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sexta-feira, 17 de novembro de 2006

O terceiro olho

Aqui vão algumas fotos presentes no livro "Le troisième oeil", que trata dos estudos e registros fotográficos com presença de imagens não previstas.

CHÉROUX, Clément; et alli. Le troisième oeil: la photographie et l'occulte. Paris, França: Gallimard, 2004.

Esse livro é um catálogo da exposição fotográfica Le troisième oeil: la photographie et l'occulte, organizada pela Maison Européenne de la Photographie, em Paris, entre os dias 3 de novembro de 2004 e 6 de fevereiro de 2005. Colaboraram com a cessão das fotos o Institut für Grenzgebiete der Psychologie und Psychohygiene de Fribourg-en-Brisgau e a fundação Howard Gilman de Nova Iorque.


O médium Florence Cook e Frank Herne, página de álbum com 4 fotografias espíritas, março 1872. A fotografia n. 9 mostra Florence Cook. A silhueta vista atrás dela é provavelmente o espírito de Katie King. As ns. 10 e 11 mostram o duplo de Frank Herne se aproximando dele e o abraçando, uma guirlanda de flores à mão. Na fotografia n. 12, Herne, a mão pousada sobre um álbum de fotografias, parece evocar o espírito duma jovem. Fotos de Frederick Hudson (Grã-Bretanha).
"Ketty King" (sic), Florence Cook e Charles Blackburn em viagem à Paris em abril de 1874. Foto de Édouard Isidore Buguet (França).
Corpo astral com truque. Retrato de Albert de Rochas. 1896. O coronel Albert de Rochas d'Aiglun, administrador da Escola Politécnica, especialista em matéria de ocultismo, ficou intrigado pelas fotografias realizadas em sua presença, de 17 a 28 de março de 1896, pelo sábio russo Jacob von Narkiewicz-Jodko e o médium Sra. Lambert, por "pôr em evidência as radiações que emanam do organismo humano". Rochas dirigiu-se à casa de seu amigo, o fotógrafo Paul Nadar e o perguntou qual "truque" foi utilizado. Nadar fotografou então um de seus assistentes coberto dum lençol branco (tempo de exposição curto) e depois, sempre sobre a mesma placa, Rochas (tempo de exposição normal). Foto de Paul Nadar (França).
Retrato de Amélie Boudet, mulher de Allan Kardec, com o espírito desse último. Entre 1873 e 1875. Foto de Édouard Isidore Buguet (França).
Atração medianímica, fim de junho de 1875. Foto de Édouard Isidore Buguet (França).
Efeito fluídico, fim de junho de 1875. Foto de Édouard Isidore Buguet (França).
Bronson Murray em transe, e o espírito de Ella Bonner. Setembro de 1872. Foto de William H. Mumler (Estados Unidos).
Fanny Conant, médium bem conhecido de Boston, aparece aqui com seu espírito-guia, Vashti. Vashti seria a filha dum chefe indígena, assassinada com seu pai em 1861 por ocasião do massacre da tribo dos Piegans no rio Yellowstone pelas tropas do general Sheridan. Foto tirada entre 1870 e 1875, de William M. Mumler (Estados Unidos).
Fotografia espírita. 1872. O cliché mostra, ao lado do médium Charles Williams, não somente um fantasma, mas também a elevação duma mesa operada pelos espíritos. Trata-se provavelmente do primeiro cliché da história do ocultismo que mostra um tal fenômeno. Foto de Frederick Hudson (Grã-Bretanha).
Em breve, mais fotos do livro citado.

sábado, 29 de abril de 2006

A verdade que liberta

Artigo de Sergio Mauricio publicado na coluna Religião do Jornal A Tarde, Salvador, BA, em 01/08/2005 .

A mensagem cristã divulgada há cerca de dois mil anos, apesar da idade, ainda é uma novidade entre nós, ainda é um evangelho, uma boa nova. Seu conteúdo moral e espiritual foi deturpado e conspurcado pelos homens durante esse longo período de história, tornando-se um amontoado de rituais tolos, crendices sem fundamentos e hierarquias e postos sacerdotais mais preocupados com os poderes terrenos do que com a construção do reino dos céus.

