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domingo, 3 de fevereiro de 2008

Fronteiras da ciência:

um caso prático do problema da demarcação científica

RESUMO: A epistemologia contemporânea propõe pressupostos para os limites do que se entende como ciência que são plenamente alcançados pela metapsíquica, área do conhecimento humano que estuda determinados fenômenos não explicados pelas ciências acadêmicas mais tradicionais. Ampara-se tal inferência em breve mosaico histórico dessas pesquisas, orientadas por nomes que obtiveram proeminência nos estudos científicos em campos diversos do conhecimento, e na discussão dos problemas apontados pelos críticos dos estudos metapsíquicos, demonstrando-se a precariedade dessas críticas. A metapsíquica ainda não logrou o reconhecimento de seu status como ciência por questões culturais e históricas, e não por problemas de insuficiência epistemológica.

Palavras-chave: Epistemologia. Ciência. Metapsíquica.

INTRODUÇÃO

Propõe-se uma análise nesse estudo do problema da demarcação dos limites da ciência, utilizando-se da metapsíquica como exemplo prático de problemas que se enfrentam nesse campo filosófico. Essa análise remete tanto à história da ciência quanto à epistemologia, pois o que se pretende é discutir o caminho histórico das pesquisas dos fenômenos metapsíquicos, bem como a cientificidade desse tipo de estudo, ou seja, sua possibilidade epistêmica.

Quanto à análise do aspecto histórico, percorrem-se lepidamente os caminhos que foram trilhados pela plêiade de estudiosos de áreas de conhecimento distintas que se debruçou sobre o fenômeno metapsíquico, independente das hipóteses aventadas por cada um deles.

Quanto ao aspecto filosófico, analisam-se os motivos, sejam histórico-culturais ou epistemológicos, que impedem o acesso dos estudos metapsíquicos ao status de ciência, buscando discutir as alegações formuladas historicamente para esse impedimento, como a falta de critérios metodológicos rigorosos ou a presença constante de fraudes nessa área de pesquisa. Compreender seus “obstáculos epistemológicos”, a partir do próprio estudo histórico, como sugere Bachelard (1996, p.21-2), diferenciando, entretanto, os campos distintos dessa análise –a epistemologia e a história–, é o caminho usado para se compreender a questão.

BREVE HISTÓRICO

Augustus De Morgan, famoso matemático inglês do século XIX, estudioso da lógica formal, da álgebra e do cálculo diferencial, prefaciou o livro de sua esposa, a Sra. Sophia Elizabeth De Morgan, From matter to spirit, lançado em Londres em 1863, no qual afirma: “Estou perfeitamente convencido que tenho, ambos, visto e ouvido, numa maneira que faria a descrença impossível, coisas chamadas espirituais que não podem ser tomadas por um ser racional como capazes de explicação pela impostura, coincidência ou erro” (2001, p.v). E numa de suas cartas (PODMORE, 2003, p.6), datada de julho de 1853, De Morgan relata experiências por duas horas, na presença de “oito ou nove pessoas” em sua casa, que teve com a sensitiva estadunidense Sra. Hayden, nas quais realizou diversos testes e procedimentos que pudessem suprimir a possibilidade de fraude, usando um alfabeto sobre uma mesa e argüindo-a através de questionamentos mentais, tendo como respostas batidas que se faziam ouvir quando passava uma das mãos sobre letras do referido alfabeto. De Morgan alerta, entretanto, que não teria uma teoria específica que pudesse explicar os fenômenos relatados.

Alfred Russel Wallace, naturalista e biólogo nascido no século XIX em Gales, Reino Unido, conhecido pela colaboração extensa que manteve com Charles Darwin na proposição da evolução das espécies através de mecanismos naturais, escreveu diversas obras de notável interesse científico, como Darwinism (1889) e The Malay archipelago (1869). Além dos estudos naturalistas, Wallace também se dedicou a outro tipo de fenômeno, que eram por ele também considerados naturais. Em sua obra On miracles and modern spiritualism, explica suas razões para a incursão no tema:

"É verdade, talvez, que deva afirmar que por vinte e cinco anos eu fui um completo cético da existência de todas as inteligências preter-humana ou sobre-humana, e que nem por um momento eu contemplei a possibilidade de que as maravilhas relatadas pelos espiritualistas pudessem ser literalmente verdadeiras. Se agora mudei minha opinião, é simplesmente pela força da evidência" (1896, p.132).

