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quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

A hora e a vez do segmento padrão

Krishnamurti de Carvalho Dias (*)
Vila Velha, ES, Brasil

"...no seu sentido original atualizar sempre foi passar de potência a ato, isto é, tirar do virtual para o real, o que significa agir em lugar de apenas pensar."
Quando Rivail fez as instituições espíritas estas praticavam atos letivos, pedagógicos a saber:
· A S.P.E.E. Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, que era um espaço cultural;
· A "Revista espírita" que era "un journal d’estudes spirites"; e finalmente
· A livraria que editou os seus livros;
· Foi no Brasil, e somente aqui, que se fugiu a esse padrão laico autoral e se quis torcê-lo para uma fantasia religiosa, com instituições visivelmente místicas e piedosas.

EXÓRDIO

1 - A gente espírita contempla perplexa o quadro a que chegamos, em que não se pode mais usar para ela o clássico apelido de "a comunidade", porque o que existe é de fato uma diversidade e até uma adversidade entre os dois blocos em que se repartiu a coletividade, um com o que se pode chamar de "viés religiosista" do conjunto versus o outro que já é de um "viés" não religioso.

Também o apelido de "o movimento" pode ter perdido o seu sentido, já que a coletividade agita-se internamente em movimentos brownianos, mas não avança em termos de incluir-se na sociedade geral, onde é visivelmente uma excluída, porque incompreendida, tal a confusão que se apossou dessa sociedade geral quanto à agremiação de adeptos. Afinal não se sabe exatamente o que será esta, se a propalada "religião espírita" que pratica o prestigioso e popular "culto espírita", ou se não é.

Nem comunidade, porque dividida internamente em facções de fato inconciliáveis, nem movimento, porque paralisada no tempo e sem ocupar espaços novos na sociedade, essa coletividade que, ainda, em meio a todas essas vicissitudes, se confessa e se proclama "espírita", tenta, até aqui, em vão, se articular.

Nos confrontos ácidos, ásperos, repassados de incompreensões e até de má vontade, longe estamos daquele ideal luminoso de Leopoldo Machado...

"... somos companheiros, amigos, irmãos,
a nossa alegria é bem do evangelho,
sempre ombro a ombro, sempre lado a lado,
mesmo entre perigos, daremos as mãos
como bons amigos, como bons irmãos..."


Bezerra de Menezes advertiu, enfático:

"Solidários somos união, mas, separados uns dos outros, não passaremos de meros pontos de vista, buscando fora aquilo que já está em nossas mãos..."
O que é esse "aquilo" que já está em nossas mãos?

2 - É o penhor de nossa reconciliação, de nossa unificação, de nossa reconquista de unidade original, devolvendo-nos o perdido estado de comunidade e de movimento: a identificação do que temos efetivamente de comum e o ímpeto solidário que nos leva a objetivos realmente comuns de pleno espalhamento de nossa cultura na sociedade.

Os dois blocos desavindos têm, cada qual, um “eslogã”, um apelo, que é sua bandeira particular.

O partido religiosista obstina-se em que o espiritismo é tripartite, descrito por uma trilogia, de ciência, filosofia e religião. Já o partido não religioso (não o chamarei por enquanto de "laico" para evitar certa confusão semântica embutida nesse adjetivo) sustenta outro “eslogã” tripartite também, o de "ciência, filosofia e moral". Ambos são trinaristas, triplicistas, então, porque não há consenso? É porque, evidentemente, há uma discrepância, uma divergência no fim de cada trilogia: religião versus moral, isso impede a coincidência desse terceiro termo, logo, destrói a comunidade e estabelece a diversidade.

Todavia, a comunidade vive mesmo assim expressa naquele par ou dupla de conceitos iniciais da ciência e filosofia, este sim é um dado comum a ambos os empenhos. Não estão aí a comunidade e o consenso de que precisamos? Resta saber se ambos os lados estariam dispostos a abrir mão, (eu disse: ambos), dos respectivos terceiros termos, se o fizessem, restaria o binômio original, natural, puro, de ciência e filosofia, como uma aspiração comum presente desde já em ambos os pleitos.

