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terça-feira, 6 de maio de 2014

Chiquismo: a doença infantil do espiritismo

Por Randolfo*

O título é uma paródia a uma grande obra de crítica ao esquerdismo em detrimento do socialismo. E também nem guarda real proporção, pois o espiritismo não gera nenhuma doença - os espiritualistas que se dizem espíritas é que fazem isso.

Temos observado a derivação do movimento dito "espírita" no Brasil na direção contrária às recomendações da codificação e mesmo às particulares de Kardec. O espiritismo no Brasil não se orienta, na prática, pelas obras codificadoras e sim pelas obras de um único autor - Chico Xavier.

Infelizmente, esse autor não prezou pelos aspectos científicos ou filosóficos do espiritismo, preferindo enveredar por um caminho roustanguista fácil, o do religiosismo místico. E como a FEB privilegiou esse autor que tão bem serviu aos seus propósitos (vide Conscientização espirita, de Gélio Lacerda).


Nós temos um companheiro que costuma dizer que o problema não é o que se lê e sim o que se faz com o que se lê. A derivação religiosista, visando implementar uma verdadeira instituição religiosa no meio espírita, é mais fácil de ser seguida e compreendida, pois não requer maiores reflexões, tanto como também não estimula investigações, aferições. Mas, a culpa é de quem lê e não compara com a codificação, pois a codificação tem "linguagem difícil", ou é "muito complicada", nos dizeres de muitos que se dizem "espíritas".

Foi instituída, então, uma ditadura no meio espírita - o "chiquismo". É uma ditadura, pois foi massificada e assimilada pela maioria e absolutamente quase não há fóruns de debate sobre ela. Nota-se: em lugar NENHUM, seja congresso, seminário, simpósio que seja "espírita", abre-se espaço para se questionar NENHUMA obra de Chico Xavier. Muito pelo contrário - quem contesta esse autor é segregado, atacado e humilhado.

Não há como deixar de avaliar que o chiquismo possui instrumentos próprios para sua manutenção: tem base literária, coerência com seus princípios místico-religiosos e uma vasta rede de instituições, tanto como editoras e mídia que o suporta.

Conforme verificamos que o eixo de compreensão do espiritismo, segundo esse movimento, move-se exclusivamente na direção das obras de Chico Xavier e considerando o detrimento em que passa a se situar a codificação espírita, tanto quanto as claríssimas contradições existentes, eis que temos, agora, de fato, a instituição de uma religião. Mas, não se chama espiritismo, pois não se torna uma religião o que não se é.

Inaugura-se no Brasil o "chiquismo", uma religião sincrética, que por mera questão de marketing intelectual assume as feições do espiritismo, sem o ser.

Nota-se que mesmo os autores que seguem essa tendência são sempre ofuscados pela pressão desse grupo, que substituiu Roustaing (que a maioria estranhamente alega nem conhecer...) por Chico Xavier. Kardec ficou absolutamente em segundo plano.

Nota-se como no meio espírita se homenageia o citado autor, como se lhe enchem de julgamentos morais, enquanto o codificador do espiritismo jaz esquecido. Nunca é citado como exemplo moral (alguém mais notou isso?), nunca é citado como exemplo intelectual (também se notou isso?). Aliás, Kardec nunca é citado como modelo de espírita. Para os chiquistas, modelo de espírita é quem contradisse o espiritismo: Chico Xavier.

Nós, defensores do espiritismo, precisamos amadurecer e aceitar os fatos: há uma religião, ela é majoritária e o culto à personalidade é preponderante. E não se pode ignorar a comparação com os iniciantes anos do cristianismo: os ensinamentos de Jesus foram logo deturpados e ele, que não fundou religião nenhuma, viu seu nome ser utilizado para desvios absolutos, que culminaram até na perda de vidas.

E hoje Kardec é utilizado apenas de fachada para agredir-se justamente quem defende seus ideais...

A realidade impõe aos espíritas (uma classe bem mais minoritária do que imaginamos) não o combate a essa seita chiquista, mas o esclarecimento ao nosso povo.

A função do espiritismo é o esclarecimento. Nosso dever é prosseguir nisso. E como se faz? Divulgando a codificação e fazendo principalmente o que Chico Xavier nunca fez, nem tampouco seus defensores: BUSCAR A VERDADE.

Enquanto assistimos a essa nova seita afirmar que os dizeres desse autor são verdades absolutas, não assistimos à busca pela verdade, mas seremos cúmplices se ficarmos parados.

A luta pelo propriedade da expressão "espiritismo" não existe e nem pode existir. A luta pela verdade, sempre.

Queremos a verdade, queremos as obras mediúnicas submetidas à aferição, queremos a investigação dos fenômenos espirituais, queremos fazer novas perguntas para obtermos novas e verdadeiras respostas dos espíritos superiores. Queremos o espiritismo nos ESCLARECENDO e isso somente se dá por meio de informações fidedignas. O fanatismo em prol de uma única pessoa, um único espirito, um único autor, continua possuindo as mesmas características em todas as eras e momentos históricos. Quem seguia Hitler, por exemplo, o considerava infalível...

O chiquismo não precisa ser combatido. É mais uma religião e nada mais, perdida no meio de tantas outras - e a mais inexpressiva, pelo número de pessoas que a adotam. Enquanto evangélicos, que eclodiram somente a partir dos anos 60 no Brasil, hoje são metade da população do país, o chiquismo, essa doença infantil fruto da idolatria, que conta com a mesma idade, possui pífio 1% de nossa população. O chiquismo, então, só possui importância para os chiquistas - não para a imensa maioria do povo brasileiro.

Urge que façamos diferente e levemos o espiritismo verdadeiro a esse povo, carente de esclarecimento e do consolo que só vem pela verdade.

*Randolfo é moderador da comunidade "Eu sou Espírita - Espiritismo" do Orkut.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Conhecendo a FEB

Estou em Brasília. E não resisti à curiosidade de conhecer a FEB. Ontem tomei coragem, peguei um ônibus na W3 e fui à L2 para encontrar com aquilo que considero o que há de pior no movimento espírita. É verdade, não fui de coração aberto: fui cheio de prevenções. Mas curioso, confesso. Fiquei impressionado com a estrutura física: a FEB é imensa! Conheci cada construção interna. No Cenáculo conheci a bela livraria, o imenso salão doutrinário, o museu quase inteiramente dedicado à Chico Xavier, inclusive com um boneco de cera sentado à mesa na entrada que me pareceu quase real, e alguns documentos expostos que me pareceram interessantíssimos, assinados por Kardec (um estava assinado assim: HLD Rivail, Allan Kardec). Tirei fotos. Depois fui ao prédio da Unificação, onde funciona a administração e o salão de reuniões do CFN. Tudo muito bonito. Ali também funciona a Biblioteca de Obras Raras. A parte mais interessante de todo o conjunto! Pude passear pelas obras e senti-me premiado ao manusear um autêntico Le Livre des Esprits, primeira edição. Claro, minha mulher fotografou-me nesse momento ao perceber a cara de menino feliz. E ela me fez tomar um passe (argh!!) no atendimento que acontecia naquele horário. Pegamos a programação de atividades e fomos embora com o compromisso de retornarmos no dia seguinte (hoje) para assistir à primeira palestra pública de 2014.

Chegamos hoje à FEB uns 20 minutos antes do início da palestra. Ainda quase ninguém. Passeei pela livraria e retornei aos documentos raros expostos na entrada do auditório. Entramos e sentamos. Ainda vazio. Faltam agora 5 minutos para o horário previsto e um homem e duas mulheres sobem ao palco e sentam à mesa. A mulher do centro faz uma prece (muito chata) e passa a palavra à outra mulher à sua esquerda. Essa lê um capítulo de Pão Nosso, de Emmanuel, e tece alguns comentários. Achei-os insuportáveis e impertinentes. E mais: desfiguraram aquilo que fora proposto como análise evangélica na obra lida. Vá lá, eu aceito que tudo não passava de prevenção minha, afinal era uma palestra na FEB. O homem então começa a palestrar e sua primeira frase foi: "Daremos hoje continuidade ao estudo da obra de Roustaing, Os Quatro Evangelhos". Confesso que minha vontade foi levantar e ir embora naquele momento, mas pensei: "na França, como os franceses" e educadamente fiquei quieto a ouvir um chavascal de impropriedades proferidas daquele púlpito "espírita". Quando ele citou o Jesus agênere, quase tive uma síncope nervosa e minha mulher me olhava a sorrir. Ao terminar a palestra, todos seguiram para a fila do passe, menos eu, pois saí direto à livraria para reler a RE 1866 e rever a opinião de Kardec sobre a polêmica obra rustenista, enquanto minha mulher tomava a hóst..., ops, o passe.

Ao sair, fui refletindo no ônibus sobre o papel da FEB, não para o movimento espírita, mas para o espiritismo e sua divulgação. Afinal, é isso mesmo que se pode esperar daquela que se autoproclama a Casa-Máter do Espiritismo?

domingo, 26 de outubro de 2008

Bezerra – O homem e o filme

Nícia Cunha
Empresária do setor de serviços; delegada da CEPA (Confederação Espírita Pan-Americana) em Cuiabá, MT.

Fonte:
http://www.cepanet.org/

O filme Bezerra de Menezes - o diário de um espírito é lento, escuro, pesado, consiste em doutrinação enfadonha. Inicia-se com um trecho do livro Brasil: coração do mundo, pátria do evangelho do espírito Humberto de Campos, reforçando o mito judaico cristão da "terra prometida, do povo escolhido". Pretensão absurda, mau julgamento de Deus, que seria assim, injusto e parcial nos seus desígnios, em relação a outras nações e povos, até mais moralizados que nós, os brasileiros.

Tem um teor falso, desde os pequenos detalhes, tais como as barbas e os bigodes de todos os personagens, especialmente os do ator Caio Blat, até o mais importante: a infidelidade conceitual ao espiritismo kardequiano, merecendo mesmo a classificação de "falsidade ideológica". Retrata apenas, e neste caso muito bem, a religião espírita implantada no Brasil.

É igualmente falso em termos de apresentação da personalidade do biografado, pois pelo que consta, Bezerra não era propriamente um "manso". Tinha suas idiossincrasias, absorvidas por uma caracterização apática, passiva, que não era a sua marca.

Não é falso ao mostrar tratamentos médicos e distribuição de remédios manipulados in loco, feitos sem controles sanitários. Prática, felizmente, em declínio no Brasil, por se tratar de exercício ilegal da medicina, embora ainda em uso sob a forma de intervenções espirituais. O ator Carlos Verezza, que personaliza o biografado, em entrevista dada ao Jô Soares, em seu programa da TV Globo, afirmou ter se submetido a uma cirurgia espiritual no Lar de Frei Luís, do Rio de Janeiro, com bons resultados.

Não é falso na caracterização de uma sessão espírita: dirigentes sisudos com falas e atitudes pastorais, trocando entre si olhares assustados, quando interpelados sobre questões doutrinárias que julgam intocáveis; ambiente místico, platéia silenciosa e não participativa, mesa com toalha branca, flores e copos d'água para o que se convencionou chamar de "fluidificação". Práticas, todas elas, não procedentes da codificação, constituindo-se em sistemas e modelos introduzidos pelo espiritismo brasileiro.