O espiritismo propõe reviver a mensagem original e inovadora ensinada por Jesus, a mensagem revolucionária da renovação pessoal através da prática do amor e da caridade e da busca da compreensão da condição humana diante da vida, mensagem bem representada pela máxima ditada pelo Espírito da Verdade constante n’O Evangelho segundo o espiritismo: “Espíritas! Amai-vos, eis o primeiro ensinamento; instruí-vos, eis o segundo”.

Mas, já próximo o seu sesquicentenário, o espiritismo, como todas as várias propostas de restauração do cristianismo, também sofre com a adulteração do tempo realizada pelos homens. A proposta espírita, fundamentada na moral de Jesus e ratificada pelas mensagens mediúnicas, é a do amor, da compreensão e do consolo, e esses objetivos deveriam ser alcançados, conforme os ensinos propostos pelos espíritos, através do esclarecimento, do incitamento à transformação pessoal de cada um que chega a uma casa espírita. Qualquer outra prática que não crie as condições de transformação pessoal, que não estimule o indivíduo à reflexão sobre seus valores morais e sobre suas ações na vida, é mero paliativo, é como uma distribuição de indulgências, é reviver o que de mais insensato a história humana já produziu em termos religiosos. E nós espíritas estamos fazendo isso.

Jesus ensinou que se conhecêssemos a verdade ela nos libertaria, faria de nós homens livres, e é esse o espírito do consolador, do paráclito anunciado que deverá estar conosco para sempre, é ele a compreensão da verdade, a verdade que explica e consola, pois só a bênção da verdade é consoladora. A função da casa espírita, portanto, como propulsora dos ideais cristãos, é a aspersão da verdade, pois só ela será capaz de libertar o homem que sofre, através do entendimento, da compreensão das razões profundas de sua necessidade de aprendizado nas experiências terrenas.

Muitas práticas espíritas, apesar de ostentarem o verniz da boa vontade, mais aprisionam o homem do que o libertam. Uma casa espírita que mantém, por exemplo, plantões de passes, além de grave erro doutrinário (Revista espírita, set.1865), estimula a irreflexão e a busca pelos meros analgésicos, que não são capazes de enfrentar seriamente o problema real da criatura humana. As pessoas vão em busca da solução dos seus problemas mais comezinhos, como as dificuldades financeiras, os dramas amorosos, as crises nos relacionamentos familiares, dentre outros; e a casa espírita deveria orientar, ensinar (e isso é verdadeiramente consolar), sobre a necessidade da transformação, da mudança de postura diante de problemas tão comuns à vida de todos nós que estamos nesse nível evolutivo, e não apenas aplicar passes ou fazer atendimentos de desobsessão. Ora, há espíritos em torno de nós a todo o momento, a nos acotovelar, no dizer de Kardec, e muitos querem-nos prejudicar e outros tantos ajudar-nos. Se a qualquer problema do cotidiano, a casa espírita for encaminhar o atendido a uma desobsessão, teremos que viver dentro dela, e o que é pior, numa versão moderna e espírita, cá estamos nós oferecendo as nossas indulgências. A desobsessão é remédio a ser usado com conhecimento profundo e aplicado em casos em que sua necessidade seja inconteste.


É preciso evangelizar, não apenas com palestras e cursos introdutórios de espiritismo, é preciso que o público que procura uma casa espírita –e principalmente seus condutores– tenha contato direto com leituras dos evangelhos sobre Jesus e das obras de Kardec, prática infelizmente pouco comum. As casas espíritas devem seguir o caminho da divulgação desses textos, que fundamentam o verdadeiro cristianismo, como única forma de cumprir o papel de consolador e de orientador, libertando o homem ao invés de aprisioná-lo, além de ser também o único caminho de se buscar a coerência doutrinária e a tão desejada unificação.

segunda-feira, 17 de abril de 2006

Reflexões sobre a democracia e o 31 de março

Artigo de Sergio Mauricio publicado no Caderno Cultural do Jornal A Tarde, Salvador, BA, em 15/04/2006.