Ciência e filosofia, por sinal, foi essa a tese autoral, o padrão kardequiano, o autor documentalmente jamais propôs que sua obra fosse alguma terceira outra coisa mais além dessas duas, o padrão autoral sempre foi binário, apenas bidigital portanto, jamais tripartite, nunca trinitário.

No padrão autoral o espiritismo é figura bidimensional, sem triplicação nenhuma. Esta adveio foi da incapacidade dos adeptos de resistirem a uma verdadeira armadilha cultural, um engrama coletivo remotíssimo adquirido desde a fase dos pitecos, quando o homem tangido não sei por quais condicionantes evolutivas, fixou-se no três mito-mágico, místico-sagrado, como o numeral perfeito, cristalizando aí importantes quantificações.

É o trimurti bramânico de Brama-Shiwa-Vixnu, é ou são as famosas "tríades bárdicas" do celtismo-druidismo (que Rivail estremecia, mas pôs de lado, talvez para fugir ao engrama fatídico trinário), é o triunvirato romano; são as troicas da religiosidade egípcia, as trilogias políticas da franco-maçonaria, finalmente a maior trilogia da história leiga, a famosa e incendiária "liberté, fraternité, egalité" da Grande Revolução.

É a fraude histórica da "santíssima trindade", do símbolo de Nicéia, passando pelos três poderes de Montesquieu, este que retomou o rascunho dos Estados Gerais.

Enfim Zé-povo quando quer enumerar, não consegue passar do "Fulano, Sicrano, Beltrano", "do assado, frito e cozido", do isto, do aquilo, e mais outro, até o limite triplo irremovível nas cabeças como na retranca e o ferrolho das três dimensões espaciais, que Euclides fechou e só agora as simetrias de calibre, nas físicas de gauge, conseguiram, fora das vistas da humanidade, deles se evadir, puxando para um espaço-tempo decadimensional novo, em lugar do antigo espaço euclidiano só tridimensional. Engrama é isso: a fixação em algo que sobreleva a razão[1].

A mais importante abertura, derrubando o férreo circulo trinitário desse engrama ancianíssimo, foi sem dúvida a contribuição genial de Leibniz, rasgando à civilização a linguagem bidigital, donde saíram os tititis binários da internet, a alacridade a dois bits dos satélites e sondas espaciais, o bip-bip dos computadores, o chilrear alegre da cibernética, da informática, robótica e da eletrônica.

Era o fim da Era trinitária-tríplice em termos de unidades de significação. E Rivail estava com Leibniz. Seu padrão autoral é binário puro, só dois bits, os da ciência e filosofia, nada mais. O espírito está ou encarnado, se residente na biosfera e pois membro da biodiversidade; ou então permanece desentranhado na erraticidade, como desencarnado. Ao mesmo tempo, operava a maior redução conceitual, ao matar a idéia de morte, vista esta como um não-ser extinguindo a vida, proclamando em lugar desse dualismo falso, o monismo de vida só, sempre vida, com mais vida após a vida, passada esta em diferentes espaçotempos alternativos, no mundo corporal e/ou no dos espíritos, no que bem se pode chamar de "vida" e contravida, como fases alternas em que se decompõem binariamente a "hipervida" geral dos espíritos, seu existir perene, ininterrupto, incessante, contrapostas entre si, ora de internação na biosfera e na biodiversidade ou então de erraticidade, mas sempre vida só, sem morte no meio ou no fim.

Nenhuma triplicidade aí, só dualismo, discurso binário, bidigital, esse o caráter puramente dual do espiritismo, que não tem sido contemplado quando exposto a indevidas triplicações, onde qualquer terceiro termo soa falso, inautêntico, como uma coisa postiça.

Rivail abandonou o engrama, ancestralíssimo, do três fatídico, abraçando o binário, o bidigital revolucionário leibniziano, talvez por sua formação germanófona, pois além de tudo, "mais parecia um alemão", sublinha sua melhor biografa e tradutora, Anne Blackwell, isso até fisicamente, que dirá mentalmente.