Os espíritas sempre dizem que são contra a santificação de seus vultos. Mas o filme e os depoimentos pessoais ali inseridos são pura demonstração de reverência idólatra. Seriam perfeitamente dispensáveis, pois foram ali colocados unicamente para fazer proselitismo. Apenas explicitam fanatismo, além de quebrar a linha estética do filme e o ritmo narrativo, até então harmônicos naquilo que seus diretores se propuseram a fazer.

Mesmo discordando de Bezerra em vários pontos, eu o admiro e respeito, especialmente por sua inegável bondade, pela fidelidade à sua concepção da doutrina espírita, pela coragem de haver assumido um posicionamento público que, àquela época, só lhe trazia problemas. Entretanto, acho que Bezerra fez mais mal do que bem à doutrina, em função do desvirtuamento conceitual a que a submeteu. No filme isso fica mais do que evidente na leitura feita por seus irmãos da carta que ele lhes escreveu, contestando-os quanto à sua exclusão do seio da família. Nela dá testemunho de próprio punho de sua fé em Deus Pai, Filho e Espírito Santo, em um Jesus divinizado, com missão de salvador dos homens. E pelos teores das mensagens mediúnicas que lhe são atribuídas ainda hoje continua com as mesmas crenças.

São conceitos que não constam de nenhum livro de Kardec, pois ele somente endossou o ensino moral de Jesus, desconsiderando a história canônica com seus milagres, os atributos de filiação divina e santidade absoluta.

Mesmo assim, é necessário contextualizar os posicionamentos de Bezerra. Seria demais, querer que alguém nascido no século XIX (29/08/1831) em pequena cidade do interior do Ceará, em família tradicional e católica, não tivesse atavismos e entendimentos próprios de um ambiente cristão, conforme a definição formal que é a de quem crê na Santíssima Trindade, na salvação através de Jesus, na graça do batismo para livrar-se do pecado original etc.

Afinal, aceitando o espiritismo roustainguista, Bezerra assimilou o que sua mente racional aprovou, abandonando apenas os teores mais absurdos da fé que antes professava. Sentiu-se, portanto, extremamente confortável com o neocatolicismo roustainguista. Mas, paradoxalmente, passou a aceitar as esquisitices fantasiosas de Roustaing. Deu força, portanto, à versão mística do espiritismo da qual foi o principal introdutor, sedimentando-a na FEB - e esta, nas entidades adesas -, implantando a feição religiosa neo-católica que até hoje domina o movimento espírita brasileiro e da qual resultam os fundamentalismos vigentes na maior parte de suas instituições.

Assim, minhas discordâncias de Roustaing e Bezerra não são apenas quanto às questões do corpo fluídico de Jesus e do criptógamo carnudo. Afinal, estes temas ficaram praticamente esquecidos, pelo desconhecimento da obra roustainguista. Minha ressalva é quanto ao teor místico e religioso deles oriundo, que impregnou todo o espiritismo pátrio. Neste sentido, há espíritas que são roustainguistas sem o saber: imaginam que a questão se resume nos pontos polêmicos acima mencionados, esquecendo-se de suas próprias atitudes, marcadamente religiosas. Não se dão conta de que o endeusamento de Jesus, as idéias salvacionistas, o mariolatrismo, a noção distorcida da lei de causa e efeito, o ufanismo pátrio, a pretensão orgulhosa de superioridade do ensinamento espírita, as interpretações católicas das dimensões espirituais, os posicionamentos anti-científicos que vigoram no movimento espírita derivam dos conceitos introduzidos por Roustaing e endossados por Bezerra.

Creio que seu erro foi - e o do espírita brasileiro em geral ainda é - a cristalização da doutrina espírita, tornando-a dogmática desde que transformada em religião. Ambos abandonaram os aspectos filosóficos e científicos defendidos por Kardec, que elegeu a MORALIDADE e não a RELIGIÃO como característica da doutrina, recomendando inclusive, que fosse progressiva e dinamicamente atualizada segundo parâmetros científicos.

Finalizando, acho que a película não fez jus nem ao que Bezerra teve de bom. Apesar dos esforços e das boas intenções, um desperdício de oportunidade e um desserviço à OBRA KARDEQUIANA, tão desfigurada por divulgadores que não a compreenderam.

Penso que o filme só vai agradar mesmo aos roustainguistas, conscientes ou inconscientes dessa condição.

sábado, 31 de maio de 2008

Um espiritismo ovino

O médium Medrado, fundador da Cidade da Luz, fez publicar um artigo no jornal A Tarde, de Salvador, BA, no dia 28 de maio, em que argumenta sobre as tantas lutas judiciais em que se mete, tal qual um cavaleiro andante em busca de aventuras e fantasias.

Não quero nessa mensagem entrar no mérito de seus embates pirotécnicos, mas sim comentar o eixo de sua argumentação. Seguem abaixo alguns trechos daquilo que ele considera "bom senso" (ave Descartes!):

"[...]
"Então, para que não pairem dúvidas, nem distorçam, guardo o respeito a você e explico humildemente:
"1 - Sou um pastor, e, como tal, você crendo ou não no que prego, gostando ou não do meu jeito, quero também pregar à minha comunidade minhas verdades, quero levar o que julgo certo a todos;
"[...]
"Agora me responda, ouvindo o bom-senso
(sic), a razão:
"1 - Não foi justo o meu pleito de pastor, na minha fé, na minha religião?
"2 - Não tenho o direito de buscar para os meus fiéis o que o seu pastor busca para você?
"3 - Não tenho o direito de reclamar, como pai que me sinto, do alimento espiritual para os meus filhos?
"Foi isto o que eu fiz.
"[...]"


Se você é espírita, não morra de rir. Contenha-se, por favor. Afinal, esse é o primeiro pastor espírita assumido! Quem se habilita a ser seu filho... ou ovelha?!

O ridículo é quase insuperável. Confesso que poucas vezes na minha caminhada espírita vi, ouvi ou li tamanha descaracterização das propostas espíritas. Ao reler Kardec nalguns artigos da sua Revista espírita ou em trechos de sua Viagem espírita em 1862, fico a pensar se sou tão toscamente obtuso a ponto de nada (absolutamente nada!) compreender daquilo que foi originalmente proposto.

Se você é espírita, imagine Kardec falando em ser pastor e ter fiéis seguidores, ou mesmo sentindo-se "pai" espiritual de seja lá quem for. Nada é mais disforme, mais incoerente e mais insólito do que essa patuscada religiosa, que certamente não encontra eco algum no bojo das propostas espíritas kardecistas.

É o sincrético movimento espírita religioso, que se imiscui no grande filão dum mercado religioso já tão bem explorado por pastores de diversas denominações. Mais uma, menos uma... nenhuma diferença.

Olha no que deu o espiritismo...

Confesso minha extrema dificuldade em assumir uma identidade espírita diante de exemplos tão eloquentemente desconexos e pouco elaborados.

sábado, 24 de maio de 2008

Indignado e envergonhado

Vergonha. É a única palavra que me vem em mente sobre este caso tão absurdo. "Isto é uma vergonha", diria o jornalista Boris Casoy. Sinto-me duplamente envergonhado: por ser baiano e por ser espírita (esse último adjetivo cada vez menos adequado...).

O médium Medrado, aquele que lutou na justiça por casamentos e sacerdócio, agora protagoniza outra infeliz batalha e recorre ao instrumento dos covardes: a censura.

O mais interessante é que Kardec rebateu aos seus críticos, foi censurado como no episódio dos seus livros queimados em Barcelona, mas jamais usou desse instrumento contra seus debatedores. A livre manifestação das idéias é valor inestimável e não pode ser conspurcado por um médium à la Dom Quixote que, ao invés de lutar simplesmente expondo suas idéias, mesmo que absurdas, prefere intimidar usando a falácia dos recursos jurídicos.

Não concordo em nada com as idéias do tal padre no seu livro, muito menos (ou talvez menos ainda) com as idéias desse estranho exemplar "espírita" que realiza casamentos, mas certamente reconheço seus direitos inalienáveis de dizer e publicar o que bem entenderem.

É uma pena, ou melhor, uma vergonha, que um exemplo desse naipe esteja associado ao nome espiritismo.

quinta-feira, 22 de maio de 2008

Vergonha espírita!


O médium José Medrado apronta mais uma das suas, envergonhando todo o movimento espírita baiano: entrou com ação cautelar na Justiça pedindo a censura (sim, creiam: a censura!) do livro do padre católico Jonas Abib, intitulado Sim, sim! Não, não! Reflexões de cura e libertação.

Diante do inusitado e vergonhoso episódio, cabe aos espíritas os mais sinceros pedidos de desculpas ao padre, que teve sua opinião censurada pela atuação do promotor Almiro Sena, o mesmo que quis mudar a história do Brasil apresentada na novela Sinhá Moça da Rede Globo.

Senhor Jonas Abib, em meu nome, como espírita, peço desculpas pelo devaneio persecutório dum estranho líder religioso, que se diz espírita, mas em nada se alinha às propostas de tolerância e compreensão apresentadas pelo espiritismo. Kardec sofreu perseguição intensa dos movimentos religiosos e filosóficos de sua época, e os espíritas aprenderam, então, o valoroso respeito à liberdade de opinião, mesmo que frontalmente contrárias às propostas espíritas.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

A hora e a vez do segmento padrão

Krishnamurti de Carvalho Dias (*)
Vila Velha, ES, Brasil

"...no seu sentido original atualizar sempre foi passar de potência a ato, isto é, tirar do virtual para o real, o que significa agir em lugar de apenas pensar."
Quando Rivail fez as instituições espíritas estas praticavam atos letivos, pedagógicos a saber:
· A S.P.E.E. Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, que era um espaço cultural;
· A "Revista espírita" que era "un journal d’estudes spirites"; e finalmente
· A livraria que editou os seus livros;
· Foi no Brasil, e somente aqui, que se fugiu a esse padrão laico autoral e se quis torcê-lo para uma fantasia religiosa, com instituições visivelmente místicas e piedosas.

EXÓRDIO

1 - A gente espírita contempla perplexa o quadro a que chegamos, em que não se pode mais usar para ela o clássico apelido de "a comunidade", porque o que existe é de fato uma diversidade e até uma adversidade entre os dois blocos em que se repartiu a coletividade, um com o que se pode chamar de "viés religiosista" do conjunto versus o outro que já é de um "viés" não religioso.

Também o apelido de "o movimento" pode ter perdido o seu sentido, já que a coletividade agita-se internamente em movimentos brownianos, mas não avança em termos de incluir-se na sociedade geral, onde é visivelmente uma excluída, porque incompreendida, tal a confusão que se apossou dessa sociedade geral quanto à agremiação de adeptos. Afinal não se sabe exatamente o que será esta, se a propalada "religião espírita" que pratica o prestigioso e popular "culto espírita", ou se não é.

Nem comunidade, porque dividida internamente em facções de fato inconciliáveis, nem movimento, porque paralisada no tempo e sem ocupar espaços novos na sociedade, essa coletividade que, ainda, em meio a todas essas vicissitudes, se confessa e se proclama "espírita", tenta, até aqui, em vão, se articular.

Nos confrontos ácidos, ásperos, repassados de incompreensões e até de má vontade, longe estamos daquele ideal luminoso de Leopoldo Machado...

"... somos companheiros, amigos, irmãos,
a nossa alegria é bem do evangelho,
sempre ombro a ombro, sempre lado a lado,
mesmo entre perigos, daremos as mãos
como bons amigos, como bons irmãos..."


