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sábado, 15 de outubro de 2005

Sim ou não?

A propósito do referendo sobre a proibição da comercialização de armas...

Corre na internet, dentre outras bobagens, uma mensagem na qual aqueles que, no referendo, votam no SIM, são tratados como tolos e descerebrados. Além da sua ironia tosca, a mensagem, em seu final, sai com essa pérola da convivência e da cidadania (peço antecipadamente desculpas pela grosseria de algumas expressões no texto citado, seria um reflexo da opção pelo NÃO?):

“E que não me apareçam aqui os caras dos Direitos Humanos, porque Direitos Humanos é o caralho! O dia que algum desses putos tiver a mãe sob a mira de um assaltante venha falar comigo... enquanto isso se atenham à sua mediocridade!”

Engraçado (ou seria trágico?), não é o pessoal do NÃO que faz sua campanha na afirmação, pode-se dizer, pouco aristotélica de que nos estariam usurpando “direitos”? Será que na minha mediocridade eu perdi alguma coisa?...

Dizem outros, como já ouvi e li, aqui e acolá, que as argumentações colocadas pela Revista Veja, na semana passada, quando a sua capa propôs 7 (sete) razões para votar NÃO, são incontestáveis. Ora, ainda bem que não leio apenas essa relíquia da imprensa nacional, e fui informado pela Folha de São Paulo, na coluna de Barbara Gancia, no dia 14 de outubro último, das relações de interesse da Veja... Que fale a articulista:

“‘Veja’, que se ufana em apontar o dedo para repórteres que recebem iPods de gravadoras, poderia ter sido mais generosa com o leitor ao explicar sua opção pelo ‘NÃO’. Para não deixar dúvidas no ar, por que a revista não nos contou que a empresa à qual pertence paga aluguel de cerca de R$1 milhão à família Birmann, da construtora homônima, que vem a ser proprietária do prédio que serve de sede da Editora Abril e também, veja só, da CBC, a Companhia Brasileira de Cartuchos?”
Ah, entendi tudo...

Mas, voltando ao inteligente texto da propaganda do NÃO na internet, diz em certo ponto:

“Descobri também que Delegados e Policiais Civis, Militares e Federais - que são em quase totalidade favoráveis ao NÃO - não entendem N-A-D-A de violência e criminalidade. Quem manja mesmo do assunto são atores e atrizes, sociólogos, cantores, compositores e dirigentes de ONGs internacionais...”

Definitivamente estou ficando esquizofrênico, vivendo em realidades distintas... Sempre ouvi e li dos policiais a recomendação para não reagir a qualquer tentativa de assalto e a não portar armas, pois elas sempre acabam nas mãos dos bandidos... E que a maioria dos que tentaram reagir acabaram em situação mui delicada... E sem suas armas... Mas é isso, devo precisar urgente de um psiquiatra que me convença da minha esquizofrenia e da necessidade de votar no NÃO. Mas, e se o consultório dele estiver em alguma propriedade da CBC?...

Mas vamos a mais uma interessante argumentação do brilhante texto:

“Descobri que o Governo Lula quer que a gente vote sim. E o Governo sempre pensa no nosso bem. Afinal, todo mundo sabe que a qualidade da saúde pública, ensino público, segurança pública e etc., vem melhorando cada vez mais, dia-a-dia...”

Bem, longe de qualquer discussão político-partidária, pois erros como os citados existem e existiram em todos os nossos governos, da colônia até nossos dias, passando por todas as cores partidárias e todos os slogans e bandeiras, mas atendo-se à argumentação inteligente de que a falta de segurança pública adequada justifica o porte de armas, conclui-se, ad hoc, que devemos lutar pelo “direito” de fazer justiça com as próprias mãos, de montarmos tribunais domésticos, julgarmos e executarmos as sentenças em nossas casas e em nossas comunidades, já que a nossa Justiça anda deixando mesmo a desejar... E mais, como a política econômica não satisfaz ao povo, com seus juros altos e a contenção do crédito, lutemos pelo “direito” de imprimirmos nossa própria moeda. Ah, sim, em tempo, se os governos não “pensam em nosso bem”, ainda bem que a CBC e a Veja pensam, se não, o que seria de nós?...

Essa discussão de “direitos” beira a insanidade. Como estou convencido pelos partidários do NÃO que sou esquizofrênico, fico a me questionar sobre meu “direito” de portar uma arma... Dizem então, se você não quer, outros querem... É um direito... Voilà! O vizinho rabugento tem esse “direito”, o maluco do trânsito tem esse “direito”, o marido ciumento tem esse “direito”... Acho que, de novo, não percebi alguma coisa... Deve ser a esquizofrenia se agravando...

