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terça-feira, 24 de dezembro de 2013

A nossa falta de caráter cotidiana

 
Foi uma experiência curta: uma passada no mercado para suprir as últimas pendências da noite de Natal. Curta e esclarecedora. Esclarecedora porque o texto do estadunidense, que ora circula na internet(1), desancando o caráter do brasileiro ainda estava bem vivo na minha memória, afinal o lera na manhã desse mesmo dia. Lá é dito que os brasileiros, grosso modo, são maus-caracteres porque sempre querem levar vantagem em tudo (como não lembrar a famosa propaganda do cigarro Vila Rica de 1976(2) e a lei de Gérson: “Gosto de levar vantagem em tudo, certo?”).

Pois nessa curta passada no mercado pude presenciar a riqueza daquilo que é proposto pelo texto do gringo: todos somos espertos demais. Esperto como sinônimo de mau-caráter.

Os fatos:
1. Óbvio que o mercado estava lotado, e tolo seria aquele que, como eu, escolhera “dar uma passadinha” por lá na antevéspera do Natal. As filas dos caixas davam voltas pelo perímetro interno do imenso mercado. Como comprei poucos itens, escolhi a fila de pequenas quantidades, com vários caixas, supostamente criada para agilizar as pequenas compras. O casal atrás de mim na fila encontrou algum parente e o chamou para ficar ao seu lado, não obstante a fila estar imensa. Conversa vai, conversa vem, e a fila já tinha um novo integrante, que a alcançou já pela metade. Os que atrás estavam, problema deles, pois não passavam de otários...

2. Observei, enquanto aguardava as longas dezenas de minutos na fila, que havia várias embalagens abertas encostadas pelo percurso. Embalagens de uvas, de passas, de salgadinhos etc. Ou seja, algumas pessoas abriam as embalagens expostas nas gôndolas, consumiam parte do seu conteúdo e as largavam sem deixar rastros. E sem pagar, é óbvio, afinal não somos otários e queremos levar vantagem em tudo, certo?

3. Há um aviso indicando que aquela fila seria exclusiva para compras até 30 itens. Até aí morreu o Neves, pois desde quando o brasileiro respeitaria mesmo essa tolice? Um casal de idade madura, com dois carrinhos de mercado lotados de compras – provavelmente a compra do mês –, e sem nenhum constrangimento aparente, ocupou um dos caixas para pagá-las. A atendente do caixa chegou a levar uma bronca, provavelmente de sua supervisora, por conta do tempo excessivo com um único cliente, já que aqueles caixas seriam para atendimento rápido. Seriam num país civilizado, não para brasileiros sempre dispostos a fazer os outros de otários...

4. Mas a esperteza, ou falta de caráter mesmo, não é apenas do cliente, pois apesar de o mercado estar lotado, o que seria previsível pela proximidade da data natalina, vários caixas vazios, contei pelo menos 10, ilustravam com precisão que o empresário também quer levar vantagem em tudo, certo? E o cliente que se estresse nas longas filas, afinal ele é otário mesmo...

5. Ao sair, encontro um carro estacionado exatamente atrás do meu. O motorista em pé ao lado do seu veículo nem sequer esboçou reação de retirá-lo. Tive que fazer manobras para conseguir sair com meu carro. Imagino o que ele pensava enquanto eu manobrava naquele espaço exíguo: ”vai otário, daqui não saio”...

Talvez tenha visto até outras barbaridades como as aqui relatadas, mas a nossa intransigência com a falta de caráter já está tão esgarçada que imagino que muitas outras situações tenham passado sem serem percebidas.

É, somos mesmo um povo de merda! E o gringo tem toda razão em gritar para o mundo: viver no Brasil é um inferno e o seu povinho é uma desgraça!

Somos assim. E é por essas observações breves que entendo o tipo de representantes políticos que temos. O deputado, o senador, o vereador e o prefeito não são bandidos porque são políticos, são bandidos porque nós somos todos bandidos, nós somos espertos e todos os outros são os otários a serem trapaceados. Triste sina de um povinho mequetrefe...