Bezerra de Menezes advertiu, enfático:

"Solidários somos união, mas, separados uns dos outros, não passaremos de meros pontos de vista, buscando fora aquilo que já está em nossas mãos..."
O que é esse "aquilo" que já está em nossas mãos?

2 - É o penhor de nossa reconciliação, de nossa unificação, de nossa reconquista de unidade original, devolvendo-nos o perdido estado de comunidade e de movimento: a identificação do que temos efetivamente de comum e o ímpeto solidário que nos leva a objetivos realmente comuns de pleno espalhamento de nossa cultura na sociedade.

Os dois blocos desavindos têm, cada qual, um “eslogã”, um apelo, que é sua bandeira particular.

O partido religiosista obstina-se em que o espiritismo é tripartite, descrito por uma trilogia, de ciência, filosofia e religião. Já o partido não religioso (não o chamarei por enquanto de "laico" para evitar certa confusão semântica embutida nesse adjetivo) sustenta outro “eslogã” tripartite também, o de "ciência, filosofia e moral". Ambos são trinaristas, triplicistas, então, porque não há consenso? É porque, evidentemente, há uma discrepância, uma divergência no fim de cada trilogia: religião versus moral, isso impede a coincidência desse terceiro termo, logo, destrói a comunidade e estabelece a diversidade.

Todavia, a comunidade vive mesmo assim expressa naquele par ou dupla de conceitos iniciais da ciência e filosofia, este sim é um dado comum a ambos os empenhos. Não estão aí a comunidade e o consenso de que precisamos? Resta saber se ambos os lados estariam dispostos a abrir mão, (eu disse: ambos), dos respectivos terceiros termos, se o fizessem, restaria o binômio original, natural, puro, de ciência e filosofia, como uma aspiração comum presente desde já em ambos os pleitos.

Ciência e filosofia, por sinal, foi essa a tese autoral, o padrão kardequiano, o autor documentalmente jamais propôs que sua obra fosse alguma terceira outra coisa mais além dessas duas, o padrão autoral sempre foi binário, apenas bidigital portanto, jamais tripartite, nunca trinitário.

No padrão autoral o espiritismo é figura bidimensional, sem triplicação nenhuma. Esta adveio foi da incapacidade dos adeptos de resistirem a uma verdadeira armadilha cultural, um engrama coletivo remotíssimo adquirido desde a fase dos pitecos, quando o homem tangido não sei por quais condicionantes evolutivas, fixou-se no três mito-mágico, místico-sagrado, como o numeral perfeito, cristalizando aí importantes quantificações.

É o trimurti bramânico de Brama-Shiwa-Vixnu, é ou são as famosas "tríades bárdicas" do celtismo-druidismo (que Rivail estremecia, mas pôs de lado, talvez para fugir ao engrama fatídico trinário), é o triunvirato romano; são as troicas da religiosidade egípcia, as trilogias políticas da franco-maçonaria, finalmente a maior trilogia da história leiga, a famosa e incendiária "liberté, fraternité, egalité" da Grande Revolução.

É a fraude histórica da "santíssima trindade", do símbolo de Nicéia, passando pelos três poderes de Montesquieu, este que retomou o rascunho dos Estados Gerais.

Enfim Zé-povo quando quer enumerar, não consegue passar do "Fulano, Sicrano, Beltrano", "do assado, frito e cozido", do isto, do aquilo, e mais outro, até o limite triplo irremovível nas cabeças como na retranca e o ferrolho das três dimensões espaciais, que Euclides fechou e só agora as simetrias de calibre, nas físicas de gauge, conseguiram, fora das vistas da humanidade, deles se evadir, puxando para um espaço-tempo decadimensional novo, em lugar do antigo espaço euclidiano só tridimensional. Engrama é isso: a fixação em algo que sobreleva a razão[1].

A mais importante abertura, derrubando o férreo circulo trinitário desse engrama ancianíssimo, foi sem dúvida a contribuição genial de Leibniz, rasgando à civilização a linguagem bidigital, donde saíram os tititis binários da internet, a alacridade a dois bits dos satélites e sondas espaciais, o bip-bip dos computadores, o chilrear alegre da cibernética, da informática, robótica e da eletrônica.

Era o fim da Era trinitária-tríplice em termos de unidades de significação. E Rivail estava com Leibniz. Seu padrão autoral é binário puro, só dois bits, os da ciência e filosofia, nada mais. O espírito está ou encarnado, se residente na biosfera e pois membro da biodiversidade; ou então permanece desentranhado na erraticidade, como desencarnado. Ao mesmo tempo, operava a maior redução conceitual, ao matar a idéia de morte, vista esta como um não-ser extinguindo a vida, proclamando em lugar desse dualismo falso, o monismo de vida só, sempre vida, com mais vida após a vida, passada esta em diferentes espaçotempos alternativos, no mundo corporal e/ou no dos espíritos, no que bem se pode chamar de "vida" e contravida, como fases alternas em que se decompõem binariamente a "hipervida" geral dos espíritos, seu existir perene, ininterrupto, incessante, contrapostas entre si, ora de internação na biosfera e na biodiversidade ou então de erraticidade, mas sempre vida só, sem morte no meio ou no fim.

Nenhuma triplicidade aí, só dualismo, discurso binário, bidigital, esse o caráter puramente dual do espiritismo, que não tem sido contemplado quando exposto a indevidas triplicações, onde qualquer terceiro termo soa falso, inautêntico, como uma coisa postiça.

Rivail abandonou o engrama, ancestralíssimo, do três fatídico, abraçando o binário, o bidigital revolucionário leibniziano, talvez por sua formação germanófona, pois além de tudo, "mais parecia um alemão", sublinha sua melhor biografa e tradutora, Anne Blackwell, isso até fisicamente, que dirá mentalmente.

Sua frase em que proclamou a supremacia da razão sobre a fé (em “O Evangelho segundo espiritismo”) é toda de Leibniz que já a dissera antes com outra redação[2], Rivail apenas a repropôs, mutatis mutandi. Ao optar pelo modelo leibniziano, Rivail apontou o padrão de sua obra, que é o de um binômio, com o qual seguia os ventos racionais e então ainda muito futuros da modernidade apenas amanhecida, deixando as soturnas virações antigas de trimurtis, trindades, tríades e triplicidades mito-mágicas de antanho.

Ciência e filosofia perfazem cognição, a qual é cultura, no sentido de posse de erudição, dos refinos e picos de saber, de ilustração. Todavia, cultura, após o decesso de Rivail (isso já por volta de 1881, por aí) adquiriu um contra-sentido diferente, já passou a ser também qualquer conjunto de hábitos, de idiossincrasias, praxes ou mores que um povo, mesmo inculto, analfabeto, até selvagem e primitivo, sempre tem. As culturas ágrafas, não escritas, são as culturas desses primitivos, o que decerto não se confunde com a cultura naquele primeiro sentido que antes examinávamos, o sinônimo de ilustração, de posse de ciência e filosofia, arte, tecnologia, em graus elevados e desenvolvidos dos povos cultos, civilizados.

Se dissermos qualquer terceira coisa extra além daquele binômio rivailiano, se triplicarmos o padrão autoral no que quer que seja, estaremos complicando e criando dificuldades de compreensão.

Deolindo Amorim, para contrapor ao discurso religiosista da FEB, uma afirmação laica marcante de sua própria posição, fabricou a expressão de "cultura espirita" (no seu ICEB), estabelecendo o contraditório. Era "o culto espírita" de Chesnel versus a cultura espirita de Rivail, isto é, a cognição, marca inseparável da codificação. Mas já a agremiação, a coletividade dos adeptos (que também levam o mesmo nome que a codificação, de "o espiritismo") em seus naturais estos de admiração e vivenciamento do que qualquer um bem entendia como sendo essa "cultura espírita", já demonstrava bem o perigo de se fixar essa expressão de Deolindo como um dado absoluto.

Se havia uma "cultura espírita", então corria-se o risco de assumir como espiritismo, (ou seja como a cognição erudita espírita) o acervo de hábitos, isto é, de mores, o estoque moral portanto, dos adeptos, toda a espantosa babel que as pessoas, egressas das religiões, dos sincretismos, do materialismo, das formas esotéricas, vinham trazendo cá para dentro da coletividade, como sua bagagem natural, no atavismo, nas idiossincrasias dessa gente, que constituía sem dúvida a sua cultura pessoal, e se essa era a cultura "dos espíritas" então era essa "a cultura espírita como um todo" na visão dos antropólogos, sociólogos, da mídia, dos governos, então tome confusão entre o candomblé, a quimbanda, a umbanda, a santeria, o roustainguismo, o trincadismo, "el cordon", o afro-indigenismo dos recém chegados, tudo confundido com a codificação, numa confusão conceitual que não pode ser chamada lisamente mais de "a cultura espírita".

3 - É que há dois conceitos de cultura, como os há também de religião, e finalmente, também de espiritismo, moral, de laicismo. Essas palavras têm manifestamente, duplo (e até maior número de) sentido cada qual, não podem ser manejadas com desjeito, com descuidado, para descrever e designar a obra apenas científica e filosófica de Rivail, esta que não recepciona nenhuma triplicidade conceitual, não é descritível por nenhuma triplicidade conceitual, nenhuma triplicação.

Rivail nunca assumiu nada mais do que isso: os fatos, apenas os fatos, devidamente estudados, formaram a ciência espírita, da qual decorreu uma filosofia espiritualista, ponto final dessa gênese epistemológica. Tudo mais que daí por diante houvesse, ficou externo, exterior, a esse binômio, como parte das coisas que estão "do lado de fora" desse fechado âmbito interior do padrão autoral de só ciência e filosofia. Por isso a frase padrão kardequiana de definição de sua obra foi muito clara: "o espiritismo é uma ciência e uma filosofia, que têm conseqüências morais", isto é, que afetam os mores, as praxes, os hábitos, a cultura, pois, da sociedade onde transita. E o binômio autoral faz isso. Se não pensarmos assim, não entenderemos a obra de Rivail. O espiritismo só é a codificação, na definição-padrão autoral: ciência e filosofia, cognição codificada, isto é, passada de um estado original para outro, o que dá a Rivail o legítimo direito de ostentar o apelido de "o codificador", sem incidir, momento algum, na pecha de autor religioso de algum novo culto, tão pouco de legislador moralista.

Ele foi apenas o agente que tirou a cognição sobre as coisas do espírito, do estado primitivo de elucubrações soturnas, trazendo-a para o modo aberto, transparente, de saber racional. Onde o que se aprende incorpora-se à mente e passa a transformar os mores, os hábitos de pensar, dizer, fazer, mas todo mundo inventa, fantasia, que tal transformação moral seria só em termos últimos, dramáticos de sublimidade espiritual e santidade.

Qualquer aprendizado e cultura, no sentido crasso de cognição opera tal mudança. Para Rivail, "reconhece-se o verdadeiro espírita por sua transformação moral", porque o seu conjunto de hábitos, seus mores (mos, moris, em latim era "hábitos", aquilo que se faz vulgarmente), passa a refletir a admissão dos novos conhecimentos espiriticos, sem nenhuma mudança dramática de personalidade.