Sua frase em que proclamou a supremacia da razão sobre a fé (em “O Evangelho segundo espiritismo”) é toda de Leibniz que já a dissera antes com outra redação[2], Rivail apenas a repropôs, mutatis mutandi. Ao optar pelo modelo leibniziano, Rivail apontou o padrão de sua obra, que é o de um binômio, com o qual seguia os ventos racionais e então ainda muito futuros da modernidade apenas amanhecida, deixando as soturnas virações antigas de trimurtis, trindades, tríades e triplicidades mito-mágicas de antanho.

Ciência e filosofia perfazem cognição, a qual é cultura, no sentido de posse de erudição, dos refinos e picos de saber, de ilustração. Todavia, cultura, após o decesso de Rivail (isso já por volta de 1881, por aí) adquiriu um contra-sentido diferente, já passou a ser também qualquer conjunto de hábitos, de idiossincrasias, praxes ou mores que um povo, mesmo inculto, analfabeto, até selvagem e primitivo, sempre tem. As culturas ágrafas, não escritas, são as culturas desses primitivos, o que decerto não se confunde com a cultura naquele primeiro sentido que antes examinávamos, o sinônimo de ilustração, de posse de ciência e filosofia, arte, tecnologia, em graus elevados e desenvolvidos dos povos cultos, civilizados.

Se dissermos qualquer terceira coisa extra além daquele binômio rivailiano, se triplicarmos o padrão autoral no que quer que seja, estaremos complicando e criando dificuldades de compreensão.

Deolindo Amorim, para contrapor ao discurso religiosista da FEB, uma afirmação laica marcante de sua própria posição, fabricou a expressão de "cultura espirita" (no seu ICEB), estabelecendo o contraditório. Era "o culto espírita" de Chesnel versus a cultura espirita de Rivail, isto é, a cognição, marca inseparável da codificação. Mas já a agremiação, a coletividade dos adeptos (que também levam o mesmo nome que a codificação, de "o espiritismo") em seus naturais estos de admiração e vivenciamento do que qualquer um bem entendia como sendo essa "cultura espírita", já demonstrava bem o perigo de se fixar essa expressão de Deolindo como um dado absoluto.

Se havia uma "cultura espírita", então corria-se o risco de assumir como espiritismo, (ou seja como a cognição erudita espírita) o acervo de hábitos, isto é, de mores, o estoque moral portanto, dos adeptos, toda a espantosa babel que as pessoas, egressas das religiões, dos sincretismos, do materialismo, das formas esotéricas, vinham trazendo cá para dentro da coletividade, como sua bagagem natural, no atavismo, nas idiossincrasias dessa gente, que constituía sem dúvida a sua cultura pessoal, e se essa era a cultura "dos espíritas" então era essa "a cultura espírita como um todo" na visão dos antropólogos, sociólogos, da mídia, dos governos, então tome confusão entre o candomblé, a quimbanda, a umbanda, a santeria, o roustainguismo, o trincadismo, "el cordon", o afro-indigenismo dos recém chegados, tudo confundido com a codificação, numa confusão conceitual que não pode ser chamada lisamente mais de "a cultura espírita".

3 - É que há dois conceitos de cultura, como os há também de religião, e finalmente, também de espiritismo, moral, de laicismo. Essas palavras têm manifestamente, duplo (e até maior número de) sentido cada qual, não podem ser manejadas com desjeito, com descuidado, para descrever e designar a obra apenas científica e filosófica de Rivail, esta que não recepciona nenhuma triplicidade conceitual, não é descritível por nenhuma triplicidade conceitual, nenhuma triplicação.