Referências:
(1) http://www.geledes.org.br/em-debate/colunistas/22479-americano-cria-lista-de-motivos-pelos-quais-odiou-ter-morado-no-brasil#at_pco=smlre-1.0&at_tot=4&at_ab=per-3&at_pos=0
(2) http://pt.wikipedia.org/wiki/Lei_de_G%C3%A9rson
Foto: os muitos caixas sem operação e, no detalhe, uma embalagem de uva aberta.

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Crítica à obra "A crise da morte" de Bozzano

Segue brevíssima análise do aspecto metodológico da obra A crise da morte de Bozzano. Esse pequeno trabalho apresentei numa palestra no Teatro Espírita Leopoldo Machado (Telma), em Salvador, onde militava o saudoso Carlos Bernardo Loureiro. A análise é mais extensa do que a aqui apresentada, mas busquei reduzir sobremaneira os textos das citações e dos meus comentários, para que ficasse de mais fácil leitura.

1. Metodologia proposta: análise comparada.
“[...] material que se presta a ser examinado e analisado com fundamento na sua consistência intrínseca, que lhe confere um grau notável de probabilidade, da mesma forma que as narrações dos exploradores africanos se prestam a ser analisadas e verificadas, com fundamento em suas concordâncias..."

A comparação entre o material mediúnico analisado e "as narrações dos exploradores africanos" é estranha: é óbvio que o próprio autor poderia ir à África e retornar com suas próprias observações, atestando ou não aquilo que foi relatado anteriormente como verdadeiro ou falso. O mesmo não se poderia dizer da morte...

2. Ainda a metodologia: o ônus da prova.
“Ninguém pode afirmar ou negar a priori. O fato de negar ou de lançar ao ridículo as ‘revelações transcendentais’ equivale a pretender conhecer, de modo certo, o mundo espiritual, o que constitui presunção indigna de um céptico que raciocine...”

Da mesma forma que se pode afirmar sem provas, apenas amparado por um discurso pseudocientífico, poder-se-ia negar sem qualquer constrangimento. Mais há ainda algo mais sério nessa afirmação que vilipendia uma premissa científica: o ônus da prova é de quem propõe a hipótese. E isso, definitivamente, não foi feito pelo autor...

3. Metodologia: os médiuns.
“Se se chegasse a comprovar que um dos médiuns empregados ignorava absolutamente as teorias espíritas (o que excluiria a hipótese de uma colaboração subconsciente), seria conveniente experimentar com outros médiuns, para se obterem informações sobre o mesmo assunto; e assim por diante, sem que se estabelecessem relações entre eles.”

Médiuns que desconhecessem "as teorias espíritas" e que não tivessem relações entre si. Perfeito! Mas isso foi feito? Como são os exemplos trazidos por Bozzano?

4. Metodologia: como foi na prática.

“A coisa é teoricamente possível, mas de realização difícil, porque é raro que um só pesquisador chegue a encontrar numerosos médiuns, de maneira a poder levar a efeito uma empresa formidável como essa. Mais prático era, pois, aproveitar o material imenso que se acumulou [...], relativamente às ‘revelações transcendentais’, para empreender uma seleção severa de todas as peças, classificando-as, analisando-as, comparando-as, tendo o cuidado de colher informações sobre os conhecimentos especiais de cada médium, no tocante às doutrinas espíritas.”

Bem, aqui ele já começa a se desviar de sua proposta...

5. Metodologia: o corte metodológico.
“[...] todos os fatos, que citarei, de defuntos que narram sua entrada no meio espiritual são tirados de coleções de ‘revelações transcendentais’ publicadas na Inglaterra e nos Estados Unidos. “Por que – perguntar-me-ão os leitores – esse exclusivismo puramente anglo-saxônio? [...] é claro que, se os povos anglo-saxônios são os únicos que, até hoje, hão mostrado saber apreciar o grande valor teórico e prático das ‘revelações transcendentais’, como são os únicos que a isso se consagraram, empregando métodos racionais, não me restava outra coisa senão tomar o material necessário onde o encontrava.”