“Apesar de você, amanhã há de ser outro dia
Eu pergunto a você onde vai se esconder da enorme euforia?
Como vai proibir quando o galo insistir em cantar?
Água nova brotando e a gente se amando sem parar”
Fragmento duma canção de Chico Buarque

Imagine-se uma situação na qual alguns proprietários de latifúndios ou exploradores de minas pelo país reunir-se-iam, anualmente, numa data que, para eles, fosse representativa, e comemorassem o sistema escravocrata de produção. Nesse dia, seus expoentes fariam discursos enaltecendo a escravidão como responsável pelo desenvolvimento sócio-econômico do país por mais de 300 anos, e afirmariam o orgulho por um passado glorioso de força e poder, além de situar a escravidão como um valor imutável que daria sentido à economia brasileira.

Tal possibilidade seria considerada por muitos como esdrúxula e insensata, pois feriria a história e a dignidade daqueles que foram suas vítimas. Mas, apesar do absurdo, não se poderia negar tal direito de manifestação a quem quer que fosse, pois essa situação hipotética se inseriria no contexto das liberdades individuais, como a liberdade de expressão e pensamento, e, portanto, legítima. Entretanto, e se essa estranha comemoração fosse patrocinada por um órgão oficial do Governo Federal, como o Ministério da Agricultura, por exemplo? Nessa nova suposição, não se falaria mais em simples exercício das liberdades individuais, mas num posicionamento formal do governo de turno sobre a questão, que deliberadamente assumiria uma opinião sobre o tema. Haveria, obviamente, uma inadequação dessa postura oficial, pois se mostraria tolerante com a prepotência e a arrogância em detrimento da luta em favor da liberdade e da igualdade sociais.

Essa ficção inaceitável acima descrita acaba de ocorrer no Brasil, é preciso apenas trocar nomes e fatos históricos: no último dia 31 de março, o comandante do Exército, general Francisco Roberto de Albuquerque, protagonizou um momento insólito quando divulgou uma nota em comemoração ao golpe militar que submeteu o país a uma ditadura que durou mais de 20 anos.

Na nota, divulgada como ordem do dia, e, por conseguinte, lida em todos os quartéis do país, o general afirma: “o 31 de março insere-se na história pátria e é sob o prisma dos valores imutáveis de nossa Força e da dinâmica conjuntural que o entendemos”. Para melhor apreender o profundo significado dessa afirmação, precisa-se recorrer à história do país durante a vigência da ditadura militar, que foi responsável por um horror indescritível, que matou e torturou um sem-número de brasileiros, apenas por pensarem de forma diferente. A pergunta imediata que não se cala é a que valores o general se referiu? Seriam a tortura, o assassinato, o desaparecimento, a perseguição política, as prisões ilegais, o exílio contumaz, os tais “valores imutáveis de nossa Força”? É o que naturalmente se entende.

Adiante reflete o autor-general que o golpe militar "une-se, vigorosamente, aos demais acontecimentos vividos, para alicerçar, em cada brasileiro, a convicção perene de que preservar a democracia é dever nacional”. O advérbio de modo “vigorosamente” não poderia ser mais bem empregado e ilustra com rigoroso primor aquele momento vivido pelo país. Mas daí a concluir que a participação do Exército objetivou “alicerçar a convicção perene” dos valores democráticos soa a escárnio. O país vinha duma curta experiência democrática, após a ditadura Vargas, e os cidadãos escolhiam seus representantes políticos, à revelia de todos os problemas inerentes à frágil e jovem democracia brasileira. Após o golpe ditatorial de 1964, as primeiras providências tomadas pelos militares golpistas, através do Ato Institucional no 1 (AI-1), de 9 de abril de 1964, assinado por representantes das três forças armadas, foram a extinção das garantias constitucionais dos servidores públicos e as possibilidades de suspensão dos direitos políticos dos cidadãos brasileiros pelo prazo de 10 anos e de cassação de mandatos políticos em todas as instâncias legislativas nacionais.