4 - O que se chamava de moral, não passa de um adjetivo, um sinônimo corriqueiro de habitual, cultural, psicossocial, usual, costumeiro, isso é indisputável. Foi só na tendência a complicar, de modo pedante e sob a influência do sombrio religiosismo, que o dado moral, ou seja, as constâncias de procedimento, se tornaram pasto do moralismo, do maniqueísmo, o macartismo, do fiscalismo, território de catões, comadres e candinhas, pudicões e cérberos patrulhadores da vida alheia.

A palavra moral hoje é um caso perdido de polissemia, tal como religião, cultura, laicismo e até "espiritismo" também.

Se dizemos "religião", estamos falando do culto ou do laço. Se ferimos moral, ou é o trio de adjetivos (moral, imoral, amoral) ou é o substantivo, é o código de feras disposições mandatórias, é o conjunto de regras aceitas por um grupo. Se dizemos "espiritismo" ou é a codificação ou então é a agremiação.

Para evitar confusões, Rivail avisadamente pediu que ninguém chamasse sua obra por esses apelidamentos.

5 - Também foi enfático, declaratório, rasgado, em dizer que não havia trazido (nem os espíritos com ele), "nenhuma moral nova", isto é, nenhum código moralista, próprio, seu, inédito, como um Zenão, um Epicuro, um Confúcio, mas tinha, sim, ido buscar a moral de outrem, preexistente, a do Cristo (não a decantada "moral cristã" que não é do Cristo e sim dos papados e concílios) e que essa moral crística é que perfumava a codificação, não como alguma terceira parte dela, porém, como um elemento daqueles admitidos dados adicionais, externos, as conseqüências morais que estão do lado de fora do âmbito formal da codificação.

Moral, adjetivamente, o espiritismo sempre é, porque não é malsão, deletério, logo não é imoral nem amoral. Esse é o significado adjetivo da palavra, descritiva ou indicativa da área onde se dão as conseqüências do ensino e aprendizado espírita, que é o território dos mores populares.

O espiritismo é cultura num sentido mas já não é mais no outro da mesma palavra. Cultura no sentido de erudição clássica, formal, isso ele é; já no de qualquer conjunto de hábitos de gente, com gostinhos, palpites, fantasias; substantivamente porem, já é a decantada "moral espírita" pois realmente isso ele não é, visto Rivail não ter produzido tal código.

Porque é um laço, não um culto, não se pode nem se deve chamá-lo de religião. Porque é moral, só adjetivamente, no sentido de influir nos mores, transformando-os, então não se segue que ele seja substantivamente uma moral, um código rigorista, a diferença é essa.

6 - Já quando se diz que ele é laico, com isso afirmamos que não é religioso, então fatalmente só é um caso de... laicismo, mas o laicismo politicamente é a separação entre igreja e estado. Já por outra, laicismo é a convivência normal entre fés e credos religiosos, sem prevalência de nenhum. Complica que laicismo tornou-se também uma dessas doutrinas de estado contra cultos religiosos como no México, na Espanha republicana, em Portugal pós-monarquia, na Rússia comunista, na França de 89, e até no Brasil republicano. Não é pois palavra prestável para definir nossa posição. Não deve, pois, ser usada.

7 - Se Kardec se exorna com o luminoso título de "codificador" isso é exatíssimo. Romanos tinham ou rolos ou códigos a certa altura, quando se passava de um para outro dos formatos, isso era o codificare, era a codificationem, obra do codificator, o escravo letrado, culto, que fazia essa transposição. Passar de rolo a código, é a alma do que se chama de codificação, por isso Rivail recebeu esse cognome. Quem faz essa proeza, é um codificador, sem que tenha de ser visto como legislador moralista, jurídico ou iluminado de algum culto recém-inventado. Morse fez um código, tirando sentido e dando um fim novo ao bip-bip do telégrafo elétrico, esse código é tecnológico, não moralista. O mesmo com Louis Braille, permitindo aos cegos "lerem" com a ponta do dedos. Watson e Crick são autores do código genético, outro que não é moralista em nada.

8 - Estamos todos usando palavras más pelos seus sentidos múltiplos, que quando moduladas, confundem e abrem chance para espertas manobras de interessados em impor seus pontos de vista pessoais. É o caso de "doutrina", que para muitos é perfeita para descrever o espiritismo. Só que não é. A obra de Rivail não é mais uma doutrina e sim uma entidade mais completa, é um continuum de ciência e filosofia. Mas doutrina virou nome de produtos ideológicos terríveis como o nazismo, o fascismo, o comunismo, o sadismo, o anarquismo, o terrorismo, o racismo, o sexismo, as piores distorções humanas.

Chamado de doutrina tão desenvoltamente pelos espíritas, que idéia faz a sociedade sobre a nossa cultura, quando a vê sentada no banco de réus da história ao lado de tão sombrios colegas? Não podemos mais continuar apelidando assim ao produto rivailiano.

9 - Quando Rivail tomou do termo "espiritismo" foi para tirá-lo da função inglória de nome de mera crença popular antiga em motores invisíveis e projetá-lo como a coisa nova cultural que ele ora havia produzido, a matéria dupla, binária de cognição, isso é codificar. Todavia quando essa cognição bate na sociedade, desperta nesta ecos, repercussões e o povo divide-se a respeito. Uma parte fecha com o novo ismo e sustenta-o, religionando-se numa agremiação laica no puro sentido filosófico da palavra. Outra parte extrapola, fecha com a religiosidade e o misticismo mas ao fazê-lo sai do sentido profundo original laico da codificação.

10 - Acontece que a codificação não tem passado, mas a agremiação sim. A codificação são só dados na maioria técnicos, já a agremiação são pessoas vivas, com gostinhos, humores, caprichos e radicalizações, pontos de vista opiniáticos, emoções, e pesados atavismos imemoriais adquiridos nos trâmites evolutivos.

Agremiação então é um feixe de segmentos de gosto, opinião preferência, que se formam livremente. É um tecido demográfico, conforme a vida pregressa desses membros vivos, que são gente, pessoas.

11 - Enquanto vivermos chamando por um nome só e mesmo a coisas diferentes e até contraditórias, não sairemos do impasse da perda de consenso. Temos de redefinir nossa linguagem.

A agremiação deveria ser a comunidade, porém não é. É a diversidade, pelos seus desencontros e desacertos em manejar linguagens contraditórias. Deveria ser o movimento, o que também não é, pois não vai para parte alguma, move-se só dentro e de si mesma.

12 - Abandonar o passado, eis a palavra de ordem, só por isso, o pomo de discórdias das trilogias, das palavras de duplo sentido ficará desativado.

13 - É que as pessoas ou estão ainda movendo-se no clima pesado dos dependenciamentos religiosos, isto é, desfrutam de sua liberdade "de religião" (o direito de cada qual ter uma, a sua, a que escolheu e que satisfaz, por enquanto ao seu ego) ou então já se libertou de tal dependenciamento e desfruta já do oposto, da liberdade "da religião" tendo se emancipado desse dependenciamento.

14 - Mas uma coisa é pensar em conformidade, em consonância com o padrão autoral da codificação e bem outra é inventar, fantasiar e discrepar dele. Rivail previa isso e pediu exatamente esse respeito mútuo, onde "ninguém deve constranger a consciência de ninguém". Se um se acha o certo, todos virão a "pensar como ele", mas se ele estiver errado, "acabará por pensar como os demais". Esse é o padrão kardequiano.

Dentro da agremiação reina a divisão em segmentos, uns assim e outros assado, ao sabor das idiossincrasias individuais. Mas dentro do espiritismo enquanto codificação, no significado legítimo, original, autoral, está o padrão. Por vezes a agremiação abandona o padrão, esquece a codificação e projeta-se em largos desvios para fora desta. Mas há um segmento que não faz isso, que busca o padrão e observa-o, mantendo-se dentro de seus limites, sem os extrapolar. É o que chamo de "o segmento padrão da agremiação", porque conserva-se nos limites da codificação.

15 - O importante é que todos no fundo pensamos o espiritismo do mesmo modo padrão desejado por seu autor, pois eventuais acréscimos, adições, não passam de conseqüências morais, isto é, o fruto de traços externos, exteriores ao âmbito da codificação, encontráveis apenas na agremiação e em seus mores.

Apelo serenamente para o futuro: o programa agora é racionalizar, entender que o padrão autoral rivailiano é de fato apenas dual, não comportando nenhuma triplicação, posto que, já para fins de normativa para a agremiação, Rivail tivesse sido é tríplice na sua luminosa trilogia de "trabalho, solidariedade e tolerância", mas essas são duas coisas diferentes, que podem conviver e interagir, sem conflitar.

De coração desejo isso: que nos entendamos. Que nos procuremos, solidários, solícitos uns com os outros, embora as por vezes abissais diferenças que milênios de religiosismo e religiosidade, para uns, mas já apenas algumas décadas, só, até, de desconfessionalização e dessacralização para outros, terminaram por aprofundar, traçando um Canyon, uma calha, entre os dois contingentes.

PALAVRAS FINAIS

Total, absoluta é minha solidariedade com o pólo gaúcho e o santista do segmento padrão, bem como a minha identificação com luminosa CEPA, cuja volta ao Brasil tive a felicidade de presenciar. Ofereço essas palavras como uma reflexão muito cordial e fraterna ao consenso dos meus amados confrades.

NOTAS

[1] Quem define engrama é Henri Laborit, in "Deus não joga dados"; Editora Trajetória Cultural; 1º Edição - página nº: 66, Engrama: do grego en (em) e grama (caráter, traço) significa, em psicologia, "marca deixada no cérebro por um acontecimento do passado individual ".

[2] A citação da frase de Leibniz sobre "Fé raciocinada", que Rivail com outra redação reproduziu, está no livro "Bases científicas do espiritismo" - Epes Sargent, edição da FEB; Página nº.175:

"Nenhuma fé, diz Leibniz, pode ser real ou inteligível, se não tiver a sua base na razão humana. A religião divorciada da razão do homem não pode firmar-se e sustentar-se."
(*) Bancário aposentado, expositor, articulista, autor dos projetos CINESP, TEVESP e DATESP, com utilização das mídias, cinema, Super 8, TV VHS e os primeiros Home Computers; autor de diversos livros espíritas, entre os quais “O laço e o culto”, “O nascimento da morte”, “Toques de obsessão”, “A descoberta do espírito”, “Roustaing” e “2 Ensaios”. Desencarnou em Vitória-ES, no dia 02.01.2001, semanas após sua participação no Congresso da CEPA.

XX Congresso Espírita Pan-Americano

Texto extraído da CEPA - Confederação Espírita Pan-Americanahttp://www.cepanet.org/

Porto Rico os espera!

Unam-se a nós no XX Congresso da Confederação Espírita Pan-Americana a realizar-se no período de 4 a 8 de junho de 2008, em Porto Rico. A Comissão Organizadora tem tudo preparado para este magno evento e espera com alegria sua participação. Centenas de espíritas da América, Europa, Caribe e Oceania se encontrarão para compartilhar experiências, conhecimentos e calor humano, sob o sol e a brisa quente da bela ilha. A seguir lhes damos as informações mais relevantes da atividade:

Local:
As reuniões serão no Hotel Holiday Inn de San Juan, Porto Rico. Necessitarão quatro noites para desfrutar plenamente do evento. O custo da diária é U$130 (dólares americanos) para duas pessoas (mais impostos). Admite-se duas pessoas adicionais no mesmo quarto, com acréscimo de U$25 na diária por pessoa (mais impostos). Para fazer reservas pode ligar para o telefone (787) 253-9000 ou via internet no endereço
www.holidayinn.com.