Esse corte epistêmico será analisado com mais propriedade num comentário feito no décimo-quarto caso apresentado.

6. Os casos: primeiro.
“Extraio este fato de uma obra intitulada Letters and Tracts on Spiritualism, obra que contém os artigos e as monografias publicadas pelo juiz Edmonds, de 1854 a 1874. Sabe-se que Edmonds era notável médium psicógrafo, falante e vidente. Alguns meses depois da morte acidental de seu confrade, o juiz Peckam, a quem ele muito estimava, [...]”

Um juiz que era notável médium psicógrafo, falante e vidente? Não eram para ser médiuns sem nenhum conhecimento sobre espiritualidade e sem relações com outros?

7. Os casos: terceiro.
“Reproduzo um último caso de data antiga, que extraio do livro do Dr. Wolfe, Starling Facts in Modern Spiritualism (pág. 388). ‘Jim Nolan’, o ‘Espírito-guia’ do célebre médium Sr. Hollis, que disse [...]”

À revelia do bobo erro na tradução feita pela FEB, pois não era Sr., mas Sra., o médium Sra. Mary J. Hollis era experiente, rica, membro da Igreja Episcopal e com excelente relações no meio espiritualista.

8. Os casos: quarto.
“[...] um fato tirado da obra de Mrs. Jessie Platts, The Witness. Trata-se de uma coleção de comunicações mediúnicas muito interessantes, obtidas graças à mediunidade da própria Mrs. J. Platts, viúva do Rev. Charles Platts, que teve a infelicidade de perder seus dois filhos na grande guerra. As comunicações publicadas provêm do filho mais moço, Tiny, rapaz de 18 anos apenas, morto quando combatia na frente francesa, em abril de 1917, e que se comunicou psicograficamente, mercê da mediunidade improvisada de sua mãe [...]”
“Termino lembrando que Mrs. Jessie Platts foi levada a cogitar de pesquisas mediúnicas e a tentar escrever automaticamente, pela morte de seus dois filhos na guerra. Ela, pois, nada conhecia – ou muito pouco – das doutrinas espíritas e tudo ignorava acerca do conteúdo das outras coleções de revelações transcendentais.”


Mais ou menos. O médium Sra. Platts levou mais de um ano entre a morte de seu filho Tiny, em 28/04/1917, e o recebimento da primeira mensagem em 03/07/1918. E em seu livro ela relata que durante esse período teve contato com as ditas doutrinas espiritualistas, apesar de afirmar ter sido pouco contato.

9. Os casos: sexto.
“A Sra. Duffey, que é de espírito muito cultivado, se tornou médium escrevente e escreveu as mensagens de que se trata, quando apenas havia pouco tempo que se interessava pelas pesquisas mediúnicas, quando, por conseguinte, ainda nada lera, ou muito pouco, sobre doutrinas espíritas.”

O médium Eliza B. Duffey, famosa feminista estadunidense, autora de diversos livros sobre saúde e educação da mulher, convertera-se um ano antes dessas comunicações ao espiritualismo e participava de uma sociedade espiritualista, dando inclusive palestras sobre o tema.

10. Os casos: nono.
“Tiro-o do recente livro de mensagens transcendentais intitulado A Heretic in Heaven. O médium-narrador é o Sr. Ernesto H. Peckham, conhecido pelas suas pesquisas metapsíquicas, o mesmo que precedentemente escreveu o belo volumezinho intitulado The Morrow of Death”

Conhecido por suas pesquisas metapsíquicas e já escrevera outra obra sobre o tema? Sem mais comentários...

11. Os casos: décimo-segundo.
“A mãe do autor das cartas (morto aos 30 anos, em 1918) começa por dizer que, não podendo consolar-se da morte de seu único filho, desejou pôr-se mediunicamente em comunicação com ele. Para esse fim, aconselharam-lhe fosse à Direção do British College of Psychical Science. Foi na sede dessa importante instituição que ela chegou a experimentar sucessivamente, com quatro dos melhores médiuns, [...] Por um deles – uma senhora dotada de faculdade para a escrita mediúnica – foi que recebeu do filho [...]”