Rivail nunca assumiu nada mais do que isso: os fatos, apenas os fatos, devidamente estudados, formaram a ciência espírita, da qual decorreu uma filosofia espiritualista, ponto final dessa gênese epistemológica. Tudo mais que daí por diante houvesse, ficou externo, exterior, a esse binômio, como parte das coisas que estão "do lado de fora" desse fechado âmbito interior do padrão autoral de só ciência e filosofia. Por isso a frase padrão kardequiana de definição de sua obra foi muito clara: "o espiritismo é uma ciência e uma filosofia, que têm conseqüências morais", isto é, que afetam os mores, as praxes, os hábitos, a cultura, pois, da sociedade onde transita. E o binômio autoral faz isso. Se não pensarmos assim, não entenderemos a obra de Rivail. O espiritismo só é a codificação, na definição-padrão autoral: ciência e filosofia, cognição codificada, isto é, passada de um estado original para outro, o que dá a Rivail o legítimo direito de ostentar o apelido de "o codificador", sem incidir, momento algum, na pecha de autor religioso de algum novo culto, tão pouco de legislador moralista.

Ele foi apenas o agente que tirou a cognição sobre as coisas do espírito, do estado primitivo de elucubrações soturnas, trazendo-a para o modo aberto, transparente, de saber racional. Onde o que se aprende incorpora-se à mente e passa a transformar os mores, os hábitos de pensar, dizer, fazer, mas todo mundo inventa, fantasia, que tal transformação moral seria só em termos últimos, dramáticos de sublimidade espiritual e santidade.

Qualquer aprendizado e cultura, no sentido crasso de cognição opera tal mudança. Para Rivail, "reconhece-se o verdadeiro espírita por sua transformação moral", porque o seu conjunto de hábitos, seus mores (mos, moris, em latim era "hábitos", aquilo que se faz vulgarmente), passa a refletir a admissão dos novos conhecimentos espiriticos, sem nenhuma mudança dramática de personalidade.

4 - O que se chamava de moral, não passa de um adjetivo, um sinônimo corriqueiro de habitual, cultural, psicossocial, usual, costumeiro, isso é indisputável. Foi só na tendência a complicar, de modo pedante e sob a influência do sombrio religiosismo, que o dado moral, ou seja, as constâncias de procedimento, se tornaram pasto do moralismo, do maniqueísmo, o macartismo, do fiscalismo, território de catões, comadres e candinhas, pudicões e cérberos patrulhadores da vida alheia.

A palavra moral hoje é um caso perdido de polissemia, tal como religião, cultura, laicismo e até "espiritismo" também.

Se dizemos "religião", estamos falando do culto ou do laço. Se ferimos moral, ou é o trio de adjetivos (moral, imoral, amoral) ou é o substantivo, é o código de feras disposições mandatórias, é o conjunto de regras aceitas por um grupo. Se dizemos "espiritismo" ou é a codificação ou então é a agremiação.

Para evitar confusões, Rivail avisadamente pediu que ninguém chamasse sua obra por esses apelidamentos.

5 - Também foi enfático, declaratório, rasgado, em dizer que não havia trazido (nem os espíritos com ele), "nenhuma moral nova", isto é, nenhum código moralista, próprio, seu, inédito, como um Zenão, um Epicuro, um Confúcio, mas tinha, sim, ido buscar a moral de outrem, preexistente, a do Cristo (não a decantada "moral cristã" que não é do Cristo e sim dos papados e concílios) e que essa moral crística é que perfumava a codificação, não como alguma terceira parte dela, porém, como um elemento daqueles admitidos dados adicionais, externos, as conseqüências morais que estão do lado de fora do âmbito formal da codificação.

Moral, adjetivamente, o espiritismo sempre é, porque não é malsão, deletério, logo não é imoral nem amoral. Esse é o significado adjetivo da palavra, descritiva ou indicativa da área onde se dão as conseqüências do ensino e aprendizado espírita, que é o território dos mores populares.

O espiritismo é cultura num sentido mas já não é mais no outro da mesma palavra. Cultura no sentido de erudição clássica, formal, isso ele é; já no de qualquer conjunto de hábitos de gente, com gostinhos, palpites, fantasias; substantivamente porem, já é a decantada "moral espírita" pois realmente isso ele não é, visto Rivail não ter produzido tal código.

Porque é um laço, não um culto, não se pode nem se deve chamá-lo de religião. Porque é moral, só adjetivamente, no sentido de influir nos mores, transformando-os, então não se segue que ele seja substantivamente uma moral, um código rigorista, a diferença é essa.