Custo da inscrição:
Será oferecido coquetel e espetáculo artístico de voas vindas na cerimônia de abertura, todos os desjejuns, almoços e dois coffee-breaks de quinta a sábado, todos os materiais (pasta, papel, caneta etc.), dezenas de conferências com conferencistas internacionais e um jantar dançante na noite de sábado, pelo valor de U$200 (dólares americanos) por pessoa.

Fórum de Temas Livres – todos podem participar:
Como de praxe nos Congressos da CEPA, em Porto Rico também serão abertos espaços inteiramente livres à disposição de espíritas de qualquer parte do mundo. Um grupo de trabalho foi designado pelo Conselho Executivo para analisar previamente os pedidos de apresentação de temas livres. O grupo será coordenado por Juan Albino (Porto Rico) e integrado por Gustavo Molfino (Argentina), Maurice Herbert Jones (Brasil), Raúl Drubich (Argentina) e Ademar Arthur Chioro dos Reis (Brasil). Leia e/ou copie o Regulamento do Fórum de Temas Livres diretamente desta página que encontra-se juntamente com os livros publicados.

Para mais informações, acesse a página
http://www.conocenos.org/CEPA2008/

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

Reunião de desobsessão

uma abordagem kardecista

1 INTRODUÇÃO

Há uma recomendação difundida no movimento espírita brasileiro para que não se permita a presença de assistidos em reuniões de desobsessão realizadas nas casas espíritas. E o que se observa é que essa sugestão é, amiúde, fundamentada nalgumas obras psicografadas, principalmente em livros do espírito André Luiz, através das mediunidades de Francisco Xavier e de Waldo Vieira, e nalgumas psicografias do médium Divaldo Franco. A própria Federação Espírita Brasileira (FEB), em seus textos e manuais, também recomenda essa diretriz para tais reuniões.

Alguns exemplos dessa recomendação são também encontrados em livros como os do Projeto Manoel Philomeno de Miranda, que afirma, numa dessas obras, ser a privacidade –não apenas entendida como o caráter não público dos encontros mediúnicos, mas de qualquer presença estranha ao corpo de trabalhadores da casa– uma “condição normativa” e “princípio norteador” (Pugliese e outros, 2001, p.95), pois tais reuniões “não têm platéia, nem doentes interessados em curar-se, nem curiosos” (p.96). Num outro livro desse mesmo projeto, insiste-se: “Não há necessidade de franquear as reuniões aos apelantes do socorro desobsessivo” (Projeto..., 2000, p.140).

Entretanto, à revelia da disseminação dessa orientação prática às reuniões de desobsessão, a leitura cuidadosa das obras kardecistas aponta para um caminho oposto ao indicado pelo movimento espírita brasileiro. Entende-se que a presença do obsidiado não lhe traz inconvenientes e nem à reunião em questão, ao contrário, ela é benéfica ao seu melhoramento e deve ser incentivada pelas casas espíritas que buscam fundamentar suas práticas nos ensinamentos de Kardec. O que não invalida, e isso deve estar desde já bem explícito, o trabalho de assistência à distância, também citado nos textos e obras de Kardec como importante instrumento de auxílio.

Justifica-se esse estudo pela tentativa de esclarecer aqueles que, porventura, fazem suas reuniões com a presença de assistidos e sentem-se constrangidos diante dessa diretriz, como se descobrissem “erros” nas suas práticas mediúnicas, apesar do estudo contínuo e aprofundado e do bem que conseguem levar a tantas pessoas que procuram os recursos da desobsessão oferecidos em suas casas espíritas.

Para embasar a opinião sobre o tema, utiliza-se, sem parcimônia, a obra kardecista, que traz em vários pontos exemplos e discussões sobre a teoria e a prática das obsessões e desobsessões. Há referências óbvias em O livro dos espíritos, principalmente no capítulo 9 da parte 2, em O livro dos médiuns, espalhadas aqui e acolá, mas principalmente no capítulo 23 da parte 2, em A gênese, principalmente nos capítulos 14 e 15, além de inúmeros artigos espalhados pelos 12 anos da Revista espírita, editada por Kardec. Utiliza-se também, para servir de guia e modelo, das descrições dos Evangelhos que relatam as atividades de cura de Jesus durante sua experiência na Terra.

2 ARGUMENTOS DE INTERDIÇÃO

Primeiramente, cabe rever alguns dos argumentos mais utilizados para defender a ausência dos assistidos nas reuniões de desobsessão. Classificam-se em três principais: as opiniões dalguns espíritos sobre o assunto, principalmente aqueles que se utilizam de médiuns renomados; a posição da FEB, defendida através dum opúsculo intitulado Orientação ao centro espírita; e, por último, algumas citações de obras kardecistas, utilizadas descontextualizadamente.

Dos três argumentos, o mais comumente usado pelos defensores da interdição são as opiniões de espíritos sobre tal procedimento, trazidas através dalgumas obras psicografadas, todas contrárias à presença dos assistidos nas reuniões de atendimento mediúnico. Uma das obras mais citadas é a Desobsessão, ditada pelo espírito André Luiz aos médiuns Francisco Xavier e Waldo Vieira, que se propõe a ser uma orientação “à constituição e sustentação dos grupos espíritas devotados à obra libertadora e curativa da desobsessão” (Xavier, Vieira, 2004, p.18). Nessa obra, que chega a tratar da organização física do espaço utilizado pela reunião, indicando até onde devem situar-se cadeiras e bancos ou o que devem comer ou não os seus partícipes, há a orientação clara do impedimento do acesso à reunião dos que a ela chegam necessitados de auxílio, estando a esses reservados os procedimentos inicias como orientação fraterna e passes, impedindo-se a entrada posterior nas tarefas propriamente mediúnicas (p.95). Somente em casos excepcionais, de gravidade confirmada, é que o autor considera a possibilidade de acolhimento do assistido no interior da reunião como “assistência precisa” à sua enfermidade (p.96).

Já na obra Conduta espírita –psicografada pelo médium Waldo Vieira–, André Luiz é direto na sua afirmação: “abster-se da realização de sessões públicas para assistência a desencarnados sofredores” (Vieira, 1986, p.90). Tal assertiva é muito usada em textos e artigos correntes para fundamentar o impedimento da presença do obsidiado nas reuniões. Entretanto, aqui se tem um grave problema de compreensão: o que se argumenta é a participação do atendido no transcorrer da própria reunião, jamais uma reunião que seja aberta ao público. E pelas citações das obras referidas do autor espiritual, o que ele claramente coloca é a interdição da publicidade da reunião, e não a interdição absoluta da presença do atendido em seus procedimentos, apesar das ressalvas que faz para tal presença.

E é interessante comentar que vários autores, tal como acima se vê, referem-se à interdição da publicidade da reunião, com o quê aqui se concorda, sem entretanto tratar especificamente da presença de obsidiados, como se lê em Obsessão/desobsessão, de Suely Schubert, ao sugerir que trabalhos mediúnicos “jamais devem ser abertos ao público” (1985, p.130); também em Mediunidade, de Richard Simonetti: “as reuniões mediúnicas devem ser privativas” (2003, p.59); ou ainda em Mediunidade, de Edgard Armond: “A assistência deve ser afastada dos ambientes de trabalho” (1999, p.203). É importante insistir em destacar que o que se propõe não é uma reunião aberta ao público, mas uma reunião de caráter estritamente privado, com a presença de assistidos, jamais espectadores.

São também usados como argumentos contrários à presença do assistido nas reuniões de desobsessão algumas obras do médium Divaldo Franco. Por exemplo, no livro do espírito João Cleofas, Suave luz nas sombras, o autor espiritual enumera alguns requisitos para a boa consecução de uma reunião, a saber: a afinidade entre participantes; a lealdade de propósitos; o comportamento no bem; a sinceridade entre os membros; o desinteresse pela frivolidade; e a vigilância na atividade (Franco, 1994, p.108-109). Opinar, como se lê em alguns artigos constantes em periódicos espíritas, que esses requisitos seriam incompatíveis com a presença do assistido é ilação desprovida de fundamento prático e racional, pois o que trata o autor espiritual é quanto à qualidade das reuniões mediúnicas, e não sobre a presença ou não de assistidos, que, como se verá, em nada desqualifica uma reunião.

Outro exemplo é a opinião do espírito Vianna de Carvalho, retirada do livro Atualidade do pensamento espírita, psicografado também pelo médium Divaldo Franco, que assevera: “Incontestavelmente, para que se realize o tratamento das obsessões, não se torna condição essencial a presença do paciente. Essa deve ser evitada, em razão do seu próprio estado de desequilíbrio psíquico e emocional” (Franco, 1988, p.172). Aqui o que se lê é uma argumentação comum: a de que a presença do enfermo poderia causar ainda mais problemas a ele devido ao seu estado de fragilidade psíquica e emocional. Isso não é real, pois os benefícios resultantes de tal prática são excepcionalmente maiores do que aqueles sem a sua presença. Seria como questionar se o tratamento médico se faz melhor sem a presença do paciente ou com a sua presença, mesmo que ele se sinta, por vezes, constrangido com alguns aspectos do tratamento.

Já o espírito Bezerra de Menezes, na obra Nas fronteiras da loucura, assinada pelo espírito Manoel Philomeno de Miranda e ditada ao médium Divaldo Franco, opina “que a presença dos que se candidatam aos benefícios não é indispensável”, e, de forma ainda mais veemente, insiste: “é o despreparo de quem se arroga as condições de dirigente de sessões que responde pela incompetência” (Franco, 1982, p.120), falando daqueles dirigentes que levam seus assistidos às reuniões de desobsessão.

É certo que esses espíritos acima mencionados têm uma credibilidade acima de qualquer questionamento, mas não invalida o fato de serem espíritos imperfeitos como todos nós, que trazem suas opiniões e idéias mitigadas pelas experiências individuais, e limitadas ao seu nível de conhecimento e evolução espiritual. Portanto podem, e devem, ser tratados como pessoas, iguais a todos, com seus preconceitos e imperfeições, apenas despojados de seu invólucro carnal. Não é porque emitiram suas opiniões que se deve, a partir de então, segui-las, como se fossem revelações de novas verdades plenas, transcendentais. Justo por considerá-los como todos os espíritos envolvidos de forma direta com o labor terreno, não se deve vê-los como mentores, nem os adjetivar de veneráveis, superiores ou outros qualificativos idólatras, como sói acontecer no místico movimento espírita brasileiro. O respeito por eles é demonstrado através da análise rigorosa de seus conteúdos, lição inesquecível dos espíritos que participaram das obras kardecistas. Posto isso, cabe agora comparar suas opiniões com o que se encontra nos textos básicos do espiritismo, e percebe-se, então, não haver fundamento nessa restrição prática da atividade mediúnica, o que ficará explicitado mais adiante nesse texto.