Os melhores médiuns do centro de pesquisas! Sem mais comentários...

12. Os casos: décimo-quarto.
“Trata-se de uma santa mãe que se comunica por intermédio de sua filha. Orna a brochura o retrato da morta, cujos traços angélicos se harmonizam de modo muito sugestivo com o conteúdo das mensagens, das quais se exala o perfume celeste de uma bela alma, em suprema comunhão de amor com todos os seres do Universo. É tão espontânea, tão natural a forma em que são ditadas as mensagens, que sugere aos que as leem a intuitiva certeza da origem, autenticamente transcendental, donde promanam.”

Ou seja, a certeza da origem das comunicações é dada pela forma "tão espontânea, tão natural" das mensagens. Muito científico...

13. Os casos: ainda o décimo-quarto.
“[...] a hipótese ‘reencarnacionista’. Sabe-se que é o único ponto importante em que se depara com um desacordo parcial nas mensagens dos Espíritos que se comunicam: entre os povos latinos, eles afirmam constantemente a realidade das vidas sucessivas, ao passo que, entre os povos anglo-saxões, estão em desacordo, na proporção de dois terços que negam mais ou menos claramente esta forma evolutiva do ser humano, e de um terço que a afirma, de modo mais ou menos categórico. [...] Entretanto, conforme já o fiz notar em outras obras, este contraste de opiniões, relativamente a um problema insolúvel para os que o discutem – e, por conseguinte, essencialmente metafísico – nada significa, pois que os próprios Espíritos reconhecem que tudo ignoram a esse respeito e julgam do assunto segundo suas mesmas aspirações pessoais.”

Os relatos dos povos anglo-saxões sugerem, por cerca de 67%, que não existe reencarnação! Isso é muito significativo! Mas o autor resolve o problema dizendo que tudo não passa de discussão metafísica e que os espíritos não sabem de tudo! Resumindo a argumentação do autor: se a opinião do espírito serve para corroborar sua hipótese, ela é válida como prova; se a opinião, mesmo de 67% dos relatos, é contrária, tudo não passa de deficiências pessoais dos comunicantes. Não se pode negar que ele, ao menos, é muito esperto...

Mas fica uma pulga na orelha: 67% dos relatos mediúnicos trazidos nos países anglo-saxões afirmam não existir reencarnação! Isso sugere que o contexto talvez seja mais importante nos relatos mediúnicos do que supõe a nossa vã espiritologia...

14. Os casos: décimo-quinto.
“As mensagens mediúnicas que vamos reproduzir foram obtidas pela Sra. Rambova na residência de seu pai, situada nos arredores de Nice, com o auxílio do médium americano Jorge Benjamim Wehner, que também servia frequentemente para a fundadora da Sociedade Teosófica [...]”

Servia frequentemente de médium? Sem mais comentários...

15. Conclusões.
“[...] os informes que transcrevi deveriam bastar, para confirmação da grande verdade que ressalta dos casos dos médiuns improvisados, inteiramente ignorantes das doutrinas espíritas e que, não obstante, recebem mensagens concordantes, em que todos os detalhes coincidem com as outras narrações do mesmo gênero.”

Ops, o que eu perdi? Será que li outro livro ou o editor misturou a conclusão desse com a descrição de outro?

16. Ainda conclusões.
“Em primeiro lugar, cheguei a demonstrar incontestavelmente, fundando-me em fatos, que as mensagens mediúnicas, em que os Espíritos dos defuntos descrevem as fases por que passaram na crise da morte e as circunstâncias em que fizeram sua entrada no meio espiritual, concordam admiravelmente entre si, de maneira tal que nelas não se encontra uma só discordância absoluta com as afirmações dos outros Espíritos que se hão comunicado com os vivos.”

Das duas, uma: ou eu sou um completo maluco que não consegue compreender um texto rudimentar ou o autor acha que somos todos acríticos...
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