Nesse texto, ele relata várias experiências que organizou para testemunhar e estudar fenômenos como as mesas girantes, as pancadas sonoras, o deslocamento de objetos etc. Tais reuniões, inicialmente na casa de sensitivos conhecidos, aconteciam em sua própria residência, onde tinha maior controle sobre os resultados das experiências, pela prévia preparação de todo material utilizado. Os fatos que descreve são variados e incontestavelmente surpreendentes, levando-o a seguinte conclusão:

"Foi objetado que nós muito freqüentemente usamos a expressão que os fenômenos que testemunhamos 'não poderiam ter sido produzidos por nenhuma das pessoas presentes'. Eu mantenho que nessa situação eles não poderiam, e continuarei com essa convicção até que sejam produzidos sob condições similares e o modus operandi explicado" (1896, p.144).

Sir William Crookes, também do século XIX, químico e físico, foi descobridor em 1861 do elemento químico tálio e estudioso da espectroscopia, dos raios catódicos e da radiatividade. Suas descobertas resultaram em diversas novidades nas pesquisas físico-químicas, como os tubos de raios catódicos e de raios X. Duas de suas obras mais conhecidas são Select methods in chemical analysis (1871) e Diamonds (1909). Além de toda a sua contribuição às ciências naturais, Crookes interessou-se sobremaneira pelos fenômenos metapsíquicos, pesquisando-os com o mesmo rigor metodológico e o mesmo empenho que dedicava aos seus outros estudos. Sua obra mais conhecida nesse campo é Researches into the phenomena of spiritualism, de 1874, que condensa seus artigos publicados no Quarterly Journal of Science, de Londres, e que trata de suas experiências com os famosos sensitivos Sra. Florence Cook, Srta. Kate Fox e Daniel D. Home. Antes de iniciar seus relatos, afirma:

"Ver-se-á que todos esses fatos têm o caráter mais surpreendente, e que parecem inteiramente inconciliáveis com todas as teorias conhecidas da ciência moderna. Tendo-me assegurado da sua realidade, seria uma covardia moral negar-lhes o meu testemunho, só porque as minhas publicações precedentes foram ridicularizadas por críticos e outras pessoas que nada em absoluto conheciam do assunto, e que tinham bastante critério para ver e julgar por si mesmas se esses fenômenos eram ou não verdadeiros. Direi simplesmente tudo o que vi e o que me foi provado por experiências repetidas e verificadas, e 'tenho ainda necessidade de que me demonstrem não ser razoável esforçar-se uma pessoa por descobrir as causas de fenômenos inexplicados'" (1996, p.25-6).

Seus relatos envolvem fenômenos de materialização de espectros, como a aparição conhecida como Katie King, incluindo vasta documentação fotográfica (cf. CHÉROUX; et alli, 2004), efeitos sonoros dos mais diversos, movimentação de objetos pesados, levitação de corpos humanos etc. Seus estudos, ao lado dos de Cesare Lombroso e de Alexander Aksakof, são dos mais vastos e bem documentados que há. Ao concluir um de seus artigos que compõem sua obra espiritualista, Crookes lista oito possíveis explicações para os fenômenos que presenciou e estudou, optando por rejeitar aquelas que apenas vêem fraude, loucura coletiva ou ação inconsciente do cérebro.