Não, mas diz um digno representante da inteligência nacional, um professor de Direito da PUC-SP (talvez isso tenha algum valor em si, ave Platão!), que votar no SIM é admitir uma violência à Constituição. Vamos lá, bem devagarzinho para eu entender, afinal, a minha mediocridade aliada à minha já agravada esquizofrenia talvez estejam prejudicando meu insipiente raciocínio: quer dizer que permitir vender armas e munição, que têm como objetivo único, veja (veja não, perceba...), único, a morte de pessoas é um direito assegurado na Constituição brasileira... Será que falta alguma página na cópia da minha Constituição? Por que seria um direito andar armado em todos os lugares e não seria fumar dentro dum avião? Ou estacionar meu carro no meio da rua? Ou andar nu pela cidade? Ora, mais devagar, senhor doutor... Em tempo, será que o senhor já advogou para a CBC? É só uma perguntinha despretensiosa...

Estão tentando fazer do referendo sobre a venda de armas e munição um plebiscito sobre o Governo Lula. Como muitos brasileiros, eu também estou decepcionado com os inúmeros casos de corrupção e bandidagem política. Mas o referendo não é sobre o Governo Lula! Ele, como outros bandidos anteriores e futuros, passará, mas a nossa opção ficará. Não podemos embarcar nas campanhas tolas das Vejas da vida, tucanas até a alma, que querem aproveitar o momento para dizer não ao Lula. Eu digo não ao Lula, ao FHC, ao Serra, a todo o PFL, ao Roberto Jefferson, ao José Dirceu, ao ACM (o original e o neto), e a tudo o que já se fez de política até hoje no nosso país. Haverá, ano que vem, o momento certo para dizer esse NÃO bem grande... Mas, mais uma vez, o referendo não é sobre a política de segurança pública do Governo Lula ou de qualquer outro, é muito mais sério do que isso, é uma opção do país pela paz ou pela manutenção da violência entre nós. Com quem mesmo está a mediocridade?...

Mais duas outras construções racionais de uma pureza digna de Protágoras, que, pelo conteúdo, merecem estar comentadas juntas:

“Descobri que a arma legal alimenta os bandidos. Todas aquelas AR-15, AK-47, granadas e bazucas que os traficantes do Rio usam foram, roubadas de cidadãos honestos que as compraram todas legalmente. Da minha casa mesmo, por exemplo, ano passado, me roubaram quatro mísseis Stinger e três Tomahawk”.

“Descobri que se eu vir ou ouvir algum bandido pulando a cerca e entrando no meu quintal, eu não vou conseguir afugentá-lo com um tiro para cima ou para o chão. Se ele ouvir o tiro, aí sim, é que ele vai ficar excitado e vai querer de toda forma entrar em casa e trocar tiros comigo. Eles adoram fazer isso...”
Além do preconceito explícito, posto existirem traficantes armados até os dentes no Rio, São Paulo, Belo Horizonte, Salvador, Porto Alegre etc., a argumentação é duma tolice sem fim. Talvez, sentindo-me poderoso com uma 38, ou melhor, uma 44, não, uma pistola automática, os bandidos, armados com, como diz o texto, “AR-15, AK-47, granadas e bazucas” fiquem morrendo de medo... Ah, tá, eles serão afugentados... Exatamente como a polícia consegue afugentá-los, muito mais bem armada do que os homens brilhantes com suas armas domésticas... Diante desse raciocínio tão bem construído na ironia do NÃO, não haveria troca de tiros com policiais e eles não seriam tão ousados, afinal, bastaria um tirinho para o chão ou para o alto... Será que eu perdi alguma parte dessa história?...

E, para encerrar com esse libelo do NÃO, mais essa beleza de silogismo:

“Se o SIM ganhar, o Brasil vai ser um país mais feliz. Que nem na novela! Uêbaaaaaaa!”
Então tá, votemos todos no NÃO, e deixemos o país exatamente como está... Uêbaaaaaa!

Eu hein, e sou eu que estou ficando esquizofrênico...

Esquizofrênico, quiçá? Mas burro, não! Voto SIM!

terça-feira, 11 de outubro de 2005

Sou religioso (de Rubem Alves)

Eu sou muito religioso. Por isso trato cuidadosamente de evitar igrejas e cerimônias religiosas: para que meus sentimentos religiosos não sejam perturbados. Minhas experiências passadas com igrejas não têm sido boas. Sempre que vou a igrejas ou participo de cerimônias religiosas minha alma fica irritada. Os porta-vozes de Deus sempre falam demais. Parecem gostar do som da sua voz. Gostaria de uma igreja onde não houvesse sermões: só silêncio, música e poesia. Houve exceções de que não me esqueço. Uma missa na catedral de Cuernavaca, México. Se houve homilia eu nem me lembro.