No AI-2, decretado em 27 de outubro de 1965 pelo general Castelo Branco, após derrota, em alguns estados brasileiros, dos candidatos militares nas eleições para governador em 1965, com destaques para Israel Pinheiro, do PSD, em Minas Gerais e Negrão de Lima, pela coligação PSD/PTB, na Guanabara, extinguiram-se o pluripartidarismo e as eleições diretas para presidente, permitiram-se o fechamento do Congresso Nacional e a intervenção imediata em estados e municípios, e alterou-se a formação dos tribunais de justiça, buscando sua subserviência aos interesses da ditadura. No mesmo trajeto da violência contra a democracia e da supressão dos direitos políticos e das liberdades individuais, foi promulgado em 5 de fevereiro de 1966 o AI-3, que suprimiu a eleição direta para governador e prefeito das capitais estaduais, que passaram, então, a ser indicados pelos governadores nomeados pela ditadura militar. O AI-4, de 7 de dezembro de 1966, propôs um novo projeto de constituição, que, publicada em 24 de janeiro de 1967, instituiu a Lei de Segurança Nacional, instrumento legal que definiu o crime de opinião, o crime político e o crime de subversão, e a nova Lei de Imprensa, que impôs a censura prévia com agentes presentes em todas as redações de jornais, emissoras de rádio e de televisão.

E no AI-5, mais conhecido pelo nível da repressão que desencadeou, publicado em 13 de dezembro de 1968, permitiu-se ao presidente militar, sem qualquer limitação, a intervenção em todos os níveis da administração pública nacional e o fechamento por tempo indeterminado dos poderes legislativos brasileiros, suspendeu-se a garantia jurídica do recurso de habeas corpus e instituíram-se medidas de segurança que proibiram manifestações e reuniões públicas e a freqüência a determinados lugares. No AI-13, baixado em 5 de setembro de 1969 pela junta militar que substituiu o general Costa e Silva, motivado pelo seqüestro do embaixador estadunidense no dia anterior pelos membros do MR-8, a ditadura endureceu ainda mais o regime, pois oficializou o banimento do Brasil de qualquer cidadão que fosse considerado inconveniente para os militares. E, para finalizar, no Pacote de Abril, decretado em 1977 pelo general Ernesto Geisel, cassam-se diversos parlamentares e altera-se a composição do Senado Federal, com a criação dos senadores biônicos, indicados pelas assembléias legislativas com o objetivo de garantir a maioria parlamentar submissa à ditadura.

Esse breve histórico, disponível a todos os brasileiros que se interessam em conhecer um pouco do passado do país durante o regime militar de exceção, é uma ilustração contundente e irrefutável que não se pode argumentar jamais que se pretendeu, durante a ditadura, preservar os valores democráticos. Ou se trata de má fé ou da mais simplória ignorância.

Ainda em seu libelo, o general sofisma ao dizer que “Esse Exército, o seu Exército, é conciliador sem perder a altivez, generoso com os vencidos, nobre nas atitudes, respeitador da lei, avesso aos ressentimentos”. Poder-se-ia até mesmo aceitar a afirmação se o militar estivesse apenas se referindo ao momento atual do nosso país, mas como sua referência é histórica e busca exaltar o 31 de março de 1964, o deboche é inquestionável. Respeitar leis que foram impostas pela força e pela arbitrariedade é muito fácil e nada democrático; se ser conciliador é proibir a livre expressão e calar “vigorosamente” os cidadãos; se ser generoso é fazer os adversários, mesmo que apenas de opinião, desaparecerem; se ter atitudes nobres é torturar, exilar e matar por crimes políticos; e se ser avesso aos ressentimentos é tripudiar da história e dos massacrados pela ditadura, é preciso urgentemente reformar os dicionários e construir novas definições que se acomodem a essa extravagante realidade.

