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sexta-feira, 10 de março de 2006

Sobre desenhos, liberdade e Voltaire

Artigo de Sergio Mauricio publicado no Caderno Cultural do Jornal A Tarde, Salvador, BA, em 18/03/2006.

"A luz apagada
(mas pior: o gosto do escuro)"
Fragmento dum poema de José Paulo Paes

Muito se disse e se escreveu sobre os doze desenhos satíricos que ironizavam o profeta muçulmano Maomé publicados no jornal dinamarquês Jyllands-Posten, em 30 de setembro de 2005, e também sobre algumas das suas desproporcionais reações, principalmente no mundo islamizado.

Um articulista dum jornal estadunidense, Theodore Dalrymple do City Journal de Nova Iorque, escreveu um texto intitulado “Viva Voltaire”, publicado em 10 de fevereiro de 2006, no qual defende a liberdade de expressão e a classifica como “moeda inegociável”, enquanto um ilustre magistrado brasileiro, em artigo publicado na Folha de S. Paulo em 12 de fevereiro de 2006, pede “mais calma, mais razão” àqueles que divulgaram os desenhos, no qual opta por recriminá-los e encontra justificativas à reação da parcela mínima de muçulmanos pelo argumento da falta de respeito ao outro e à sua fé, rejeitando a evocação de Voltaire e seu “Tratado sobre a tolerância”, por considerar suas condições diversas das atuais. Já um renomado filósofo brasileiro propõe, também na Folha de S. Paulo, em artigo de 19 de fevereiro de 2006, a “ampla defesa do nosso direito sagrado de rir neste vale de lágrimas onde pontificam os que defendem o terror e a censura”.

Sim, é preciso evocar Voltaire, e com todas as nossas forças! A máxima a ele atribuída ainda não está clara para muitos e precisará ser lembrada à exaustão: “Não estou de acordo com o que dizeis, mas defenderei até à morte o vosso direito a dizê-lo”. O preceito da liberdade de expressão, pilar do pensamento iluminista, é fundamento da nossa sociedade ocidental e, portanto, não é mesmo negociável, em nenhuma hipótese. O artigo undécimo da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, decretada em 1789 pelos revolucionários franceses, afirma que “a livre comunicação de pensamentos e opiniões é um dos direitos mais preciosos do homem; cada cidadão pode falar, escrever, imprimir livremente, salvo responder pelo abuso desta liberdade nos casos previstos pela lei”. Rejeitar a evocação de Voltaire por diferenças jurídicas entre o caso da morte de Jean Calas em 1762 e a atual divulgação dos desenhos dinamarqueses é se apegar à forma e não à essência do problema, que não discute filigranas jurídicas, mas premissas e direitos da nossa cultura, aliás, como bem coloca a Declaração citada, dos “mais preciosos”.

Poder-se-ia argumentar que os valores ocidentais não são universais e, portanto, restritos ao seu escopo cultural, o que seria correto. Mas os fatos não extrapolaram o mundo ocidental, não obstante suas conseqüências sim, pois os desenhos foram publicados na Europa, no seio histórico da cultura ocidental. Se a reação islâmica, com mortes e violência exacerbada disseminadas por diversos países muçulmanos, restringisse-se ao alcance de seu mundo e de sua cultura, o ocidente não teria qualquer responsabilidade, mas inaceitável é ver líderes ocidentais pedindo a suprema violência da censura como forma de coibir a livre expressão. Os desenhos causadores de tamanho imbróglio foram proibidos de ser publicados por órgãos de imprensa em diversos países ocidentais; políticos e religiosos do ocidente manifestaram-se a favor dessa proibição, dessa atitude arbitrária e prepotente, a fim de garantir o respeito ao credo alheio, conforme suas argumentações interessadas.

A liberdade de credo, também fundamental, não implica no silêncio da crítica e do riso. Qualquer manifestação contrária à livre expressão é sintoma enfermo e medieval de mentes ainda acrisoladas num passado em que a religião era a medida de tudo. Respeitar o outro, seu credo, sua palavra, é permitir que se expresse, que viva a sua cultura, que reflita a partir de suas bases de pensamento, mas é aceitar que o outro também o faça, e que possa fazer, inclusive, de forma radicalmente diferente da minha. Por isso Voltaire ainda é atual e precisa ser evocado sempre que a escuridão da censura for colocada como hipótese.