6 - Já quando se diz que ele é laico, com isso afirmamos que não é religioso, então fatalmente só é um caso de... laicismo, mas o laicismo politicamente é a separação entre igreja e estado. Já por outra, laicismo é a convivência normal entre fés e credos religiosos, sem prevalência de nenhum. Complica que laicismo tornou-se também uma dessas doutrinas de estado contra cultos religiosos como no México, na Espanha republicana, em Portugal pós-monarquia, na Rússia comunista, na França de 89, e até no Brasil republicano. Não é pois palavra prestável para definir nossa posição. Não deve, pois, ser usada.

7 - Se Kardec se exorna com o luminoso título de "codificador" isso é exatíssimo. Romanos tinham ou rolos ou códigos a certa altura, quando se passava de um para outro dos formatos, isso era o codificare, era a codificationem, obra do codificator, o escravo letrado, culto, que fazia essa transposição. Passar de rolo a código, é a alma do que se chama de codificação, por isso Rivail recebeu esse cognome. Quem faz essa proeza, é um codificador, sem que tenha de ser visto como legislador moralista, jurídico ou iluminado de algum culto recém-inventado. Morse fez um código, tirando sentido e dando um fim novo ao bip-bip do telégrafo elétrico, esse código é tecnológico, não moralista. O mesmo com Louis Braille, permitindo aos cegos "lerem" com a ponta do dedos. Watson e Crick são autores do código genético, outro que não é moralista em nada.

8 - Estamos todos usando palavras más pelos seus sentidos múltiplos, que quando moduladas, confundem e abrem chance para espertas manobras de interessados em impor seus pontos de vista pessoais. É o caso de "doutrina", que para muitos é perfeita para descrever o espiritismo. Só que não é. A obra de Rivail não é mais uma doutrina e sim uma entidade mais completa, é um continuum de ciência e filosofia. Mas doutrina virou nome de produtos ideológicos terríveis como o nazismo, o fascismo, o comunismo, o sadismo, o anarquismo, o terrorismo, o racismo, o sexismo, as piores distorções humanas.

Chamado de doutrina tão desenvoltamente pelos espíritas, que idéia faz a sociedade sobre a nossa cultura, quando a vê sentada no banco de réus da história ao lado de tão sombrios colegas? Não podemos mais continuar apelidando assim ao produto rivailiano.

9 - Quando Rivail tomou do termo "espiritismo" foi para tirá-lo da função inglória de nome de mera crença popular antiga em motores invisíveis e projetá-lo como a coisa nova cultural que ele ora havia produzido, a matéria dupla, binária de cognição, isso é codificar. Todavia quando essa cognição bate na sociedade, desperta nesta ecos, repercussões e o povo divide-se a respeito. Uma parte fecha com o novo ismo e sustenta-o, religionando-se numa agremiação laica no puro sentido filosófico da palavra. Outra parte extrapola, fecha com a religiosidade e o misticismo mas ao fazê-lo sai do sentido profundo original laico da codificação.

10 - Acontece que a codificação não tem passado, mas a agremiação sim. A codificação são só dados na maioria técnicos, já a agremiação são pessoas vivas, com gostinhos, humores, caprichos e radicalizações, pontos de vista opiniáticos, emoções, e pesados atavismos imemoriais adquiridos nos trâmites evolutivos.

Agremiação então é um feixe de segmentos de gosto, opinião preferência, que se formam livremente. É um tecido demográfico, conforme a vida pregressa desses membros vivos, que são gente, pessoas.

11 - Enquanto vivermos chamando por um nome só e mesmo a coisas diferentes e até contraditórias, não sairemos do impasse da perda de consenso. Temos de redefinir nossa linguagem.

A agremiação deveria ser a comunidade, porém não é. É a diversidade, pelos seus desencontros e desacertos em manejar linguagens contraditórias. Deveria ser o movimento, o que também não é, pois não vai para parte alguma, move-se só dentro e de si mesma.

12 - Abandonar o passado, eis a palavra de ordem, só por isso, o pomo de discórdias das trilogias, das palavras de duplo sentido ficará desativado.

