotélica de que nos estariam usurpando “direitos”? Será que na minha mediocridade eu perdi alguma coisa?...

Dizem outros, como já ouvi e li, aqui e acolá, que as argumentações colocadas pela Revista Veja, na semana passada, quando a sua capa propôs 7 (sete) razões para votar NÃO, são incontestáveis. Ora, ainda bem que não leio apenas essa relíquia da imprensa nacional, e fui informado pela Folha de São Paulo, na coluna de Barbara Gancia, no dia 14 de outubro último, das relações de interesse da Veja... Que fale a articulista:

“‘Veja’, que se ufana em apontar o dedo para repórteres que recebem iPods de gravadoras, poderia ter sido mais generosa com o leitor ao explicar sua opção pelo ‘NÃO’. Para não deixar dúvidas no ar, por que a revista não nos contou que a empresa à qual pertence paga aluguel de cerca de R$1 milhão à família Birmann, da construtora homônima, que vem a ser proprietária do prédio que serve de sede da Editora Abril e também, veja só, da CBC, a Companhia Brasileira de Cartuchos?”
Ah, entendi tudo...

Mas, voltando ao inteligente texto da propaganda do NÃO na internet, diz em certo ponto:

“Descobri também que Delegados e Policiais Civis, Militares e Federais - que são em quase totalidade favoráveis ao NÃO - não entendem N-A-D-A de violência e criminalidade. Quem manja mesmo do assunto são atores e atrizes, sociólogos, cantores, compositores e dirigentes de ONGs internacionais...”

Definitivamente estou ficando esquizofrênico, vivendo em realidades distintas... Sempre ouvi e li dos policiais a recomendação para não reagir a qualquer tentativa de assalto e a não portar armas, pois elas sempre acabam nas mãos dos bandidos... E que a maioria dos que tentaram reagir acabaram em situação mui delicada... E sem suas armas... Mas é isso, devo precisar urgente de um psiquiatra que me convença da minha esquizofrenia e da necessidade de votar no NÃO. Mas, e se o consultório dele estiver em alguma propriedade da CBC?...

Mas vamos a mais uma interessante argumentação do brilhante texto:

“Descobri que o Governo Lula quer que a gente vote sim. E o Governo sempre pensa no nosso bem. Afinal, todo mundo sabe que a qualidade da saúde pública, ensino público, segurança pública e etc., vem melhorando cada vez mais, dia-a-dia...”

Bem, longe de qualquer discussão político-partidária, pois erros como os citados existem e existiram em todos os nossos governos, da colônia até nossos dias, passando por todas as cores partidárias e todos os slogans e bandeiras, mas atendo-se à argumentação inteligente de que a falta de segurança pública adequada justifica o porte de armas, conclui-se, ad hoc, que devemos lutar pelo “direito” de fazer justiça com as próprias mãos, de montarmos tribunais domésticos, julgarmos e executarmos as sentenças em nossas casas e em nossas comunidades, já que a nossa Justiça anda deixando mesmo a desejar... E mais, como a política econômica não satisfaz ao povo, com seus juros altos e a contenção do crédito, lutemos pelo “direito” de imprimirmos nossa própria moeda. Ah, sim, em tempo, se os governos não “pensam em nosso bem”, ainda bem que a CBC e a Veja pensam, se não, o que seria de nós?...

Essa discussão de “direitos” beira a insanidade. Como estou convencido pelos partidários do NÃO que sou esquizofrênico, fico a me questionar sobre meu “direito” de portar uma arma... Dizem então, se você não quer, outros querem... É um direito... Voilà! O vizinho rabugento tem esse “direito”, o maluco do trânsito tem esse “direito”, o marido ciumento tem esse “direito”... Acho que, de novo, não percebi alguma coisa... Deve ser a esquizofrenia se agravando...

Não, mas diz um digno representante da inteligência nacional, um professor de Direito da PUC-SP (talvez isso tenha algum valor em si, ave Platão!), que votar no SIM é admitir uma violência à Constituição. Vamos lá, bem devagarzinho para eu entender, afinal, a minha mediocridade aliada à minha já agravada esquizofrenia talvez estejam prejudicando meu insipiente raciocínio: quer dizer que permitir vender armas e munição, que têm como objetivo único, veja (veja não, perceba...), único, a morte de pessoas é um direito assegurado na Constituição brasileira... Será que falta alguma página na cópia da minha Constituição? Por que seria um direito andar armado em todos os lugares e não seria fumar dentro dum avião? Ou estacionar meu carro no meio da rua? Ou andar nu pela cidade? Ora, mais devagar, senhor doutor... Em tempo, será que o senhor já advogou para a CBC? É só uma perguntinha despretensiosa...

