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segunda-feira, 22 de julho de 2013

Um café com um ex-presidente

Os finais de tarde dos sábados em companhia dum bom café, cujos sabor e aroma me enlevam, e rodeado de livros numa boa livraria sempre trazem oportunidades de reflexão sobre temas que incomodam ou tangenciam algumas de minhas ideias. E essa tarde não foi diferente. Ao deleitar-me das novidades literárias e culturais deparei-me com uma inusitada: Pensadores que inventaram o Brasil, do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Confesso que relutei inicialmente em comprar e ler o novo livro do sociólogo e professor Fernando Henrique. E também confesso que minha relutância apenas refletia meu imenso preconceito por sua trajetória política, que, penso, macula inexoravelmente sua trajetória acadêmica. Afinal, o presidente Cardoso foi, a meu ver, politicamente covarde e perdeu oportunidades históricas de superar algumas de nossas sérias dificuldades sociais e econômicas. E tal história repete-se, infelizmente, com os governos petistas, apesar de achar que esses conseguiram avanços um pouco mais significativos do que aquele. Mas não é de política partidária que quero tratar, e sim de sociologia, e mais especificamente de Gilberto Freyre, que considero um dos maiores pensadores brasileiros, quiçá o maior (não poderia deixar de lembrar dum outro Freire, o Paulo, um gigante da filosofia da educação).

Cumpri meu ritual bibliográfico hebdomadário: peguei o livro que ora interessava-me, sentei-me numa mesa qualquer da cafeteria, cumprimentei as atendentes pelo nome e, antes de ter a oportunidade de pedir meu cappuccino, uma delas me perguntou: “o de sempre, senhor?”. Sorri, aquiesci e acresci: “bem quente!”.

Após ritual quase religioso, desliguei-me do burburinho ao meu redor e ajustei meu foco cognitivo à leitura em questão. As páginas foram passando com celeridade, indicando que a leitura era por demais agradável. Sim, eu vencera o preconceito inicial e aproveitava agora o bom texto crítico do ex-presidente. Fui direto ao capítulo sobre Gilberto Freyre, um dos “inventores” do pensamento brasileiro, segundo o autor. E nisso, posso adiantar, em total acordo com minha insipiente interpretação sobre a realidade brasileira. Sim, não há quem leia Casa-grande & senzala que não se sinta pleno de entendimento sobre a nossa realidade social. Não é apenas um clássico da sociologia nacional, é mais do que isso: é uma obra de arte que fala do Brasil com mágica, beleza e ciência. Um dos livros mais impactantes que já li. E não apenas o li, mas o estudei com os cuidados necessários à elaboração de uma dissertação acadêmica.

Apesar de reconhecer o mérito indelével do pensamento freyreano, o sociólogo Fernando Henrique reproduz uma crítica à sua obra que sói acontecer no ambiente acadêmico: Freyre seria um conservador e um disseminador da ideia da “democracia racial” brasileira, odiada por 10 entre cada 10 estudiosos das sociologia e antropologia tupiniquins. Sua obra seria uma ode ao falacioso sistema escravista condescendente e à visão pouco realista da situação do escravo em terras brasileiras. E nesse jogo dicotômico, no qual reconhece valores quase transcendentais na obra de Freyre ao mesmo tempo em que chega a propor certo “mal estar que sua obra causou, e quem sabe ainda cause, na academia”, reforça um preconceito quase juvenil a um constructo intelectual que beira o insuperável na sociologia nacional.

“Seu café, senhor”, diz-me a atendente com simpatia, trazendo-me à realidade da livraria e fazendo-me ouvir de novo o rumor do vai-e-vem e das conversas das pessoas à minha volta. A pausa foi essencial para sorver a bebida em seu calor original. Continuo minha leitura sempre breve na livraria, a ser concluída em ambiente mais propício: a tranquilidade do silêncio.

Em nova imersão no texto sobre minhas mãos, lembro-me de outras críticas já estudadas, como os comentários dos historiadores Robert Slenes e Cristiany Rocha, que veem Freyre apenas como um defensor da ideia do patriarcado como fonte singular da formação social brasileira, chegando a afirmar que esse “inventor do Brasil” compara o escravo a um animal sem controle dos instintos que vive em situação de prostituição doméstica. E aqui não poderia deixar de citar Casa-grande & senzala explicitamente:

temos que reconhecer o fato de que desde os dias coloniais vêm se mantendo no Brasil, e condicionando sua formação, formas de organização de famílias extrapatriarcais, extracatólicas que o sociólogo não tem, entretanto, o direito de confundir com prostituição e promiscuidade. Várias delas parecem ter aqui se desenvolvido como resultado de influência africana, isto é, como reflexos, em nossa sociedade compósita, de sistemas morais e religiosos diversos do lusitano-católico, mas de modo nenhum imorais para grande número de seus praticantes” (Global, 2004, p.130).

Não obstante a clareza do discurso freyreano acima bem ilustrada, questiono-me se há realmente problemas científicos nesse clássico da sociologia nacional ou se as críticas que leio não passam de má vontade por parte de alguns estudiosos mais interessados em propagar mitos raciais. Como diria a socióloga Cynthia Sarti, Freyre desperta uma “apreensão” no meio das ciências sociais; apreensão, complemento, causada pelo vigoroso painel que expõe das relações sociais, culturais, étnicas e econômicas, impedindo a construção do mito racial inverso àquele que se culpa Freyre. E o ex-presidente, em coro, afirma ser a obra em discussão uma construção mistificadora, adjetivo posto garrido de sofisticações que ainda assim não esconde a dureza da crítica, haja vista a desconexão óbvia, conforme o fragmento exposto, entre a obra e o pensamento dos que sofreram do “mal estar” por ela causado.

A obra de Freyre ainda carece de crítica mais bem fundamentada. Talvez o tempo e a maturação de seu conteúdo entre os estudiosos permitam uma análise menos ideológica e mais racional. Culpá-lo de mistificar as diferentes participações étnicas na formação socioeconômica brasileira, baseando-se apenas num desejo nada científico de criar situações que os fatos históricos não corroboram, é justamente mistificar, num sentido mais preciso. É fato que não tenho pendores de Teseu, mas obrigar Freyre a deitar no leito de Procusto é, no mínimo, uma injustiça intelectual.

Acabou o café. Fechei o livro. Paguei a conta. Fui-me embora. Em casa terei boa leitura garantida e uma discussão solitária a travar com um ex-presidente.
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