A França, que a história reservou o papel de baluarte da liberdade de expressão, emitiu durante esse período sinais contraditórios ao mundo. Dum lado, a triste notícia da demissão do editor-chefe do jornal France Soir, o jornalista Jacques Lefranc, por ter autorizado a republicação dos fatídicos desenhos dinamarqueses em 1 de fevereiro de 2006, e assim ter “ofendido os muçulmanos”, segundo afirmação do proprietário do diário, o egípcio Raymond Lakah, apesar dos significativos protestos de seus funcionários e do Ministério do Exterior da França. Já outros dois jornais franceses, os semanários satíricos Le Canard Enchaîné e Charlie Hebdo, no começo de fevereiro, romperam com a hipocrisia reinante e republicaram os desenhos, além de novos que criaram. Outros jornais europeus também seguiram o caminho da defesa da liberdade de expressão, publicando os desenhos e editoriais que afirmavam tal postura, como Die Welt da Alemanha, La Stampa da Itália, El Periódico da Espanha, Volkskrant da Holanda e The Star da Irlanda.

Vive-se num estranho mundo, a liberdade de expressão é acuada ao ponto do ridículo, como uma lei austríaca que simplesmente proíbe a negação do holocausto judeu durante a II Guerra Mundial, o que já provocou a condenação à prisão por três anos, em novembro de 2005, do historiador britânico David Irving, devido a uma entrevista concedida em 1989. Mas tal absurdo também existe na própria França, é a Lei Gayssot, de julho de 1990, que foi usada para condenar o sociólogo Edgar Morin, em maio de 2005, por ter afirmado em artigo no jornal Le Monde, em 4 de junho de 2002, que “os judeus, que foram vítimas de uma ordem desumana, impõem agora uma ordem desumana aos palestinos”. Outros tantos países europeus também contam com suas leis censoras que impedem a negação do holocausto, como a Bélgica, a Polônia, a Alemanha, a Romênia etc. No Brasil, a Lei 8.882, assinada pelo então presidente Itamar Franco, em junho de 1994, depois substituída pela Lei 9.459, de maio de 1997, assinada pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, proíbe a divulgação de símbolos considerados nazistas. Várias sentenças judiciais no Brasil e no mundo têm proibido a circulação de livros e as manifestações artísticas por questões diversas, algumas consideradas de preconceito racial, outras consideradas ofensivas a algum credo religioso. Outrossim, o livro “Protocolos dos sábios de Sião”, obra do século XIX, está proibido no Brasil, e como não lembrar do lendário desfile da escola de samba Beija-Flor em 1989, organizado pelo carnavalesco Joãosinho Trinta com o enredo “Ratos e urubus, larguem minha fantasia”, que foi proibida de desfilar com uma imagem do Cristo, mas que ainda assim apresentou-a coberta por sacos de lixo e a faixa libertária e irreverente: “Mesmo proibido, orai por nós”.

Talvez seja o caso de promulgar uma nova lei proibindo os historiadores de negarem a escravidão no Brasil ou, quiçá, as perversidades nos navios negreiros. Para não parecer perseguição aos historiadores, uma outra lei proibiria os astrônomos de afirmarem a existência de outros mundos além do sistema solar e os matemáticos de estudarem os números complexos, afinal, não estão descritos em nenhum livro considerado sagrado. Ou ainda uma nova lei que proíba o ateísmo, em respeito ao credo alheio, e dê-lhe como punição a pena máxima, pois, afinal, esses indivíduos não passam de hereges que não temem aos deuses. E para manter a coerência filosófica, uma outra que proíba a divulgação dos símbolos judaicos, visto representarem diversos massacres históricos apresentados nos livros do Velho Testamento e o holocausto atual do povo palestino. Outra sugestão seria a proibição definitiva do ensino do evolucionismo darwinista nas escolas, pois agridem o credo de tantos e tantos, e como pena, que tal a fogueira? Assim teríamos os nossos giordanos brunos e galileus modernos, e a glória da fé estaria salva ao fazermos o Sol girar em torno da Terra e o homem originar-se do barro. Aos livros antigos e novos que ainda ousassem ensinar tais blasfêmias, o fogo nas praças, e assim teríamos também os nossos autos-de-fé. Aos artistas que quisessem expressar suas idéias, na forma que fosse, a prisão ou o degredo. Nossa sociedade estaria finalmente livre desse incômodo chamado liberdade, ainda que tardia. Seria tudo muito engraçado, se não fosse triste e representativo do nosso momento, mas, como ensinou o filósofo já citado, temos o direito sagrado do riso, até sobre nossas próprias mazelas filosóficas e morais.

A censura obscurantista sempre está ao lado do fanatismo, seja ele político, religioso ou ideológico, e o fanatismo é o oposto da tolerância, aliás, relação já apontada por Voltaire, que tanto sofreu com a intolerância política e religiosa, e, para ele, “o melhor meio para diminuir o número dos maníacos, se é que permanecem, é confiar essa doença do espírito ao regime da razão, que lenta mas infalivelmente ilumina os homens”. Ave Voltaire!


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