Waldir Pires, o Ministro da Defesa recém assumido, argumentou para imprensa nacional que o general tem o direito de expressar a sua opinião e que tem “que respeitar a posição de cada um”. Insiste-se em afirmar que o cidadão tem todo o direito de pensar e publicar tudo o que foi escrito nessa louvaminha à participação do Exército brasileiro na história da repressão, o que não se pode admitir sob qualquer pretexto é que o Governo brasileiro seja envolvido nesse episódio burlesco, pois, afinal, o general falou não na qualidade de cidadão, mas de representante formal duma instituição do Governo Federal –o Exército brasileiro–, portanto, o texto representa não apenas a sua opinião, mas a opinião do Estado constituído, cujo novo Ministro da Defesa é um cidadão que viveu o exílio durante a ditadura militar e o Presidente da República foi preso como criminoso político por sua participação em protestos e greves durante esse regime ditatorial. O que tinge o fato com tons ainda mais severos são outros dois acontecimentos prévios: primeiro, mais distante, a constatação que esse episódio não foi um caso isolado, pois em 31 de março de 2000, também numa leitura da ordem do dia do Exército, o mesmo general já havia afirmado que o golpe militar de 1964 fora um ato de “coragem moral” para “restaurar a democracia”, confundindo mais uma vez sua opinião pessoal com o Estado brasileiro; e, segundo, pela afirmação do próprio general, ao referir-se às reações aos seus intempestivos juízos históricos, que o texto fora submetido com antecedência de duas semanas à aprovação do Vice-Presidente e então Ministro da Defesa José Alencar, seu superior imediato, o que corrobora a idéia que o texto representa a opinião da atual gestão política do Governo Federal, transformando o que seria apenas uma pilhéria inoportuna dum general numa interpretação equivocada e atroz da história brasileira por parte da presente administração.

Na Argentina, o dia 24 de março, dia do golpe militar que fez desaparecer cerca de 30 mil pessoas, foi esse ano transformado em feriado nacional pelo atual presidente Nestor Kirchner, não para se comemorar nada, pois nada há para ser comemorado, mas para ser usado como o dia da “memória”, um dia de reflexão e de manifestações para ninguém jamais esquecer o horror que aquele país viveu. Estimulou-se uma maratona de eventos políticos e culturais para registrar o sofrimento dos que trazem as marcas físicas e psicológicas da crueldade da ditadura portenha.

Que se faça o mesmo no Brasil e se use a efeméride desse trágico momento histórico para uma reflexão profunda sobre o papel da democracia em nossa sociedade. Todo regime que suprime as liberdades individuais, que impede a livre manifestação da opinião e do pensamento, que penaliza seus cidadãos pela discordância ideológica e que usa da violência extrema contra seus adversários políticos não merece ser lembrado, a não ser como exemplo a ser preservado às novas gerações do que não se deve permitir que volte a acontecer jamais. O regime ditatorial que se instalou no Brasil após o golpe antidemocrático de 1964, e que se arrastou por mais de 20 anos deixando para trás um rastro de sangue e de arbitrariedade, é um desses claros exemplos. O Brasil tem o dever moral e político de sempre lembrar que não há nada que justifique a supressão dos direitos democráticos, não há “milagre econômico” nem controle inflacionário, não há “Brasil, ame-o ou deixe-o” nem reformas de base, que possam minimizar o horror da escuridão da falta da liberdade e da democracia. Essa lembrança reiterada não deve ser apenas uma “ordem do dia” a ser lida nas escolas, nas fábricas, nos sindicatos, nas ruas e até nos quartéis, mas um valor a ser preservado como patrimônio da educação política do povo brasileiro, para que seus cidadãos tenham a certeza que não há atalhos salvacionistas e que só o exercício longo e contínuo da experiência democrática permiti-los-á construir uma nação mais justa e melhor.

sexta-feira, 10 de março de 2006

Sobre desenhos, liberdade e Voltaire

Artigo de Sergio Mauricio publicado no Caderno Cultural do Jornal A Tarde, Salvador, BA, em 18/03/2006.

"A luz apagada
(mas pior: o gosto do escuro)"
Fragmento dum poema de José Paulo Paes

Muito se disse e se escreveu sobre os doze desenhos satíricos que ironizavam o profeta muçulmano Maomé publicados no jornal dinamarquês Jyllands-Posten, em 30 de setembro de 2005, e também sobre algumas das suas desproporcionais reações, principalmente no mundo islamizado.