O segundo argumento utilizado para justificar a opinião contrária à presença dos obsidiados nas sessões de atendimento mediúnico é uma recomendação da Federação Espírita Brasileira (FEB), aprovada pelo Conselho Federativo Nacional, firmada através de obra já citada, que se propõe a normalizar o funcionamento das casas espíritas, conforme o texto original. Nessa obra, a FEB argumenta a participação “de muitos estudiosos e dedicados obreiros” (FEB, 1985, p.11) para transformar suas opiniões em “princípios e normas básicas” (FEB, 1985, p.11), interpretando as orientações dadas pelo espírito André Luiz, na obra Desobsessão, na qual afirma a necessidade desse tipo de reunião: “Com base nessa afirmativa do espírito André Luiz, no intróito da obra Desobsessão, [...] e nas instruções dadas por ele neste livro para a realização das reuniões privativas (sem público) destinadas à desobsessão, elas deverão ser assim processadas” (FEB, 1985, p.34)[1], e aí se seguem as normas estabelecidas, definindo etapas e informando até mesmo os minutos a serem gastos em cada uma delas.

Acredita-se dever ser avaliada por todos os espíritas a criação de “princípios e normas básicas” a partir da opinião dum único espírito, e ainda mais, se cabe ao espírito essa tarefa ou aos encarnados. E mais grave, se se é possível falar em normalização dentro do meio espírita, mesmo que se queira argumentar a unificação. Outra avaliação que se faz quanto a essa argumentação é o esquecimento que a FEB, e todas as federações e uniões estaduais e municipais, são um conjunto de homens e mulheres envolvidos com idéias e propostas bem definidas, e que, portanto, nunca serão a representação plena de todo o movimento espírita, espalhado numa plêiade incontável de casas espíritas pelo Brasil. Por conta dessa reunião de pessoas em torno da FEB, é que se pode compreender algumas opiniões por ela emitidas, como as do Reformador, seu órgão de divulgação doutrinária, em julho de 1953, que afirma que “todo aquele que crê nas manifestações dos espíritos é espírita; ora, o umbandista nelas crê, logo o umbandista é espírita”, e vai além dizendo que “os que aceitam o fenômeno espírita como manifestação de ‘Satanás’, ou como ocasionado somente por forças desconhecidas, esses não são espíritas; mas aqueles que o têm como produzidos por espíritos, esses devem ser considerados como adeptos do espiritismo, isto é, espiritistas, admitam ou não a reencarnação e pratiquem ou não rituais que nós não adotamos” (FEB, 1953). É fato, e não se poderia esquecer, que a FEB se retratou no próprio Reformador de setembro de 1977, através de um editorial afirmando que a “Doutrina espírita é o conjunto de princípios básicos, codificados por Allan Kardec, que constituem o espiritismo. Estes princípios estão contidos nas obras fundamentais, que são: O livro dos espíritos, O livro dos médiuns, O evangelho segundo o espiritismo, O céu e o inferno e A gênese” (FEB, 1977). Essas citações são apenas para que não se esqueça os limites de atuação da FEB enquanto um dos órgãos de aglutinação do movimento espírita, mas nunca a representante do espiritismo, pois sempre estará sujeita às opiniões de pessoas da sua direção, e que podem ir de encontro aos princípios fundamentais do espiritismo, como a defesa longa e quase ingênua das obras de Roustaing, que se fazem constar inclusive em seus estatutos.

O terceiro, e último, dos principais argumentos trazidos pelos textos e artigos que buscam defender a idéia da interdição é mais profundo e requer uma análise mais acurada. Trata-se de citações de obras kardecistas com o propósito de fundamentar a recomendação da ausência do assistido nas reuniões mediúnicas. Se essa foi uma recomendação explícita de Kardec em suas obras, não há porque não acolher tal recomendação. Os fragmentos citados são geralmente os seguintes: 1) em O livro dos médiuns, no capítulo 29 da parte 2, itens 331 e 332, capítulo que trata das reuniões e sociedades espíritas (Kardec, 1996, p.427-428). Nesses fragmentos, Kardec versa sobre as condições ideais para que se tenha uma boa reunião espírita, falando da necessária homogeneidade de pensamentos e da dificuldade de encontrá-la em reuniões muito numerosas; e 2) na Revista espírita, de fevereiro de 1866, que descreve os procedimentos do Sr. Dombre em alguns processos de desobsessão acontecidos em Marmande, com alguns comentários de Kardec, em que afirma os benefícios das curas operadas à distância (Kardec, 1993c, p.38-43).

3 A EXPERIÊNCIA KARDECISTA

Inicialmente, devem-se contextualizar as palavras de Kardec nesses trechos citados de O livro dos médiuns. A Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, como se lê no seu regulamento, “tem por objeto o estudo de todos os fenômenos relativos às manifestações espíritas e suas aplicações às ciências morais, físicas, históricas e psicológicas” (Kardec, 1996, p.445), e Kardec ainda reafirma em artigo da Revista espírita: “Com este objetivo, recolhemos os fatos, examinamo-los, escrutamo-los naquilo que têm de mais íntimo, nós o comentamos, discutimo-los friamente, sem entusiasmo, e foi assim que chegamos a descobrir o admirável encadeamento em todas as partes dessa vasta ciência que toca os mais graves interesses da humanidade. Tal foi, até o presente, senhores, o objeto de nossos trabalhos, objeto perfeitamente caracterizado pelo simples título de Sociedade de Estudos Espíritas que adotamos” (Kardec, 2001, p.132). Portanto, quando fala no necessário controle de pessoas estranhas às reuniões, Kardec tem toda a razão, pois seria inconveniente a presença de estranhos que viessem às reuniões mediúnicas de estudo com o firme propósito de ver fraude e charlatanismo, ou que simplesmente buscassem seu convencimento das realidades espirituais, pois no mesmo artigo diz ainda: “as nossas sessões não são sessões de demonstração, sua publicidade não alcançaria, pois, o objetivo, e teria graves inconvenientes; com um público sem seleção, trazendo mais curiosidade do que desejo verdadeiro de se instruir, e ainda mais desejoso de criticar e escarnecer, seria impossível ter o recolhimento indispensável para toda manifestação séria” (p.131). Colocada essa questão com clareza, compreendem-se bem suas afirmações contidas no capítulo 29 de O livro dos médiuns, utilizadas, acredita-se, inadequadamente como refutação kardecista à presença de assistidos às reuniões de desobsessão. Kardec não realizou reuniões de desobsessão, a não ser de forma esporádica, e sob alguma solicitação, como se vêem exemplos espalhados por toda a Revista espírita.

Se não eram os argumentos kardecistas contidos em O livro dos médiuns referentes a reuniões de desobsessão, fica, dessarte, resolvida a primeira questão acerca das citações de Kardec, resta tratar da citação da Revista espírita que descreve os procedimentos do grupo a qual pertencia o Sr. Dombre em processos de desobsessão em Marmande. A passagem citada, contida na Revista espírita de fevereiro de 1866, não é a única que relata os fatos ocorridos em Marmande, há ainda outras cinco citações, respectivamente em fevereiro, março e junho de 1864, janeiro de 1865 e em junho de 1867. Todas essas descrições do Sr. Dombre sobre os fatos ocorridos em Marmande e circunvizinhança trazem os procedimentos de seu grupo no acompanhamento e cura de processos obsessivos. Um dos casos mais interessantes é, sem dúvida, o da jovem Thérèse B., que tinha crises regulares, todas as tardes, havia mais de oito meses, narrado nos textos de 1864. Ao entrar em contato com o guia espiritual do médium, Sr. L., que acompanhara o Sr. Dombre, foram instados a evocar todas as noites o espírito obsessor e a moralizá-lo, chamando-o pelo nome de Jules. Do dia 11 de janeiro, dia da primeira reunião, ao dia 18, os procedimentos foram feitos regularmente na casa da jovem vitimada pela grave obsessão, com as presenças de parentes e da própria menina. É no dia 16 de janeiro que Jules, o espírito obsessor, vira-se para a jovem e diz: “Terna criança (se dirige à sua vítima presente à sessão), tu que escolhi por minha presa, como o abutre a doce pomba, ora por mim, e que o nome de condenado se apague de tua memória. Recebi o batismo de amor das mãos do anjo do Senhor, e hoje visto a roupa da inocência. Pobre criança, desejo que tuas preces dirigidas por mim ao Senhor me livrem logo do remorso que vai-me seguir como uma expiação justamente merecida” (Kardec, 1993a, p.176). Ao final do relato do Sr. Dombre, Kardec tece alguns comentários: “Devemos um justo tributo de elogio aos nossos irmãos de Marmande, pelo tato, a prudência e o devotamento esclarecido dos quais deram prova nessa circunstância. Por este brilhante sucesso, Deus recompensou sua fé, sua perseverança e seu desinteresse moral, porque nisso não procuraram nenhuma satisfação de amor-próprio; provavelmente, não teria ali ocorrido o mesmo se o orgulho tivesse deslustrado a sua boa ação” (p.178). Os textos falam por si, não seriam necessários comentários adicionais, mas por conta da evidência, ressalta-se o procedimento do Sr. Dombre nesse caso, que mantém a presença da menina (de apenas treze anos!) durante a evocação do espírito que a atormenta; e, mais importante, os comentários gravemente elogiosos de Kardec aos procedimentos corretos do grupo de Marmande, refutando qualquer hipótese de fundamentar a ausência do assistido nas reuniões de desobsessão através de textos kardecistas.

Já no texto de janeiro de 1865, num novo relato de cura de obsessão feita pelo círculo espírita de Marmande, vê-se outra jovem, também de treze anos, Valentine Laurent, ter crises convulsivas que se renovavam várias vezes por dia. Após o uso de recursos vários, médicos e párocos, o grupo resolveu evocar seus guias espirituais e receberam a recomendação de evocar o espírito obsessor, nomeando-o Germaine. Convidando o pai da jovem, realizaram uma primeira sessão em 16 de setembro de 1864, com a finalidade de iniciar o trabalho de moralização de Germaine e de mostrar ao pai da vítima a verdadeira razão do problema de sua filha. A partir do dia 17 de setembro, o Sr. Dombre freqüentou a casa da família diariamente para testemunhar as crises e conhecer melhor o problema. No dia 21 de setembro, convidou pai e filha, a menina Valentine, para estarem presentes à reunião (Kardec, 1993b, p.10), e, lá, o grupo recebeu de seus guias uma mensagem a ser passada ao espírito: “Germaine, sois nossa irmã; esta jovem é também nossa irmã e a vossa. Se outrora alguma ação funesta vos ligou, e fez pesar sobre vós duas a justiça divina, não podeis dobrar o Juiz supremo. [...] Nesta família onde provocais a maldição, não será falado de vós senão o bem; haverá ali reconhecimento; essa criança pedirá também por vós, e se o ódio vos desuniu, o amor um dia vos reunirá” (p.10-11). Continua mais adiante o Sr. Dombre: “O dia 23 passou sem crise, como o da véspera. À noite a jovem vai com seu pai à sessão, para ouvir Germaine por quem ela já levava muito interesse” (p.16). E ainda no mesmo texto, após o processo de moralização de Germaine já ter resultados, lê-se o diálogo entre a menina e o espírito: “‘Dizei-me todos, tu sobretudo, pobre jovem, que me perdoais. Tenho necessidade de ouvir esta palavra sair de teu coração. Dai-me, se vos apraz, essa consolação’. A jovem Valentine lhe disse: ‘Sim, Germaine, eu vos perdôo; muito mais, vos amo!’” (p.17). Aqui, mais uma vez, os textos citados são límpidos, não restando qualquer argumentação contrária quanto ao fato da presença da jovem nas reuniões, e mais, participando inclusive dos diálogos com o espírito obsessor.