Estão tentando fazer do referendo sobre a venda de armas e munição um plebiscito sobre o Governo Lula. Como muitos brasileiros, eu também estou decepcionado com os inúmeros casos de corrupção e bandidagem política. Mas o referendo não é sobre o Governo Lula! Ele, como outros bandidos anteriores e futuros, passará, mas a nossa opção ficará. Não podemos embarcar nas campanhas tolas das Vejas da vida, tucanas até a alma, que querem aproveitar o momento para dizer não ao Lula. Eu digo não ao Lula, ao FHC, ao Serra, a todo o PFL, ao Roberto Jefferson, ao José Dirceu, ao ACM (o original e o neto), e a tudo o que já se fez de política até hoje no nosso país. Haverá, ano que vem, o momento certo para dizer esse NÃO bem grande... Mas, mais uma vez, o referendo não é sobre a política de segurança pública do Governo Lula ou de qualquer outro, é muito mais sério do que isso, é uma opção do país pela paz ou pela manutenção da violência entre nós. Com quem mesmo está a mediocridade?...

Mais duas outras construções racionais de uma pureza digna de Protágoras, que, pelo conteúdo, merecem estar comentadas juntas:

“Descobri que a arma legal alimenta os bandidos. Todas aquelas AR-15, AK-47, granadas e bazucas que os traficantes do Rio usam foram, roubadas de cidadãos honestos que as compraram todas legalmente. Da minha casa mesmo, por exemplo, ano passado, me roubaram quatro mísseis Stinger e três Tomahawk”.

“Descobri que se eu vir ou ouvir algum bandido pulando a cerca e entrando no meu quintal, eu não vou conseguir afugentá-lo com um tiro para cima ou para o chão. Se ele ouvir o tiro, aí sim, é que ele vai ficar excitado e vai querer de toda forma entrar em casa e trocar tiros comigo. Eles adoram fazer isso...”
Além do preconceito explícito, posto existirem traficantes armados até os dentes no Rio, São Paulo, Belo Horizonte, Salvador, Porto Alegre etc., a argumentação é duma tolice sem fim. Talvez, sentindo-me poderoso com uma 38, ou melhor, uma 44, não, uma pistola automática, os bandidos, armados com, como diz o texto, “AR-15, AK-47, granadas e bazucas” fiquem morrendo de medo... Ah, tá, eles serão afugentados... Exatamente como a polícia consegue afugentá-los, muito mais bem armada do que os homens brilhantes com suas armas domésticas... Diante desse raciocínio tão bem construído na ironia do NÃO, não haveria troca de tiros com policiais e eles não seriam tão ousados, afinal, bastaria um tirinho para o chão ou para o alto... Será que eu perdi alguma parte dessa história?...

E, para encerrar com esse libelo do NÃO, mais essa beleza de silogismo:

“Se o SIM ganhar, o Brasil vai ser um país mais feliz. Que nem na novela! Uêbaaaaaaa!”
Então tá, votemos todos no NÃO, e deixemos o país exatamente como está... Uêbaaaaaa!

Eu hein, e sou eu que estou ficando esquizofrênico...

Esquizofrênico, quiçá? Mas burro, não! Voto SIM!

terça-feira, 11 de outubro de 2005

Sou religioso (de Rubem Alves)

Eu sou muito religioso. Por isso trato cuidadosamente de evitar igrejas e cerimônias religiosas: para que meus sentimentos religiosos não sejam perturbados. Minhas experiências passadas com igrejas não têm sido boas. Sempre que vou a igrejas ou participo de cerimônias religiosas minha alma fica irritada. Os porta-vozes de Deus sempre falam demais. Parecem gostar do som da sua voz. Gostaria de uma igreja onde não houvesse sermões: só silêncio, música e poesia. Houve exceções de que não me esqueço. Uma missa na catedral de Cuernavaca, México. Se houve homilia eu nem me lembro.

Lembro-me da dança ­ todo mundo dançando, ao ritmo da música dos mariachis. Foi alegria pura. Lembro-me também de uma semana que passei num mosteiro da Suíça onde se cultivava o silêncio. Três vezes ao dia, às seis da manhã, ao meio-dia e às seis da tarde havia uma meia hora litúrgica onde nada era dito. Apenas o silêncio, as velas, a contemplação dos ícones de Cristo. Foi beleza. Deve ter havido outras ocasiões. Mas não estou me lembrando delas no momento.