Poder-se-iam ainda citar diversos nomes reconhecidos nos meios científicos e filosóficos, tais como os já acima citados Cesare Lombroso, médico italiano famoso por seus estudos em antropologia criminal, mas que também escreveu a obra Ricerche sui fenomeni ipinotici e spiritici (1901), na qual relata suas pesquisas com a poderosa sensitiva Sra. Eusapia Palladino; e Alexander Aksakof, diplomata e filósofo russo que publicou Animismus und spiritismus (1890), numa controvérsia com o filósofo alemão Eduard von Hartmann, e que levou a Rússia a formar a primeira comissão de caráter puramente científico para o estudos dos fenômenos metapsíquicos. Também o médico francês Charles Richet, prêmio Nobel de medicina em 1913 pela descoberta da soroterapia, autor de diversas obras de patologia e fisiologia humana, dedicou-se também ao estudo dessa fenomenologia, que denominou de ciência metapsíquica, discutida em obras como Traité de métapsychique (1922) e Notre sixième sens (1927); Camille Flammarion, astrônomo e físico francês, fundador da Société Astronomique de France e do Observatório de Juvisy-sur-Orge, nos arredores de Paris, entre suas obras mais conhecidas estão Astronomie populaire (1880) e L'atmosphère et les grands phénomènes de la nature (1905), além daquelas que estudam os fenômenos metapsíquicos, como L'inconnu et les problèmes psychiques (1917) e La mort et son mystère (1917); e Lord Rayleigh (John William Strutt), físico inglês, ganhador do prêmio Nobel de física em 1904 por suas pesquisas sobre gases e pela descoberta do elemento químico argônio, escreveu mais de 430 trabalhos científicos, dentre eles The theory of sound (1877-8), e relata ter-se interessado pela metapsíquica a partir da leitura dum artigo de Crookes sobre o assunto.

Entre os filósofos, destacam-se Robert Owen, socialista utópico galês que se dedicou também aos estudos do modern spiritualism, tendo escrito além de obras analíticas sobre o capitalismo e o socialismo, algumas sobre a metapsíquica, como Address on spiritual manifestations (1855); e o filósofo estadunidense William James, representante da escola pragmática e um dos fundadores da psicologia moderna, que estudou esses fenômenos através da Society for Psychical Research, em Londres, tendo afirmado:

"O que quero atestar imediatamente a seguir é a presença –no meio de todos os ingredientes da farsa– de um conhecimento verdadeiramente supranormal. Entendo por um tal conhecimento aquele cuja origem não possa ser atribuída às fontes ordinárias de informação –ou seja, os sentidos do sujeito" (1973, p.238).

No meio literário, são conhecidos os estudos do francês Victor Hugo e sua participação em sessões familiares de mesas girantes na ilha de Jersey, durante seu exílio entre os anos 1853 e 1855 (SIMON, 1996); e do escocês Sir Arthur Conan Doyle, criador da personagem Sherlock Holmes, que também se dedicou ao estudo desses fenômenos, escrevendo diversos livros sobre o tema, sendo mais conhecido The history of spiritualism (1926).

FRONTEIRAS DUMA CIÊNCIA: A METAPSÍQUICA

O mui breve e incompleto resumo histórico acima intenta ressaltar o interesse despertado em diversos estudiosos, de áreas de conhecimento distintas, acerca do fenômeno metapsíquico, já tão fastidiosamente observado e estudado. Entretanto, apesar das evidências às mancheias, a ciência formal, representada por suas variadas instituições acadêmicas, reluta em acomodar dentro de suas formalidades o estudo desse tipo de fenômeno, relegando-o a uma posição de somenos importância, ajuizando-o sempre como mera habilidade de prestidigitação ou como resultado duma superexcitação de mentes impressionáveis, ou ainda como produto de estudos mitigados de ideologias esotérico-religiosas, portanto sem critérios marcadamente científicos.

Não se pretende justificar o uso feito por linhas específicas de pensamento religioso ou filosófico da existência dos fenômenos metapsíquicos, que pretendem sempre confirmar dogmas ou fundamentar revelações para amparar suas posições sectárias. Entretanto, o uso sem critérios científicos de fatos e conhecimentos humanos não se esgota nessa única possibilidade, mas alcança todas as áreas do conhecimento, como o uso das teorias darwinistas para justificações de preconceitos dos mais diversos ou o uso de teorias filosóficas para a implantação de regimes políticos autoritários, dentre outros vários possíveis exemplos.

O que se pretende, e esse objetivo deve ser claro, é a discussão sobre os limites dos fatos que estariam sob a égide do método científico, através duma análise histórica e epistemológica. A classe de fenômenos, aqui chamados de metapsíquicos –concordando com Charles Richet (2003, p.4)–, em detrimento de outras denominações, como parapsicológicos, sobrenaturais, espirituais ou mediúnicos, escolhida por ser a de menor carga ideológica e conteúdo hipotético, não obstante toda possibilidade fraudulenta comum nesse campo de estudo, é passível de criteriosa observação e análise científica? É possível estabelecer critérios epistemológicos no estudo da metapsíquica? Ou tais fenômenos estarão fadados ad aeternum ao desinteresse da ciência formal? E em caso de o desinteresse ser ratificado, o que levou indivíduos renomados da ciência e da filosofia, como os alguns poucos aqui citados, debruçarem-se sobre essas questões? Ou, de forma mais objetiva, que tipo de fenômeno interessa à ciência? Há, para a ciência, limites e fronteiras para o estudo fenomênico? Se sim, como demarcá-los?