Um articulista dum jornal estadunidense, Theodore Dalrymple do City Journal de Nova Iorque, escreveu um texto intitulado “Viva Voltaire”, publicado em 10 de fevereiro de 2006, no qual defende a liberdade de expressão e a classifica como “moeda inegociável”, enquanto um ilustre magistrado brasileiro, em artigo publicado na Folha de S. Paulo em 12 de fevereiro de 2006, pede “mais calma, mais razão” àqueles que divulgaram os desenhos, no qual opta por recriminá-los e encontra justificativas à reação da parcela mínima de muçulmanos pelo argumento da falta de respeito ao outro e à sua fé, rejeitando a evocação de Voltaire e seu “Tratado sobre a tolerância”, por considerar suas condições diversas das atuais. Já um renomado filósofo brasileiro propõe, também na Folha de S. Paulo, em artigo de 19 de fevereiro de 2006, a “ampla defesa do nosso direito sagrado de rir neste vale de lágrimas onde pontificam os que defendem o terror e a censura”.

Sim, é preciso evocar Voltaire, e com todas as nossas forças! A máxima a ele atribuída ainda não está clara para muitos e precisará ser lembrada à exaustão: “Não estou de acordo com o que dizeis, mas defenderei até à morte o vosso direito a dizê-lo”. O preceito da liberdade de expressão, pilar do pensamento iluminista, é fundamento da nossa sociedade ocidental e, portanto, não é mesmo negociável, em nenhuma hipótese. O artigo undécimo da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, decretada em 1789 pelos revolucionários franceses, afirma que “a livre comunicação de pensamentos e opiniões é um dos direitos mais preciosos do homem; cada cidadão pode falar, escrever, imprimir livremente, salvo responder pelo abuso desta liberdade nos casos previstos pela lei”. Rejeitar a evocação de Voltaire por diferenças jurídicas entre o caso da morte de Jean Calas em 1762 e a atual divulgação dos desenhos dinamarqueses é se apegar à forma e não à essência do problema, que não discute filigranas jurídicas, mas premissas e direitos da nossa cultura, aliás, como bem coloca a Declaração citada, dos “mais preciosos”.

Poder-se-ia argumentar que os valores ocidentais não são universais e, portanto, restritos ao seu escopo cultural, o que seria correto. Mas os fatos não extrapolaram o mundo ocidental, não obstante suas conseqüências sim, pois os desenhos foram publicados na Europa, no seio histórico da cultura ocidental. Se a reação islâmica, com mortes e violência exacerbada disseminadas por diversos países muçulmanos, restringisse-se ao alcance de seu mundo e de sua cultura, o ocidente não teria qualquer responsabilidade, mas inaceitável é ver líderes ocidentais pedindo a suprema violência da censura como forma de coibir a livre expressão. Os desenhos causadores de tamanho imbróglio foram proibidos de ser publicados por órgãos de imprensa em diversos países ocidentais; políticos e religiosos do ocidente manifestaram-se a favor dessa proibição, dessa atitude arbitrária e prepotente, a fim de garantir o respeito ao credo alheio, conforme suas argumentações interessadas.

A liberdade de credo, também fundamental, não implica no silêncio da crítica e do riso. Qualquer manifestação contrária à livre expressão é sintoma enfermo e medieval de mentes ainda acrisoladas num passado em que a religião era a medida de tudo. Respeitar o outro, seu credo, sua palavra, é permitir que se expresse, que viva a sua cultura, que reflita a partir de suas bases de pensamento, mas é aceitar que o outro também o faça, e que possa fazer, inclusive, de forma radicalmente diferente da minha. Por isso Voltaire ainda é atual e precisa ser evocado sempre que a escuridão da censura for colocada como hipótese.

A França, que a história reservou o papel de baluarte da liberdade de expressão, emitiu durante esse período sinais contraditórios ao mundo. Dum lado, a triste notícia da demissão do editor-chefe do jornal France Soir, o jornalista Jacques Lefranc, por ter autorizado a republicação dos fatídicos desenhos dinamarqueses em 1 de fevereiro de 2006, e assim ter “ofendido os muçulmanos”, segundo afirmação do proprietário do diário, o egípcio Raymond Lakah, apesar dos significativos protestos de seus funcionários e do Ministério do Exterior da França. Já outros dois jornais franceses, os semanários satíricos Le Canard Enchaîné e Charlie Hebdo, no começo de fevereiro, romperam com a hipocrisia reinante e republicaram os desenhos, além de novos que criaram. Outros jornais europeus também seguiram o caminho da defesa da liberdade de expressão, publicando os desenhos e editoriais que afirmavam tal postura, como Die Welt da Alemanha, La Stampa da Itália, El Periódico da Espanha, Volkskrant da Holanda e The Star da Irlanda.