Quando me perguntam eu deveria dizer que não sou religioso. Dizendo-me religioso, os outros logo pensam que sou adepto de alguma religião. Eles imaginam que as religiões e as igrejas são semelhantes aos supermercados, lugares aonde a gente vai se abastecer de mercadorias sagradas. Para eles, ter sentimentos religiosos sem freqüentar igrejas ou pertencer a religiões seria o mesmo que dizer que me abasteço de verduras, frutas, legumes, carnes, leite, cereais sem fazer compras.

Daí não entenderem que eu possa ter sentimentos religiosos sem freqüentar igrejas. De fato, eu não pertenço a grupo religioso algum. Meus sentimentos nada têm a ver com igrejas e rituais religiosos. Talvez eu devesse simplesmente dizer que sou místico sem religião. Se os religiosos disserem que isso não é possível, que é preciso ter uma religião, eu lhes direi que não há indicações de que Deus tenha concordado em se tornar numa mercadoria a ser distribuída com exclusividade pelos seus supermercados religiosos. Deus é livre como o Vento ­ pelo menos foi isso que Jesus disse. Claro que há religiões que dizem que o Vento só pode ser obtido engarrafado. Elas se acreditam como distribuidoras de Vento engarrafado. Uma religião que afirme que o sagrado é um monopólio seu está dizendo que ela conseguiu engarrafar o Vento, que ela conseguiu por o Vento sob seu controle. E isso é idolatria. Os teólogos medievais sabiam que o finito não pode conter o infinito.

A minha experiência com o sagrado vem sempre fora de lugares religiosos, diante do mistério da noite estrelada, de uma teia de aranha, de uma árvore florida, da ternura do amor, do riso de uma criança, da frescura dos riachos, da graça do vôo dos urubus, da alegria do cachorro que me recebe. Essas coisas que me dão alegria e que, por isso mesmo, são para mim sagradas, eu nunca as encontrei nas igrejas. Sagrado, para mim, é aquilo que meu coração deseja que seja eterno. O sagrado é a realização do amor. Meu misticismo, assim, nada me diz sobre seres de um outro mundo. Ele não me informa sobre deuses, céus, infernos, pecados, demônios e anjos. Meu misticismo não aumenta o meu conhecimento sobre o universo. Meu misticismo não é um substituto para a ciência.

Meu misticismo, também, não me dá conselhos morais. Não ordena que eu seja bom. Não me manda ajudar os pobres. Não me manda lutar pela justiça. Não é preciso ser místico para ser bom, para amar os pobres, para lutar pela justiça. Acho vergonhoso ser bom, amar os pobres e lutar pela justiça porque Jesus manda. Então é porque ele manda? Se não mandasse a gente não faria? Se Deus não mandasse e não ameaçasse não seríamos bons? Se assim é, então somos bons, amamos os pobres e lutamos pela justiça porque temos medo. Mas tudo o que brota do medo é o oposto do sagrado. O amor lança fora o medo.

Meu misticismo nem me dá conhecimentos de um outro mundo e nem me dá ordens morais. Ele é um sentimento ­ ou como se fosse uma música que ouço dentro de mim. Schleiermacher, um teólogo romântico do fim do século 18, dizia que o sentimento religioso é o sentimento de "dependência absoluta" diante do universo. Eu não existo em mim mesmo. Eu existo somente em relação a uma coisa enorme, gigantesca, fantástica, coisa que não compreendo, mas que me envolve, na qual eu nasço e para a qual voltarei um dia.

Sou uma nota numa sinfonia com milhares de notas, uma folha num jequitibá com milhares de folhas, uma única gota num mar com gotas sem fim. De um lado eu me descubro infinitamente pequeno. De outro lado eu me descubro imensamente grande: estou ligado a tudo. Sou tão grande quanto o universo, que se transforma então no meu grande corpo.

Alguns dão o nome de Deus a esse Grande Corpo no qual todas as coisas existem. Gosto dessa idéia. Aconteceu faz muito tempo, quando ouvir o rádio exigia paciência e atenção. Havia a barulheira constante da eletricidade estática que era ouvida ora como pipocas estourando numa panela, ora como uma série de intermináveis assobios. Eu me lembro. Era noite. Já estava na cama. Luz apagada. Gostava de dormir com música. Rádio Ministério da Educação: havia sempre músicas do meu gosto. De repente, no meio dos estouros e assobios da estática, uma música linda que mal se podia ouvir. Mas, em meio aos ruídos sem sentido da estática, o meu ouvido percebia a beleza que mal se ouvia, perdida no meio da estática.