Só os fatos relatados nos casos de Marmande já seriam bastante suficientes para rechaçar qualquer argumentação contrária à presença dos assistidos nas reuniões de desobsessão. Todavia, não se limitará a eles, para não haver qualquer possibilidade de dúvidas sobre esse ponto. Visita-se agora um caso relatado pelo Sr. Delanne, no número de maio de 1865, no qual conta: “Numa outra sessão, fez-se a evocação do espírito que obsidiava, há dez anos, um operário chamado Joseph, agora em vias de cura. Jamais fiquei tão penosamente emocionado quanto em presença das dores do paciente no momento da evocação; calmo de início, foi tomado de repente de sobressaltos, de espasmos e de tremores nervosos; assim tomado por seu inimigo invisível e se agitou em convulsões terríveis; o peito se enche, sufoca, depois, retomando sua respiração, se contorce como uma serpente, rola na terra, se levanta de um pulo, se bate na cabeça. Não pronunciava senão palavras entrecortadas, sobretudo a palavra: Não! Não! O médium, que é uma senhora, estava em prece; ela tomou a pena, e eis que o invisível deixando sua presa por um instante, se apoderou de sua mão, e o teria assassinado se o deixasse fazê-lo” (Kardec, 1993b, p.143). Aqui Delanne relata curas através de seu grupo espírita, com a presença do assistido.

Ainda outro caso, relatado no número de junho de 1865, de uma cura realizada pelo grupo de espíritas de Barcelona, na Espanha, informa que a Sra. Rose N., atingida muitos anos “por ataques espasmódicos que se repetiam muito freqüentemente e com violência” (Kardec, 1993b, p.173), recorreu a vários recursos médicos e religiosos, sem qualquer resultado. Em julho de 1864 o grupo teve notícias do fato e se propôs a auxiliar a pobre senhora, afirmando o relato: “Aceitamos com zelo essa ocasião de fazer uma boa obra; reunimos vários adeptos sinceros, e fizemos vir a doente. Alguns minutos bastaram para reconhecer a causa da doença de Rose; era, com efeito, uma obsessão das mais terríveis. Tivemos muita dificuldade em fazer o obsessor vir ao nosso chamado. Ele foi muito violento, nos respondeu algumas palavras sem nexo, e logo se lançou com uma fúria sobre sua vítima, à qual deu uma crise violenta que foi, no entanto, logo acalmada pelo magnetizador” (p.174). O relato afirma que depois de algumas reuniões mediúnicas de moralização do espírito, sempre com a presença da vítima, essa estava completamente curada. Após o caso exposto, Kardec faz algumas considerações e afirma: “Os fatos de curas como este, como os de Marmande e outros não menos meritórios, sem dúvida, são um encorajamento; são também excelentes lições práticas que mostram a quais resultados se podem chegar pela fé, pela perseverança, e uma sábia e inteligente direção” (p.177). Aqui cabem alguns comentários adicionais, além de Kardec elogiar peremptoriamente o trabalho realizado pelo grupo de Barcelona. Enquanto o espírito Bezerra de Menezes, segundo citações já comentadas, chama os dirigentes de reuniões de desobsessão, que contam com a presença dos assistidos, de incompetentes e despreparados, Kardec os chama de sábios e inteligentes.

Se ainda restar um mínimo de dúvida sobre esse ponto, cita-se ainda o caso relatado na Revista espírita de junho de 1867, no artigo Nova sociedade espírita de Bordeaux, no qual o seu presidente, Sr. Peyranne, descreve as atividades desse grupo espírita no seu relatório anual, e dentre essas atividades fala da desobsessão: “Há de resto, em Bordeaux, muitos casos de obsessão, e uma sessão por semana especialmente consagrada à evocação e à moralização dos obsessores está longe de ser suficiente, uma vez que o médium curador, acompanhado de um médium escrevente, de um evocador e, freqüentemente, de certos de nossos irmãos, vai ao domicílio dos doentes, a fim de treinar os obsessores e ali virem mais facilmente, lado a lado” (Kardec, 1993d, p.178). Após esse e outros relatos, Kardec comenta: “Não podemos senão aplaudir o programa da Sociedade de Bordeaux e felicitá-la por seu devotamento e a inteligente direção de seus trabalhos. [...] A maneira pela qual ela procede para o tratamento das obsessões é ao mesmo tempo notável e instrutiva, e melhor prova de que essa maneira é boa, é de que ela triunfa” (p.181). Aqui se vê Kardec, mais uma vez, elogiando a direção da casa pela forma como conduz seus trabalhos, e sobre a reunião de desobsessão, especificamente, é contundente, adjetivando-a de “notável e instrutiva”.

Como já dito no início desse estudo, e demonstrado pelas citações da Revista espírita, Kardec dá preferência à presença dos assistidos nas reuniões de acompanhamento mediúnico de desobsessão, não obstante não invalidar a possibilidade do atendimento à distância. Inclusive, na região de Marmande, no artigo de fevereiro de 1866, que foi utilizado para afirmar a contrariedade de Kardec em relação à presença de assistidos em reuniões de desobsessão, há um relato de uma cura de obsessão operada à distância. Nele, o assistido, um camponês vitimado “de uma loucura de tal modo furiosa, que perseguia as pessoas a golpes de forcado para matá-las, e que na falta de pessoas, atacava os animais do galinheiro” (Kardec, 1993c, p.40), residia numa aldeia distante algumas léguas da região de Marmande. A família do camponês foi orientada a interná-lo em uma casa para alienados, mas antes de executar tal orientação, “um de seus parentes tendo ouvido falar das curas obtidas em Marmande, em casos semelhantes, veio procurar o Sr. Dombre e lhe disse: ‘Senhor, me disseram que curais os loucos, é por isso que venho vos procurar’” (p.40). A partir desse momento, não sem antes consultar seus guias espirituais, o grupo de Marmande passou a evocar o espírito obsessor do camponês, e solicitou que o parente os procurasse em Marmande a cada dois dias para dar notícias sobre o assistido. Após oito dias de reuniões, conseguiram moralizar o espírito que perseguia o camponês, que passou a apresentar melhorias sensíveis em seu comportamento social. Kardec se vê admirado com o resultado e comenta: “Poder-se-ia colocar à conta da imaginação as curas operadas à distância, sobre pessoas que jamais se viram, sem emprego de nenhum agente material qualquer” (p.41). Percebe-se, portanto, que Kardec, longe de recriminar a presença do assistido, antes se entusiasma com os resultados obtidos, apesar da sua ausência.

Mas em vários casos cuja presença do atendido é inviável, talvez pela distância ou pela impossibilidade de locomoção (problema bem superado pelo grupo de Bordeaux), o acompanhamento à distância e as preces são o melhor meio de assisti-lo. Um exemplo que se vê na Revista espírita de janeiro de 1863, quando discute os fenômenos de Morzine, ilustra essa possibilidade. É uma cura através de preces relatada por um membro da Sociedade Espírita de Paris, de uma jovem que casou de forma contrariada, o que “levou-a a uma alteração em suas faculdades mentais” (Kardec, 2000, p.5). Um espírito superior orientou-o assim: “A idéia fixa dessa senhora, por sua própria causa, atrai, ao seu redor, uma multidão de espíritos maus que a envolvem com seu fluido, mantendo-a em suas idéias, e impedindo que cheguem a ela as boas influências. Os espíritos dessa natureza pululam sempre nos meios semelhantes ao que ela se encontra, e são, freqüentemente, um obstáculo à cura dos enfermos. No entanto, podeis curá-la, mas é preciso para isso uma força moral capaz de vencer a resistência, e essa força não é dada a um só. Que cinco ou seis espíritas sinceros se reúnam todos os dias, durante alguns instantes, e peçam com fervor a Deus e aos bons espíritos para assisti-la; que vossa ardente prece seja, ao mesmo tempo, uma magnetização mental; não tendes, para isto, necessidade de estar junto dela, ao contrário; pelo pensamento podeis levar sobre ela uma corrente fluídica salutar [...]” (p.6).

Em fevereiro de 1863, ainda tratando dos problemas de Morzine, Kardec relata um delírio sofrido por um senhor de seu conhecimento que reside em outra cidade da província. Atendido por médicos, foi diagnosticada loucura e recomendado que fosse internado numa casa de saúde. Dispondo-se a ajudar, Kardec consulta um espírito sobre o problema, e esse afirma: “Esse senhor não é louco, mas da maneira a que isso se prende, poderia tornar-se; bem mais, poderia matá-lo. O remédio para o seu mal está no próprio espiritismo, e é tomado em contra-senso” (Kardec, 2000, p.35). Kardec então pergunta: “Poder-se-ia agir sobre ele daqui?” (p.35), e o espírito responde: “Sim, sem dúvida; podeis fazer-lhe o bem, mas vossa ação é paralisada pela má vontade daqueles que o cercam” (p.35). A pergunta de Kardec, se para ele fosse normal a ausência do assistido em suas reuniões, soaria incompreensível. Claro que se perguntou, é porque não estava convicto da eficácia do atendimento à distância.

Citam-se agora alguns trechos do Evangelho, conforme o capítulo 15 de A gênese, nos quais Jesus opera curas em homens possessos. Em Mc 1, 21-27, lê-se que “achava-se na sinagoga um homem possesso de um espírito impuro, que exclamou: – Que há entre ti e nós, Jesus de Nazaré? Vieste para nos perder? Sei quem és: és o santo de Deus. – Jesus, porém, falando-lhe ameaçadoramente, disse: Cala-te e sai desse homem. – Então, o espírito impuro, agitando o homem em violentas convulsões, saiu dele. Ficaram todos tão surpreendidos que uns aos outros perguntavam: Que é isto? Que nova doutrina é esta? Ele dá ordem com império, até aos espíritos impuros, e estes lhe obedecem” (Kardec, 1984, p.327-328). O homem doente estava na sinagoga, no meio de todos, e lá Jesus expulsa o espírito impuro. Em Mt 9, 32-34, apresentam a Jesus “um homem mudo, possesso do demônio” (p.328), que ele cura no meio do povo. Em Mc 9, 13-28, Jesus pede, em torno de uma grande multidão, ao pai de um rapaz, possesso de um espírito mudo, que lho traga para curá-lo. Em Mt 12, 22-28, apresentam-lhe um possesso surdo e mudo que ele cura no meio do povo. Há ainda outras passagens de curas de obsessões realizadas por Jesus, e vê-se, em quase todas, o procedimento de levar os doentes à presença de Jesus, e a cura acontecer à vista de todos. Kardec, comentando essas passagens, diz que a “prova da participação de uma inteligência oculta, em tal caso, ressalta de um fato material: são as múltiplas curas radicais obtidas, nalguns centros espíritas, pela só evocação e doutrinação dos espíritos obsessores, sem magnetização, nem medicamentos e, muitas vezes, na ausência do paciente e a grande distância deste” (p.329-330), ressaltando, mais uma vez, o fato de que a cura das obsessões na ausência dos assistidos ser também uma possibilidade real.