Lembro-me da dança ­ todo mundo dançando, ao ritmo da música dos mariachis. Foi alegria pura. Lembro-me também de uma semana que passei num mosteiro da Suíça onde se cultivava o silêncio. Três vezes ao dia, às seis da manhã, ao meio-dia e às seis da tarde havia uma meia hora litúrgica onde nada era dito. Apenas o silêncio, as velas, a contemplação dos ícones de Cristo. Foi beleza. Deve ter havido outras ocasiões. Mas não estou me lembrando delas no momento.

Quando me perguntam eu deveria dizer que não sou religioso. Dizendo-me religioso, os outros logo pensam que sou adepto de alguma religião. Eles imaginam que as religiões e as igrejas são semelhantes aos supermercados, lugares aonde a gente vai se abastecer de mercadorias sagradas. Para eles, ter sentimentos religiosos sem freqüentar igrejas ou pertencer a religiões seria o mesmo que dizer que me abasteço de verduras, frutas, legumes, carnes, leite, cereais sem fazer compras.

Daí não entenderem que eu possa ter sentimentos religiosos sem freqüentar igrejas. De fato, eu não pertenço a grupo religioso algum. Meus sentimentos nada têm a ver com igrejas e rituais religiosos. Talvez eu devesse simplesmente dizer que sou místico sem religião. Se os religiosos disserem que isso não é possível, que é preciso ter uma religião, eu lhes direi que não há indicações de que Deus tenha concordado em se tornar numa mercadoria a ser distribuída com exclusividade pelos seus supermercados religiosos. Deus é livre como o Vento ­ pelo menos foi isso que Jesus disse. Claro que há religiões que dizem que o Vento só pode ser obtido engarrafado. Elas se acreditam como distribuidoras de Vento engarrafado. Uma religião que afirme que o sagrado é um monopólio seu está dizendo que ela conseguiu engarrafar o Vento, que ela conseguiu por o Vento sob seu controle. E isso é idolatria. Os teólogos medievais sabiam que o finito não pode conter o infinito.

A minha experiência com o sagrado vem sempre fora de lugares religiosos, diante do mistério da noite estrelada, de uma teia de aranha, de uma árvore florida, da ternura do amor, do riso de uma criança, da frescura dos riachos, da graça do vôo dos urubus, da alegria do cachorro que me recebe. Essas coisas que me dão alegria e que, por isso mesmo, são para mim sagradas, eu nunca as encontrei nas igrejas. Sagrado, para mim, é aquilo que meu coração deseja que seja eterno. O sagrado é a realização do amor. Meu misticismo, assim, nada me diz sobre seres de um outro mundo. Ele não me informa sobre deuses, céus, infernos, pecados, demônios e anjos. Meu misticismo não aumenta o meu conhecimento sobre o universo. Meu misticismo não é um substituto para a ciência.

Meu misticismo, também, não me dá conselhos morais. Não ordena que eu seja bom. Não me manda ajudar os pobres. Não me manda lutar pela justiça. Não é preciso ser místico para ser bom, para amar os pobres, para lutar pela justiça. Acho vergonhoso ser bom, amar os pobres e lutar pela justiça porque Jesus manda. Então é porque ele manda? Se não mandasse a gente não faria? Se Deus não mandasse e não ameaçasse não seríamos bons? Se assim é, então somos bons, amamos os pobres e lutamos pela justiça porque temos medo. Mas tudo o que brota do medo é o oposto do sagrado. O amor lança fora o medo.

Meu misticismo nem me dá conhecimentos de um outro mundo e nem me dá ordens morais. Ele é um sentimento ­ ou como se fosse uma música que ouço dentro de mim. Schleiermacher, um teólogo romântico do fim do século 18, dizia que o sentimento religioso é o sentimento de "dependência absoluta" diante do universo. Eu não existo em mim mesmo. Eu existo somente em relação a uma coisa enorme, gigantesca, fantástica, coisa que não compreendo, mas que me envolve, na qual eu nasço e para a qual voltarei um dia.

Sou uma nota numa sinfonia com milhares de notas, uma folha num jequitibá com milhares de folhas, uma única gota num mar com gotas sem fim. De um lado eu me descubro infinitamente pequeno. De outro lado eu me descubro imensamente grande: estou ligado a tudo. Sou tão grande quanto o universo, que se transforma então no meu grande corpo.