Bacon (2005, p.27) sugere no início do Novum organum que: “Todos aqueles que ousaram proclamar a natureza como assunto exaurido para o conhecimento, por convicção, por vezo professoral ou por ostentação, infligiram grande dano tanto à filosofia quanto às ciências”. Essa sua ilação é pertinente à questão aqui proposta, pois em todos os momentos quando a ciência, por força dalguma novidade gnosiológica, viu-se diante do inusitado ou do, até então, inexplicado, as reações comuns foram a indiferença da comunidade científica ou o repúdio mais acintoso, alcançando a zombaria e o sarcasmo, daqueles que se ousavam nas investigações do novo. Tais posturas são percebidas, por exemplo, nas afirmações de pensadores como Max Scheler e Edgar Morin, citados por Loeffler (2003, p.188), que, a respeito do enfrentamento científico dos fenômenos metapsíquicos, afirmam seu desinteresse e assumem uma postura assaz hostil; ou de Lorde Kelvin, físico escocês conhecido pelo estudo das propriedades do calor, que sentenciou:

"Mantenho-me limitado a rejeitar tudo que tenda à aceitação dessa desprezível superstição de magnetismo animal, mesas girantes, espiritualismo, clarividência e pancadas. Não há sétimo sentido místico. Clarividência e todo o resto são senão os resultados de má observação combinados com impostura intencional praticada em mentes simples e crédulas" (apud RICHET, 2003, p.7).

Mas é o próprio Bacon quem, mais uma vez, adverte:

"O que se tem constituído, de longe, no maior obstáculo ao progresso das ciências e à propensão para novas tarefas e para a abertura de novas províncias do saber é o desinteresse dos homens e a suposição de sua impossibilidade. Os homens prudentes e severos, nesse terreno, mostram-se desconfiados" (2005, p.74).

Cuidadoso como Bacon no trato dos fatos empíricos, Pierre Janet, psiquiatra e psicólogo francês da primeira metade do século XX, reconhecido como o precursor das novas visões sobre dissociação, que, apesar do forte posicionamento contrário às hipóteses não materiais, como as que atribuem esses fenômenos a inteligências extra-corpóreas, debruçou-se sobre sujeitos que apresentavam capacidades metapsíquicas no mais alto grau –o que chamou de “desagregações psicológicas”–, pois esses estudos eram, para ele, “observações psicológicas muito interessantes e refinadas que são longe de inúteis para os observadores de nossos dias” (apud ALMEIDA; LOTUFO NETO, 2004, p.132), demonstrando, portanto, o necessário espírito científico. Ainda no campo da psiquiatria, Carl G. Jung, que se dedicou sobremaneira ao estudo da metapsíquica, com diversos textos publicados sobre o tema, numa de suas cartas ao Dr. Fritz Blanke, em tom pesaroso, diz: “Infelizmente essas coisas ainda são pouco pesquisadas. É assunto para os próximos séculos” (apud ARGOLLO, 2004, p.61).

O objeto de estudo da metapsíquica é amplo e variado em suas manifestações, Charles Richet (2003, p.5) dividiu-o em fenômenos objetivos e subjetivos. Os primeiros caracterizam-se por ações de conseqüências físicas suscetíveis de mensuração instrumental e percepção sensorial, como ruídos em móveis e paredes (raps), deslocamentos de objetos (apports), materialização de espectros etc.; os outros se caracterizam pelos fenômenos psíquicos subjetivos, puramente intelectuais, como a capacidade telepática, a pré-cognição, a xenoglossia, as comunicações ditas mediúnicas, dentre outro sem-número de manifestações. Alguns desses últimos fenômenos entraram para o estudo da psicologia, como demonstram as pesquisas de Freud, Jung, Janet, James e Myers (ALMEIDA; LOTUFO NETO, 2004), que, à revelia das diferentes hipóteses aventadas, dedicaram-se a esse objeto dentro da sua própria especialidade científica.