Vive-se num estranho mundo, a liberdade de expressão é acuada ao ponto do ridículo, como uma lei austríaca que simplesmente proíbe a negação do holocausto judeu durante a II Guerra Mundial, o que já provocou a condenação à prisão por três anos, em novembro de 2005, do historiador britânico David Irving, devido a uma entrevista concedida em 1989. Mas tal absurdo também existe na própria França, é a Lei Gayssot, de julho de 1990, que foi usada para condenar o sociólogo Edgar Morin, em maio de 2005, por ter afirmado em artigo no jornal Le Monde, em 4 de junho de 2002, que “os judeus, que foram vítimas de uma ordem desumana, impõem agora uma ordem desumana aos palestinos”. Outros tantos países europeus também contam com suas leis censoras que impedem a negação do holocausto, como a Bélgica, a Polônia, a Alemanha, a Romênia etc. No Brasil, a Lei 8.882, assinada pelo então presidente Itamar Franco, em junho de 1994, depois substituída pela Lei 9.459, de maio de 1997, assinada pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, proíbe a divulgação de símbolos considerados nazistas. Várias sentenças judiciais no Brasil e no mundo têm proibido a circulação de livros e as manifestações artísticas por questões diversas, algumas consideradas de preconceito racial, outras consideradas ofensivas a algum credo religioso. Outrossim, o livro “Protocolos dos sábios de Sião”, obra do século XIX, está proibido no Brasil, e como não lembrar do lendário desfile da escola de samba Beija-Flor em 1989, organizado pelo carnavalesco Joãosinho Trinta com o enredo “Ratos e urubus, larguem minha fantasia”, que foi proibida de desfilar com uma imagem do Cristo, mas que ainda assim apresentou-a coberta por sacos de lixo e a faixa libertária e irreverente: “Mesmo proibido, orai por nós”.

Talvez seja o caso de promulgar uma nova lei proibindo os historiadores de negarem a escravidão no Brasil ou, quiçá, as perversidades nos navios negreiros. Para não parecer perseguição aos historiadores, uma outra lei proibiria os astrônomos de afirmarem a existência de outros mundos além do sistema solar e os matemáticos de estudarem os números complexos, afinal, não estão descritos em nenhum livro considerado sagrado. Ou ainda uma nova lei que proíba o ateísmo, em respeito ao credo alheio, e dê-lhe como punição a pena máxima, pois, afinal, esses indivíduos não passam de hereges que não temem aos deuses. E para manter a coerência filosófica, uma outra que proíba a divulgação dos símbolos judaicos, visto representarem diversos massacres históricos apresentados nos livros do Velho Testamento e o holocausto atual do povo palestino. Outra sugestão seria a proibição definitiva do ensino do evolucionismo darwinista nas escolas, pois agridem o credo de tantos e tantos, e como pena, que tal a fogueira? Assim teríamos os nossos giordanos brunos e galileus modernos, e a glória da fé estaria salva ao fazermos o Sol girar em torno da Terra e o homem originar-se do barro. Aos livros antigos e novos que ainda ousassem ensinar tais blasfêmias, o fogo nas praças, e assim teríamos também os nossos autos-de-fé. Aos artistas que quisessem expressar suas idéias, na forma que fosse, a prisão ou o degredo. Nossa sociedade estaria finalmente livre desse incômodo chamado liberdade, ainda que tardia. Seria tudo muito engraçado, se não fosse triste e representativo do nosso momento, mas, como ensinou o filósofo já citado, temos o direito sagrado do riso, até sobre nossas próprias mazelas filosóficas e morais.

A censura obscurantista sempre está ao lado do fanatismo, seja ele político, religioso ou ideológico, e o fanatismo é o oposto da tolerância, aliás, relação já apontada por Voltaire, que tanto sofreu com a intolerância política e religiosa, e, para ele, “o melhor meio para diminuir o número dos maníacos, se é que permanecem, é confiar essa doença do espírito ao regime da razão, que lenta mas infalivelmente ilumina os homens”. Ave Voltaire!


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