Aí eu pensei que o sentimento religioso é assim mesmo: em meio à barulheira da vida, a gente ouve uma melodia. Há um lindo texto de Nietzsche em que ele descreve precisamente essa experiência ­ ele fala de uma melodia de beleza indescritível que repentinamente começou a ouvir dentro da sua alma, beleza tão grande que ele começou a chorar. Nietzsche era uma dessas pessoas possuídas por um profundo sentimento místico e que, precisamente por causa dele, tinha de ficar longe de todas as religiões. As igrejas o horrorizavam.

Dizia que elas mais se pareciam com sepulcros de Deus. E tinha horror das músicas que ali se cantavam, que ele comparava ao coro de rãs dentro de um charco... Sim. Sou religioso. O universo é o meu templo. O ruído dos regatos, o barulho do vento nas folhas dos eucaliptos, o perfume do jasmim, as cores do crepúsculo, as experiências de arte e de brinquedo são, todos, para mim, sacramentos ­ fugazes experiências do sagrado. Deus nunca foi visto por ninguém. Mas sempre que tenho uma efêmera experiência de beleza e da amor é como se eu tivesse visto, num breve segundo, uma cintilação do sagrado.

quarta-feira, 5 de outubro de 2005

No túmulo de Kardec

Visita à Paris, julho de 2005.

Desde que chegamos à Paris, eu e Mônica desejamos conhecer o túmulo de Kardec. Foi então, num final de semana, passeando pela Cidade Luz de bicicleta, juntamente com a minha irmã e o meu cunhado, que chegamos ao Père-Lachaise, cemitério onde está o túmulo de Kardec, na parte nordeste da cidade.

Os cemitérios em Paris são atrações turísticas e são visitados por muita gente diariamente, em virtude dos túmulos de nomes conhecidos da ciência, da arte, da filosofia, da política etc. O Père-Lachaise é o maior, mas há também o de Montparnasse, de Montmartre etc.

Não pudemos entrar com as bicicletas, prendemo-las num dos muros do cemitério, adquirimos um guia numa loja vizinha, já que ele é imenso e com muitas ruelas e caminhos, e adentramo-lo caminhando. Arborizado e tranqüilo, no meio dum sem-número de lápides com nomes desconhecidos, diz alguém que são mais de 20 mil, vamo-nos encontrando com um ou outro nome famoso, sempre cercado de gente curiosa, como nós, fotografando e perquirindo. Ao vislumbrar o túmulo de Kardec, a alegria e o encantamento iniciais são as emoções presentes. Muito florido e um bom número de pessoas ao seu redor, vendo-o, fotografando-o e tocando-o (por quê? Engraçado como alguns tocam seu busto e oram...). Atrás do dólmen uma placa pede aos passantes que evitem cenas de adoração explícita e mantenham a tranqüilidade local. Um guia turístico, com alguns visitantes, explica, em francês, quem é Kardec. Escuto atentamente, e ele o retrata de forma relativamente fiel, para minha surpresa. Faz um adendo, informando a importância restrita de Kardec para os brasileiros, e ao nos perceber, estranhos, nós quatro, pergunta-nos sobre nossa nacionalidade, e, voltando-se para o grupo, confirma o que havia dito. Olham-nos curiosos, como a perguntar: O que viram nesse indivíduo? Por que brasileiros?

Após aquele encontro com os túmulos de Kardec e Boudet, passei a refletir bastante sobre a realidade do alcance do espiritismo, o que mo fez ver com outros olhos, talvez mais realistas, e menos eloqüentes... O espiritismo ganhou, para mim, outras cores, outros tons, outros odores... Vê-lo na França, tão insignificante, tão sem representatividade, quase como um místico-esoterismo (o que, aliás, o movimento espírita faz), uma curiosidade, deu-me possibilidade de reflexões mais intensas e íntimas. Um encontro mais profundo com sua mensagem e sua limitação. Natural que assim o fosse, afinal, é ele também fruto duma época, dum contexto, que se esvai com o tempo...

segunda-feira, 3 de outubro de 2005

Por um espiritismo kardecista

Artigo de Sergio Mauricio publicado na coluna Religião do Jornal A Tarde, Salvador, BA, em 10/11/2003.