Embora parte desses fenômenos tenha sido incorporada pelas ciências mais tradicionais, como acima dito, aqueles classificados de objetivos por Richet ainda não lograram um maior empenho da comunidade científica em sua compreensão, pois são esses os fenômenos, apesar de mais espetaculares em suas manifestações, que sofrem os maiores preconceitos por parcela significativa da comunidade científica, que prefere ignorá-los a compreendê-los com mais acuidade, como ilustra a opinião de Kelvin já citada –nesse ponto evoca-se a fala de Bachelard:

"A ciência, tanto por sua necessidade de coroamento como por princípio, opõe-se absolutamente à opinião. Se, em determinada questão, ela legitimar a opinião, é por motivos diversos daqueles que dão origem à opinião; de modo que a opinião está, de direito, sempre errada. A opinião pensa mal; não pensa: traduz necessidades em conhecimentos. Ao designar os objetos pela utilidade, ela se impede de conhecê-los. Não se pode basear nada na opinião: antes de tudo, é preciso destruí-la. Ela é o primeiro obstáculo a ser superado. Não basta, por exemplo, corrigi-la em determinados pontos, mantendo, como uma espécie de moral provisória, um conhecimento vulgar provisório. O espírito científico proíbe que tenhamos uma opinião sobre questões que não compreendemos, sobre questões que não sabemos formular com clareza" (1996, p.18).

Seria, então, uma posição pouco afeita ao espírito científico a simples negação da possibilidade do fenômeno, sem sequer o conhecer e estudar. Alguns homens, com reputação científica acima de qualquer suspeita e deveras cuidadosos para não se permitirem o engodo e a fraude, como já alguns aqui aludidos, estudaram os fenômenos objetivos com propriedade e cuidados metodológicos tais que os permitiram chegar a alguma hipótese sobre o tema. Aqui não importa que tipo de hipótese, pois se pretende apenas discutir a possibilidade científica desses estudos, e não atestar tal ou qual hipótese. Além disso, a história das ciências ilustra que muitas descobertas e estudos foram rejeitados a priori, como alguns exemplos citados por Richet que, pelo ridículo, merecem exposição literal, apesar de longa:

"Anestesia médica foi negada por Majendie. A ação dos micróbios foi contestada por vinte anos por todos os cientistas de todas as academias. Galileu foi preso por dizer que a Terra gira. Bouillaud declarou que o telefone era apenas ventriloquia. Lavoisier disse que pedras não podem cair do céu, por não haver pedras no céu. A circulação do sangue somente foi admitida após quarenta anos de discussão estéril. Numa conferência em 1827 na Academia de Ciências, meu bisavô, P. S. Girard, considerou tolice supor que a água poderia ser conduzida aos níveis superiores das casas por tubos. Em 1840, J. Muller declarou que a velocidade dos impulsos nervosos jamais poderia ser medida. Em 1699, Papin construiu o primeiro barco a vapor; cem anos depois Fulton redescobriu a possibilidade da navegação a vapor, mas ela não foi aplicada até vinte anos depois. Quando em 1892, sob a orientação do meu distinto mestre, Marey, fiz minha primeira tentativa na aviação, encontrei apenas incredulidade, desdém, e sarcasmo. Um volume poderia ser escrito sobre as censuras absurdas com que toda grande descoberta foi recebida" (2003, p.7-8).

Para que o objeto de estudo da metapsíquica esteja claro, evitando-se o problema do “obstáculo verbal”, para que não se o confunda, como a “esponja” de Bachelard (1996, p.91-102), exemplifica-se-o com os estudos de William Crookes (1996, p.19-29), que, inicialmente, imiscuía-se aos grupos espiritualistas, não como adepto, mas como pesquisador, para poder observar e estudar os fenômenos metapsíquicos, fazendo verificações e impondo algumas condições experimentais. Como se sentia, por vezes, um estorvo ao credo dos outros participantes, que viam naqueles encontros uma reunião de caráter religioso, resolveu, então, estudá-los em sua própria casa, montando um local adequado para seus experimentos e para controlá-los com mais severidade metodológica, como descreve em seus textos. Seguem alguns relatos de movimentos de objetos feitos pelo autor:

"A minha própria cadeira descreveu em parte um círculo, não estando os meus pés repousados no soalho. Sob a vista de todos os assistentes, uma cadeira veio lentamente de um canto, distante da sala, o que todas as pessoas presentes confirmaram; [...] Durante três sessões consecutivas, uma pequena mesa moveu-se lentamente pelo meio da sala, nas condições que eu tinha expressamente preparado, a fim de responder a qualquer objeção que se pudesse levantar contra esse fato. [...] Em cinco ocasiões diferentes, uma pesada mesa de sala de jantar elevou-se de algumas polegadas a um pé e meio acima do soalho, e em condições especiais que tornavam a fraude impossível. [...] Os casos mais notáveis de elevação de que fui testemunha realizaram-se com o Sr. Home. Em três ocasiões diferentes, vi-o elevar-se completamente acima do soalho da sala. [...] De cada vez, tive toda a liberdade possível para observar o fato, no momento em que ele se produzia" (1996, p.33 et seq.).

Ainda com exemplos do objeto, seguem alguns relatos de Alfred Wallace:

"Uma pequena mesa subiu verticalmente cerca de um pé do assoalho e permaneceu suspensa por cerca de vinte segundos, enquanto meu amigo, que estava sentado observando, podia ver a parte inferior da mesa com os pés livremente suspensos acima do assoalho. [...] um violão que fora colocado nas mãos da Srta. T. escorregou para o assoalho, passou sobre meus pés e veio ao Sr. R., subindo pelas suas pernas até que apareceu acima da mesa. Eu e o Sr. R. olhávamo-lo cuidadosamente o tempo todo. [...] A mesa tendo sido previamente examinada, uma folha de papel foi marcada privadamente por mim, e colocada com um lápis sob o pé central da mesa, todos presentes tinham suas mãos sobre o mesa. Após alguns minutos batidas foram ouvidas, e pegando o papel encontrei escrito à mão livre – William" (1896, p.135 et seq.).

O estudo do objeto metapsíquico, segundo Richet (2003, p.15), divide-se em quatro etapas históricas: 1) o período mítico, que vai até os estudos sobre o magnetismo animal de Franz Mesmer (1778); 2) o período magnético, que abarca o período entre Mesmer e o conhecido caso das irmãs Fox, em Hydesville, estado de Nova Iorque (1778-1847); 3) o período espiritista, que abrange o período entre as irmãs Fox e o início dos estudos científicos de William Crookes (1847-1872); e, por fim, 4) o período científico, que se inicia com Crookes e alcança os estudos de Richet. Loeffler (2003, p.278), atualizando a classificação de Richet, propõe as seguintes modificações: 4) período metapsíquico, de Crookes ao início dos estudos sobre a parapsicologia de Joseph Rhine (1872-1934); 5) período parapsicológico, de Rhine até o surgimento das pesquisas de Friedrich Jürgenson sobre a transcomunicação instrumental (1934-1967); e 6) período instrumental, que seriam os estudos atuais sobre esses fenômenos.

POSSÍVEIS PROBLEMAS EPISTEMOLÓGICOS DA METAPSÍQUICA

A classificação positivista das ciências, proposta por Comte (2005, p.61), marcou profundamente a história científica recente, pois traz consigo uma idéia que se propagou amiúde: o método das ciências naturais como paradigma de cientificidade. É tão explícita a intenção comtiana que a ciência social é nomeada de “física social”, a fim de mais aproximar seus métodos. Essa visão restrita de cientificidade, que busca unificar os métodos das ciências através do modelo metodológico das ciências naturais, malgrado sua ainda forte presença nos meios científicos, foi, durante todo o século XX, bastante criticada e transformada pelos estudiosos da epistemologia. Popper, que em alguns de seus escritos dos anos 1940 defende esse posicionamento monista em relação ao método das ciências (MOURA, 2002), afasta-se paulatinamente dessa posição, aproximando-se mais da visão do economista, e amigo pessoal, Friedrich von Hayek, que propugnava métodos distintos a áreas distintas das ciências (FERNANDEZ, 2000), como se pode ler na afirmação de sua sétima tese sobre as ciências sociais: “o errôneo e equivocado naturalismo ou cientificismo metodológico, que exige que as ciências sociais aprendam [...] das ciências da natureza o que é método científico” (1978, p.12).