Alguns dão o nome de Deus a esse Grande Corpo no qual todas as coisas existem. Gosto dessa idéia. Aconteceu faz muito tempo, quando ouvir o rádio exigia paciência e atenção. Havia a barulheira constante da eletricidade estática que era ouvida ora como pipocas estourando numa panela, ora como uma série de intermináveis assobios. Eu me lembro. Era noite. Já estava na cama. Luz apagada. Gostava de dormir com música. Rádio Ministério da Educação: havia sempre músicas do meu gosto. De repente, no meio dos estouros e assobios da estática, uma música linda que mal se podia ouvir. Mas, em meio aos ruídos sem sentido da estática, o meu ouvido percebia a beleza que mal se ouvia, perdida no meio da estática.

Aí eu pensei que o sentimento religioso é assim mesmo: em meio à barulheira da vida, a gente ouve uma melodia. Há um lindo texto de Nietzsche em que ele descreve precisamente essa experiência ­ ele fala de uma melodia de beleza indescritível que repentinamente começou a ouvir dentro da sua alma, beleza tão grande que ele começou a chorar. Nietzsche era uma dessas pessoas possuídas por um profundo sentimento místico e que, precisamente por causa dele, tinha de ficar longe de todas as religiões. As igrejas o horrorizavam.

Dizia que elas mais se pareciam com sepulcros de Deus. E tinha horror das músicas que ali se cantavam, que ele comparava ao coro de rãs dentro de um charco... Sim. Sou religioso. O universo é o meu templo. O ruído dos regatos, o barulho do vento nas folhas dos eucaliptos, o perfume do jasmim, as cores do crepúsculo, as experiências de arte e de brinquedo são, todos, para mim, sacramentos ­ fugazes experiências do sagrado. Deus nunca foi visto por ninguém. Mas sempre que tenho uma efêmera experiência de beleza e da amor é como se eu tivesse visto, num breve segundo, uma cintilação do sagrado.

quarta-feira, 5 de outubro de 2005

No túmulo de Kardec

Visita à Paris, julho de 2005.

Desde que chegamos à Paris, eu e Mônica desejamos conhecer o túmulo de Kardec. Foi então, num final de semana, passeando pela Cidade Luz de bicicleta, juntamente com a minha irmã e o meu cunhado, que chegamos ao Père-Lachaise, cemitério onde está o túmulo de Kardec, na parte nordeste da cidade.

Os cemitérios em Paris são atrações turísticas e são visitados por muita gente diariamente, em virtude dos túmulos de nomes conhecidos da ciência, da arte, da filosofia, da política etc. O Père-Lachaise é o maior, mas há também o de Montparnasse, de Montmartre etc.

Não pudemos entrar com as bicicletas, prendemo-las num dos muros do cemitério, adquirimos um guia numa loja vizinha, já que ele é imenso e com muitas ruelas e caminhos, e adentramo-lo caminhando. Arborizado e tranqüilo, no meio dum sem-número de lápides com nomes desconhecidos, diz alguém que são mais de 20 mil, vamo-nos encontrando com um ou outro nome famoso, sempre cercado de gente curiosa, como nós, fotografando e perquirindo. Ao vislumbrar o túmulo de Kardec, a alegria e o encantamento iniciais são as emoções presentes. Muito florido e um bom número de pessoas ao seu redor, vendo-o, fotografando-o e tocando-o (por quê? Engraçado como alguns tocam seu busto e oram...). Atrás do dólmen uma placa pede aos passantes que evitem cenas de adoração explícita e mantenham a tranqüilidade local. Um guia turístico, com alguns visitantes, explica, em francês, quem é Kardec. Escuto atentamente, e ele o retrata de forma relativamente fiel, para minha surpresa. Faz um adendo, informando a importância restrita de Kardec para os brasileiros, e ao nos perceber, estranhos, nós quatro, pergunta-nos sobre nossa nacionalidade, e, voltando-se para o grupo, confirma o que havia dito. Olham-nos curiosos, como a perguntar: O que viram nesse indivíduo? Por que brasileiros?

Após aquele encontro com os túmulos de Kardec e Boudet, passei a refletir bastante sobre a realidade do alcance do espiritismo, o que mo fez ver com outros olhos, talvez mais realistas, e menos eloqüentes... O espiritismo ganhou, para mim, outras cores, outros tons, outros odores... Vê-lo na França, tão insignificante, tão sem representatividade, quase como um místico-esoterismo (o que, aliás, o movimento espírita faz), uma curiosidade, deu-me possibilidade de reflexões mais intensas e íntimas. Um encontro mais profundo com sua mensagem e sua limitação. Natural que assim o fosse, afinal, é ele também fruto duma época, dum contexto, que se esvai com o tempo...

segunda-feira, 3 de outubro de 2005

Por um espiritismo kardecista

Artigo de Sergio Mauricio publicado na coluna Religião do Jornal A Tarde, Salvador, BA, em 10/11/2003.