Todos nós espíritas vivemos a experiência de sermos questionados a respeito de qual espiritismo somos adeptos, se kardecista ou outro. A resposta padrão é sempre imediata: não há tipos de espiritismo, todo espírita é necessariamente kardecista, pois espiritismo e espírita foram neologismos criados por Allan Kardec na introdução de O livro dos espíritos. Assim, falar de espiritismo kardecista seria uma redundância, como falar "subir para cima". Por perceber a constância dessa dúvida, tenho tido sempre o cuidado de esclarecer esse ponto nas palestras e nas conversas informais.

Não penso mais assim. Tenho revisto essa postura e esse conhecimento. Diante de tudo que ouço e vejo acontecer nas casas espíritas, passei a meditar mais sobre esse aspecto que parecia ser claro e não permitiria divergências de posicionamento.

Muitos espíritas defendem posições e práticas que não têm fundamento nas obras kardecistas, mas que, quando alertados, afirmam que estão de acordo com o espírito fulano ou o renomado escritor sicrano. Volto a interrogar, e Kardec? Para a minha surpresa (ou não deveria?), acabo ouvindo a falta de interesse em conhecê-lo com mais profundidade e propriedade, preferindo tangenciar o espiritismo através de obras de valor duvidoso, conhecidas com o pretensioso título de obras complementares.

Alguns nomes do meio espírita brasileiro passaram a ser inquestionáveis e suas obras consideradas como patrimônio a ser incorporado às obras de Kardec. Não é a intenção questionar o valor e a qualidade de determinadas obras, mas daí a considerá-las verdades a serem simplesmente seguidas vai uma longa e complexa distância. Já vivi a experiência de colocar em questão determinada idéia de uma obra de um famoso médium, que claramente não coadunava com as contidas na obra kardecista, e fui considerado quase um herege, um radical, um purista ortodoxo. Acreditava ser apenas espírita. Pois assim como devemos colocar em questão as mensagens recebidas dos espíritos, seja por qual médium for, assim preconizava Kardec na sua obra O livro dos médiuns, devemos também, por força da nossa razão e do mesmo princípio anterior, perscrutar qualquer informação publicada por espíritas, independente da sua projeção alcançada.

O desejo de venerar e seguir nomes eméritos por vezes cega o profitente espírita, que acaba por santificar homens e espíritos, ao invés de respeitá-los por sua contribuição intelectual, passível, como qualquer outra, de dúvidas e discordâncias.

A fé raciocinada, tão falada e tão pouco vivida, é expressão antiga; Agostinho já a utilizava no séc. IV, bem como outros pensadores cristãos da Idade Média. Mas nós, os espíritas, apropriamo-nos desta expressão como se original fosse, no intuito de praticá-la efetivamente. Todavia o que se vê é uma necessidade imensa de acreditar na primeira revelação messiânica que chega, impedindo qualquer interrogação, fato verificado até nas reuniões mediúnicas, quando aparece algum "mentor", todos se calam e não ousam sequer travar um diálogo com o espírito, com receio de ser impertinente.

A argumentação contrária parte sempre do princípio que o espiritismo não é um corpo doutrinário fechado, acabado, e sim em constante desenvolvimento, como já dizia o próprio Kardec no primeiro capítulo de A gênese. Isso é claro, mas o desenvolvimento natural do espiritismo se dará através da grande contribuição kardecista: o método científico aplicado ao seu objeto de estudo. A evolução do espiritismo não se dará através de revelações de nenhum espírito em particular, como hoje se tem propagado amiúde, pervertendo por completo o legado espírita, tornando-o, agora sim, um corpo doutrinário dogmático e inquestionável.

Esses "complementos" à obra kardecista acabaram por formar um novo espiritismo, sem qualquer fundamento racional ou científico, igualando-o às religiões dogmáticas, obrigando seus adeptos a acatarem como certezas os mais mirabolantes sistemas de idéias. Assim, surgiu todo um "novo" conhecimento espírita que é propagado através das palestras, dos cursos introdutórios e das obras publicadas a mancheias, que falam em corpos astrais de cores e quantidades diversas, que ensinam sobre chacras e carmas, que propalam tratamentos e técnicas de passes, relegando a obra kardecista a um lugar secundário, se chegar a tanto. Diante dessas e de outras toleimas, compreendi que, em verdade, sou espírita kardecista sim, bem diferente de outras posições encontradas em casas autodenominadas espíritas.
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