Ainda no final do século XIX, os estudiosos dos fenômenos metapsíquicos já discutiam os aspectos metodológicos de suas abordagens (vê-se essa discussão em quase todos os trabalhos de vulto, como alguns já citados). E quase sempre se colocavam contrários à proposta positivista de unificar os métodos de estudo dos objetos científicos, para que se pudesse validar o caráter de ciência a determinado campo de estudo humano, sem embargo do esforço de alguns em buscar, devido à sua formação positiva, a adequação do método das ciências naturais ao estudo doutras ciências, como a metapsíquica. É notório, por exemplo, o desejo desses pesquisadores em se adaptar à linguagem e às técnicas, então predominantes, dos estudos da física, modelo maior de cientificidade para o homem do século XIX e do raiar do XX, como no já citado fragmento de Crookes (1996, p.28): “o que me foi provado por experiências repetidas e verificadas”; na idolatria do método indutivo feita por Hudson (1896, p.19): “Nada pode ser conhecido com certeza exceto por um apelo a fatos. Este é o raciocínio indutivo”; ou nos cuidados metodológicos de Cesare Lombroso (1999, p.64): “por muito repetidos e controlados por instrumentos de precisão”. O que se espera duma ciência nos moldes positivistas é justamente sua possibilidade de alcançar a objetividade do conhecimento através das repetições de experimentos em condições controladas.

Contudo, essa redução positivista nega peremptoriamente o caráter científico às humanidades, visto não ser possível, em grande parte de suas disciplinas, o uso desse expediente metodológico na abordagem de seus objetos específicos. O método observacional, em que o pesquisador precisa aguardar a ocorrência do fenômeno, sem possibilidade da sua repetição em condições controladas, é fato manifesto das ciências humanas, e, por extensão, dos estudos metapsíquicos. Essa discussão nas ciências humanas já se tornou clássica, e resultou, à revelia dalgumas contestações ainda aferrolhadas em seus idola theatri –no dizer de Bacon–, na validação do caráter científico de suas pesquisas. Alguns exemplos dessas fundamentações epistemológicas das ciências humanas são encontrados na controvérsia entre Popper e Adorno; nas abordagens metodológicas de Émile Durkheim e Max Weber no campo dos estudos sociais; nas discussões metodológicas freudianas sobre seu objeto de estudo, bem diversas dos debates epistemológicos das correntes comportamentalistas da psicologia; e na contribuição metodológica da antropologia cultural, como as de Lévi-Strauss e Franz Boas e seus estudos etnográficos e etnológicos.

Nessa mesma problemática se enquadram as pesquisas da metapsíquica de Richet ou da parapsicologia de Rhine, em muito desacreditadas pela impossibilidade de reprodução em condições controladas de diversos dos fenômenos estudados, principalmente aqueles considerados por Richet como objetivos –ele cita inclusive uma crítica feita a seus estudos, em que o autor argumenta da seguinte maneira: “Uma ciência que alega ser experimental mas confia em experimentos que não podem ser reproduzidos não é jamais uma ciência” (2003, p.6), e responde que: “Em nenhum tipo de experimento todas as condições estão absolutamente sob controle. Este axioma do método científico se aplica mais fortemente na metapsíquica do que em qualquer outra ciência” (2003, p.12)–. Bouvéry (1897, p.165-6), estudioso francês dos fenômenos metapsíquicos do final do século XIX, argumenta, diante da questão da cientificidade dessas pesquisas, que essa disciplina não se enquadra no rol das “ciências exatas, as quais realizam suas experiências à vontade”, pois “há coisas que ultrapassam o quadro das observações e das experiências de nossos laboratórios”. É interessante notar que essas exigências metodológicas, quase sempre inflexíveis, feitas aos estudos dos fenômenos objetivos metapsíquicos não se aplicam a muitas das ciências, e não apenas àquelas ligadas às humanidades, mas também às próprias ciências naturais, como a astronomia, por exemplo, que, apesar da matematização de seus princípios, é disciplina essencialmente observacional, sem possibilidades de reproduzir em condições específicas e controladas diversos de seus estudos e conclusões.