Todos nós espíritas vivemos a experiência de sermos questionados a respeito de qual espiritismo somos adeptos, se kardecista ou outro. A resposta padrão é sempre imediata: não há tipos de espiritismo, todo espírita é necessariamente kardecista, pois espiritismo e espírita foram neologismos criados por Allan Kardec na introdução de O livro dos espíritos. Assim, falar de espiritismo kardecista seria uma redundância, como falar "subir para cima". Por perceber a constância dessa dúvida, tenho tido sempre o cuidado de esclarecer esse ponto nas palestras e nas conversas informais.

Não penso mais assim. Tenho revisto essa postura e esse conhecimento. Diante de tudo que ouço e vejo acontecer nas casas espíritas, passei a meditar mais sobre esse aspecto que parecia ser claro e não permitiria divergências de posicionamento.

Muitos espíritas defendem posições e práticas que não têm fundamento nas obras kardecistas, mas que, quando alertados, afirmam que estão de acordo com o espírito fulano ou o renomado escritor sicrano. Volto a interrogar, e Kardec? Para a minha surpresa (ou não deveria?), acabo ouvindo a falta de interesse em conhecê-lo com mais profundidade e propriedade, preferindo tangenciar o espiritismo através de obras de valor duvidoso, conhecidas com o pretensioso título de obras complementares.

Alguns nomes do meio espírita brasileiro passaram a ser inquestionáveis e suas obras consideradas como patrimônio a ser incorporado às obras de Kardec. Não é a intenção questionar o valor e a qualidade de determinadas obras, mas daí a considerá-las verdades a serem simplesmente seguidas vai uma longa e complexa distância. Já vivi a experiência de colocar em questão determinada idéia de uma obra de um famoso médium, que claramente não coadunava com as contidas na obra kardecista, e fui considerado quase um herege, um radical, um purista ortodoxo. Acreditava ser apenas espírita. Pois assim como devemos colocar em questão as mensagens recebidas dos espíritos, seja por qual médium for, assim preconizava Kardec na sua obra O livro dos médiuns, devemos também, por força da nossa razão e do mesmo princípio anterior, perscrutar qualquer informação publicada por espíritas, independente da sua projeção alcançada.

O desejo de venerar e seguir nomes eméritos por vezes cega o profitente espírita, que acaba por santificar homens e espíritos, ao invés de respeitá-los por sua contribuição intelectual, passível, como qualquer outra, de dúvidas e discordâncias.

A fé raciocinada, tão falada e tão pouco vivida, é expressão antiga; Agostinho já a utilizava no séc. IV, bem como outros pensadores cristãos da Idade Média. Mas nós, os espíritas, apropriamo-nos desta expressão como se original fosse, no intuito de praticá-la efetivamente. Todavia o que se vê é uma necessidade imensa de acreditar na primeira revelação messiânica que chega, impedindo qualquer interrogação, fato verificado até nas reuniões mediúnicas, quando aparece algum "mentor", todos se calam e não ousam sequer travar um diálogo com o espírito, com receio de ser impertinente.

A argumentação contrária parte sempre do princípio que o espiritismo não é um corpo doutrinário fechado, acabado, e sim em constante desenvolvimento, como já dizia o próprio Kardec no primeiro capítulo de A gênese. Isso é claro, mas o desenvolvimento natural do espiritismo se dará através da grande contribuição kardecista: o método científico aplicado ao seu objeto de estudo. A evolução do espiritismo não se dará através de revelações de nenhum espírito em particular, como hoje se tem propagado amiúde, pervertendo por completo o legado espírita, tornando-o, agora sim, um corpo doutrinário dogmático e inquestionável.

Esses "complementos" à obra kardecista acabaram por formar um novo espiritismo, sem qualquer fundamento racional ou científico, igualando-o às religiões dogmáticas, obrigando seus adeptos a acatarem como certezas os mais mirabolantes sistemas de idéias. Assim, surgiu todo um "novo" conhecimento espírita que é propagado através das palestras, dos cursos introdutórios e das obras publicadas a mancheias, que falam em corpos astrais de cores e quantidades diversas, que ensinam sobre chacras e carmas, que propalam tratamentos e técnicas de passes, relegando a obra kardecista a um lugar secundário, se chegar a tanto. Diante dessas e de outras toleimas, compreendi que, em verdade, sou espírita kardecista sim, bem diferente de outras posições encontradas em casas autodenominadas espíritas.
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