13 - É que as pessoas ou estão ainda movendo-se no clima pesado dos dependenciamentos religiosos, isto é, desfrutam de sua liberdade "de religião" (o direito de cada qual ter uma, a sua, a que escolheu e que satisfaz, por enquanto ao seu ego) ou então já se libertou de tal dependenciamento e desfruta já do oposto, da liberdade "da religião" tendo se emancipado desse dependenciamento.

14 - Mas uma coisa é pensar em conformidade, em consonância com o padrão autoral da codificação e bem outra é inventar, fantasiar e discrepar dele. Rivail previa isso e pediu exatamente esse respeito mútuo, onde "ninguém deve constranger a consciência de ninguém". Se um se acha o certo, todos virão a "pensar como ele", mas se ele estiver errado, "acabará por pensar como os demais". Esse é o padrão kardequiano.

Dentro da agremiação reina a divisão em segmentos, uns assim e outros assado, ao sabor das idiossincrasias individuais. Mas dentro do espiritismo enquanto codificação, no significado legítimo, original, autoral, está o padrão. Por vezes a agremiação abandona o padrão, esquece a codificação e projeta-se em largos desvios para fora desta. Mas há um segmento que não faz isso, que busca o padrão e observa-o, mantendo-se dentro de seus limites, sem os extrapolar. É o que chamo de "o segmento padrão da agremiação", porque conserva-se nos limites da codificação.

15 - O importante é que todos no fundo pensamos o espiritismo do mesmo modo padrão desejado por seu autor, pois eventuais acréscimos, adições, não passam de conseqüências morais, isto é, o fruto de traços externos, exteriores ao âmbito da codificação, encontráveis apenas na agremiação e em seus mores.

Apelo serenamente para o futuro: o programa agora é racionalizar, entender que o padrão autoral rivailiano é de fato apenas dual, não comportando nenhuma triplicação, posto que, já para fins de normativa para a agremiação, Rivail tivesse sido é tríplice na sua luminosa trilogia de "trabalho, solidariedade e tolerância", mas essas são duas coisas diferentes, que podem conviver e interagir, sem conflitar.

De coração desejo isso: que nos entendamos. Que nos procuremos, solidários, solícitos uns com os outros, embora as por vezes abissais diferenças que milênios de religiosismo e religiosidade, para uns, mas já apenas algumas décadas, só, até, de desconfessionalização e dessacralização para outros, terminaram por aprofundar, traçando um Canyon, uma calha, entre os dois contingentes.

PALAVRAS FINAIS

Total, absoluta é minha solidariedade com o pólo gaúcho e o santista do segmento padrão, bem como a minha identificação com luminosa CEPA, cuja volta ao Brasil tive a felicidade de presenciar. Ofereço essas palavras como uma reflexão muito cordial e fraterna ao consenso dos meus amados confrades.

NOTAS

[1] Quem define engrama é Henri Laborit, in "Deus não joga dados"; Editora Trajetória Cultural; 1º Edição - página nº: 66, Engrama: do grego en (em) e grama (caráter, traço) significa, em psicologia, "marca deixada no cérebro por um acontecimento do passado individual ".

[2] A citação da frase de Leibniz sobre "Fé raciocinada", que Rivail com outra redação reproduziu, está no livro "Bases científicas do espiritismo" - Epes Sargent, edição da FEB; Página nº.175:

"Nenhuma fé, diz Leibniz, pode ser real ou inteligível, se não tiver a sua base na razão humana. A religião divorciada da razão do homem não pode firmar-se e sustentar-se."
(*) Bancário aposentado, expositor, articulista, autor dos projetos CINESP, TEVESP e DATESP, com utilização das mídias, cinema, Super 8, TV VHS e os primeiros Home Computers; autor de diversos livros espíritas, entre os quais “O laço e o culto”, “O nascimento da morte”, “Toques de obsessão”, “A descoberta do espírito”, “Roustaing” e “2 Ensaios”. Desencarnou em Vitória-ES, no dia 02.01.2001, semanas após sua participação no Congresso da CEPA.

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