Outro aspecto criticado e lembrado como característica de pseudociência da metapsíquica é a impossibilidade de previsão fenomênica. Loeffler (2003, p.161) lembra diversos exemplos de fenômenos naturais e humanos que são carentes de previsibilidade, como abalos sísmicos e condições climáticas ou comportamentos econômicos e fatos políticos, por mais que suas ciências se esforcem em seu maior e melhor entendimento; no entanto, isso não impede que se reconheçam seus atributos científicos e sua contribuição sui generis na compreensão dos fatos abordados. Destarte, não é esse o fator que fará com que o estudo dessa ordem de fenômenos não seja considerado uma ciência, pois, não obstante alguns pressupostos metodológicos necessários ao seu enfrentamento, deve ser objeto dos estudos científicos.

Um último problema associado a essas pesquisas é a possibilidade constante de fraude. É comum o relato de indivíduos que usaram da disposição de assistentes crédulos para conseguir impressionar através de uso de subterfúgios e prestidigitação, intentando imitar essa realidade fenomênica. Não se pode negar tal prática, ela é real. Há sempre pessoas dispostas ao embuste, em qualquer das atividades humanas. E isso inclui, necessariamente, as ciências formais, sejam naturais ou humanas. São, infelizmente, comuns os relatos de pesquisadores que fraudaram determinados estudos com a precípua intenção da promoção pessoal ou por interesses outros, como o famoso caso do homem de Piltdown, fóssil que ocuparia a posição de “elo perdido”, encontrado na Inglaterra em 1912 pelo paleontologista Charles Dawson; ou o caso da fusão a frio, técnica desenvolvida para fusão nuclear a temperatura ambiente pelos pesquisadores Martin Fleischmann e Stanley Pons em 1989, que se mostrou uma farsa ainda irrealizável; e mais recentemente o médico-veterinário sul-coreano Woo-Suk Hwang que afirmou em 2005 ter conseguido clonar embriões humanos, e que mais tarde confessaria a fraude intencional na manipulação de resultados de seu trabalho. Ainda outros exemplos poder-se-iam citar, pois a lista de desvios éticos no ambiente científico é tristemente longa em extensão e ampla em suas especialidades, mas para a finalidade aqui proposta bastam os citados para se constatar que a existência da fraude e dos problemas morais no exercício da prática científica não torna a ciência uma fraude. Não é porque houve fraudes no estudo dos fósseis que a paleontologia seja uma fraude, da mesma forma, as fraudes em experiências com clonagens ou nos estudos médicos não fazem das ciências biológicas uma fraude. Se há indivíduos dispostos a fraudar fenômenos metapsíquicos, porque os há aos borbotões, mesmo que não intencionalmente, isso não significa em nenhuma hipótese que o estudo dessa gama de fenômenos seja uma fraude ou uma brincadeira para pessoas simplórias, até porque, como visto, os nomes envolvidos nessas pesquisas não permitem esse tipo de inferência.

CONCLUSÃO

Afinal, o que torna então um conhecimento científico? Para Popper, será “sempre questão de decisão ou de convenção saber o que deve ser denominado ‘ciência’ e quem deve ser chamado ‘cientista’” (1993, p.55). Stengers (1990, p.80) propõe uma solução contextual à questão: “Qualquer resposta é histórica e coletiva, ela constitui em cada época e para cada ciência o que está em jogo no trabalho dos cientistas interessados”. Deve-se então, segundo Stengers, buscar a resposta ao problema específico da metapsíquica nas questões culturais que permearam o século XX. E, sobre esse problema em particular, ela afirma:

"Rhine recriou as questões parapsicológicas de tal maneira que as respostas devem ser admitidas como científicas conforme as normas epistemológicas, mas isso não funcionou. Não é à epistemologia que se deve pedir a resposta à questão 'isso é científico?', pois não há resposta de direito, normativa, trans-histórica" (1990, p.80).

O que resta claro, então, é que a exclusão dos fenômenos que interessam à metapsíquica, acima bem delineados, e por corolário a própria metapsíquica, do campo dos estudos científicos é uma questão meramente cultural e histórica, já que esses estudos foram e estão amparados por criteriosa metodologia científica, não sendo portanto, posto comum, coerente com a proposta do espírito científico o impedimento da melhor compreensão sobre essas questões, independente das hipóteses e respostas alcançadas.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Alexander Moreira de; LOTUFO NETO, Francisco. A mediunidade vista por alguns pioneiros da área mental. Revista de Psiquiatria Clínica, São Paulo, v.31, n.3, p.130-139, 2004.

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