A desobsessão é tarefa essencial de qualquer casa espírita que queira seguir as orientações dos espíritos que participaram da obra kardecista, como se vê em O livro dos médiuns, no qual os espíritos propõem como atividade regular, após pergunta de Kardec, reuniões que visassem o auxílio aos espíritos errantes: “P. Não se pode também combater a influência dos maus espíritos, moralizando-os? R. Sim, mas é o que não se faz e é o que não se deve descurar de fazer, porquanto, muitas vezes, isso constitui uma tarefa que vos é dada e que deveis desempenhar caridosa e religiosamente. Por meio de sábios conselhos, é possível induzi-los ao arrependimento e apressar-lhes o progresso” (Kardec, 1996, p.322); ou ainda em O livro dos espíritos, pergunta 476: “P. Mas, não pode acontecer que a fascinação exercida pelo mau espírito seja de tal ordem que o subjugado não a perceba? Sendo assim, poderá uma terceira pessoa fazer que cesse a sujeição da outra? E, nesse caso, qual deve ser a condição dessa terceira pessoa? R. Sendo ela um homem de bem, a sua vontade poderá ter eficácia, desde que apele para o concurso dos bons espíritos, porque, quanto mais digna for a pessoa, tanto maior poder terá sobre os espíritos imperfeitos, para afastá-los, e sobre os bons, para os atrair. Todavia, nada poderá, se o que estiver subjugado não lhe prestar o seu concurso. Há pessoas a quem agrada uma dependência que lhes lisonjeia os gostos e os desejos. Qualquer, porém, que seja o caso, aquele que não tiver puro o coração nenhuma influência exercerá. Os bons espíritos não lhe atendem ao chamado e os maus não o temem” (Kardec, 1995, p.251). E o método de evocação de espíritos também é colocado em O livro dos médiuns: “Convém igualmente que só com muita prudência se façam evocações, na ausência das pessoas que as pediram, sendo mesmo preferível que não sejam feitas nessas condições, visto que somente aquelas pessoas se acham aptas a analisar as respostas, a julgar da identidade, a provocar esclarecimentos, se for oportuno, e a formular questões incidentes, que as circunstâncias indiquem. Além disso, a presença delas é um laço que atrai o espírito, quase sempre pouco disposto a se comunicar com estranhos, que lhes não inspiram nenhuma simpatia” (Kardec, 1996, p.351).

4 CONCLUSÃO

Diante de evidências tão explícitas, de exemplos tão contundentes, seria, no mínimo, incoerência afirmar a adesão de Kardec à sugestão dos espíritos e da FEB para que não se façam reuniões de desobsessão com a presença dos atendidos. Ao contrário, como já afirmado, sugere-se às casas espíritas que verdadeiramente querem seguir as orientações kardecistas que façam, por caridade e eficácia, seus atendidos adentrarem suas reuniões de desobsessão, deixando o atendimento sem sua presença limitado às necessidades pontuais, como a distância ou uma doença impeditiva. Isso não significa afirmar que as reuniões tornar-se-ão públicas, visto que o caráter privativo e íntimo dos encontros mediúnicos continua muito bem preservado.

NOTA

[1] Em 2007 a FEB lançou uma nova edição desse manual, com novo texto aprovado pelo Conselho Federativo Nacional, seu órgão deliberativo, em reunião de novembro de 2006. Na nova edição, as referências à obra de André Luiz como base para a reunião de desobsessão desapareceram, sem, entretanto, deixar de referir-se à necessidade da ausência de assistidos na reunião: “Deve-se evitar a presença de pessoas necessitadas de auxílio espiritual durante a fase de manifestação dos espíritos” (FEB, 2007, p.63).

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sábado, 29 de abril de 2006

A verdade que liberta

Artigo de Sergio Mauricio publicado na coluna Religião do Jornal A Tarde, Salvador, BA, em 01/08/2005 .

A mensagem cristã divulgada há cerca de dois mil anos, apesar da idade, ainda é uma novidade entre nós, ainda é um evangelho, uma boa nova. Seu conteúdo moral e espiritual foi deturpado e conspurcado pelos homens durante esse longo período de história, tornando-se um amontoado de rituais tolos, crendices sem fundamentos e hierarquias e postos sacerdotais mais preocupados com os poderes terrenos do que com a construção do reino dos céus.

O espiritismo propõe reviver a mensagem original e inovadora ensinada por Jesus, a mensagem revolucionária da renovação pessoal através da prática do amor e da caridade e da busca da compreensão da condição humana diante da vida, mensagem bem representada pela máxima ditada pelo Espírito da Verdade constante n’O Evangelho segundo o espiritismo: “Espíritas! Amai-vos, eis o primeiro ensinamento; instruí-vos, eis o segundo”.

Mas, já próximo o seu sesquicentenário, o espiritismo, como todas as várias propostas de restauração do cristianismo, também sofre com a adulteração do tempo realizada pelos homens. A proposta espírita, fundamentada na moral de Jesus e ratificada pelas mensagens mediúnicas, é a do amor, da compreensão e do consolo, e esses objetivos deveriam ser alcançados, conforme os ensinos propostos pelos espíritos, através do esclarecimento, do incitamento à transformação pessoal de cada um que chega a uma casa espírita. Qualquer outra prática que não crie as condições de transformação pessoal, que não estimule o indivíduo à reflexão sobre seus valores morais e sobre suas ações na vida, é mero paliativo, é como uma distribuição de indulgências, é reviver o que de mais insensato a história humana já produziu em termos religiosos. E nós espíritas estamos fazendo isso.

Jesus ensinou que se conhecêssemos a verdade ela nos libertaria, faria de nós homens livres, e é esse o espírito do consolador, do paráclito anunciado que deverá estar conosco para sempre, é ele a compreensão da verdade, a verdade que explica e consola, pois só a bênção da verdade é consoladora. A função da casa espírita, portanto, como propulsora dos ideais cristãos, é a aspersão da verdade, pois só ela será capaz de libertar o homem que sofre, através do entendimento, da compreensão das razões profundas de sua necessidade de aprendizado nas experiências terrenas.

Muitas práticas espíritas, apesar de ostentarem o verniz da boa vontade, mais aprisionam o homem do que o libertam. Uma casa espírita que mantém, por exemplo, plantões de passes, além de grave erro doutrinário (Revista espírita, set.1865), estimula a irreflexão e a busca pelos meros analgésicos, que não são capazes de enfrentar seriamente o problema real da criatura humana. As pessoas vão em busca da solução dos seus problemas mais comezinhos, como as dificuldades financeiras, os dramas amorosos, as crises nos relacionamentos familiares, dentre outros; e a casa espírita deveria orientar, ensinar (e isso é verdadeiramente consolar), sobre a necessidade da transformação, da mudança de postura diante de problemas tão comuns à vida de todos nós que estamos nesse nível evolutivo, e não apenas aplicar passes ou fazer atendimentos de desobsessão. Ora, há espíritos em torno de nós a todo o momento, a nos acotovelar, no dizer de Kardec, e muitos querem-nos prejudicar e outros tantos ajudar-nos. Se a qualquer problema do cotidiano, a casa espírita for encaminhar o atendido a uma desobsessão, teremos que viver dentro dela, e o que é pior, numa versão moderna e espírita, cá estamos nós oferecendo as nossas indulgências. A desobsessão é remédio a ser usado com conhecimento profundo e aplicado em casos em que sua necessidade seja inconteste.


É preciso evangelizar, não apenas com palestras e cursos introdutórios de espiritismo, é preciso que o público que procura uma casa espírita –e principalmente seus condutores– tenha contato direto com leituras dos evangelhos sobre Jesus e das obras de Kardec, prática infelizmente pouco comum. As casas espíritas devem seguir o caminho da divulgação desses textos, que fundamentam o verdadeiro cristianismo, como única forma de cumprir o papel de consolador e de orientador, libertando o homem ao invés de aprisioná-lo, além de ser também o único caminho de se buscar a coerência doutrinária e a tão desejada unificação.

quarta-feira, 30 de novembro de 2005

Reflexões sobre o movimento espírita

Após retornar à boa terra, informei-me acerca dum debate no movimento espírita baiano: um renomado médium, duma das casas espíritas mais conhecidas de Salvador, resolveu realizar um casamento espírita. O fato teria passado sem maiores problemas, posto algumas casas espalhadas pelo país o realizarem também, mas o imbróglio se deu quando a justiça não reconheceu o enlace como legal, por conta de determinadas minudências jurídicas, que envolvem o fato de o espiritismo não possuir sacerdotes profissionais, impedindo sua consumação como determina a letra fria da lei.

Sem me envolver nem no fato jurídico, já que não tenho tal capacitação profissional, nem no problema doutrinário (apesar de possuir um entendimento pessoal sobre o tema), pois envolve opiniões diversas e apaixonadas (aliás, como sói acontecer com a maioria dos debates entre espíritas), detive-me no problema do tal “movimento espírita”, e refleti muito sobre ele, o que tenho feito bastante nos últimos tempos. Passei, então, a perguntar-me: quem estaria credenciado a definir o que é o certo e o errado no espiritismo? Quem seria o responsável pela correta exegese das obras kardecistas? Será que o espiritismo necessita duma organização institucional para sua realização concreta? E essa organização passaria necessariamente por um processo de unificação através de instituições unionistas habilitadas para tal? Quem as habilitaria?

Refletindo, motivado pelo debate acerca do casamento espírita, sobre esses pontos, e outros mais, passei a questionar a própria atuação da casa espírita, núcleo primacial da existência do espiritismo institucionalizado (ou o “movimento espírita”). Questionei-me se não bastaria a minha busca pela transformação moral e comportamental, abstendo-me de qualquer atividade de cunho religioso, tão afeita a posições extremadas e fundamentalistas. Algo já havia precedido essas questões: a deliberação da total independência da casa espírita em que atuo de qualquer participação no tal “movimento espírita”, não aderindo ou associando-se a UDEs, AREs, federações ou uniões. Mas e quanto à própria casa espírita, seria ela realmente necessária? Será que o objetivo deve ser a casa (ou a causa) ao invés da minha transformação pessoal? Vou além, como instituição, será que a casa espírita não dificulta meus objetivos principais ao invés de promovê-los?

Bem, são muitas as questões. E ainda não tenho as respostas. Algo sinto em mim: adoro a casa espírita em que atuo (aliás, já se vão alguns anos...), as pessoas, o trabalho, o desejo de ajudar, mas ao mesmo tempo não gosto da luta desmesurada pelo destaque, a presença insana da vaidade, a necessidade de crescer a casa mais do que o homem etc.

Sim, o “movimento espírita” parece uma luta, um clima de guerra intenso, posições contrárias e dogmáticas, religiosos X cientificistas, sincréticos X ortodoxos, Kardec X Roustaing, livros psicografados X obras kardecistas, dentre outros confrontos. Vejo-me partidário de posições, e isso me incomoda, já que me sinto sempre motivado a “lutar” pelas minhas posições, como num embate franco numa planície, em que guarnições entrincheiradas buscam conquistar um mínimo espaço do adversário, que sempre representa o “mal”.

Não quero lutar por nenhuma posição, não quero lutar pelo espiritismo, por nenhuma causa ou casa, quero apenas aproveitar o máximo possível a minha atual experiência terrena para me transformar, para sair daqui melhor do que entrei, e para isso busco seguir, nas minhas precárias possibilidades, os ensinos de Jesus e o que me propõe o espiritismo.

Cada um, cada casa, cada instituição, que busque seus caminhos, prescindindo de qualquer orientação formal, conforme aquilo que crê e deseja. Que cada um siga seus mestres, suas doutrinas e seus guias, é apenas um problema de cunho pessoal. Se um gosta de ler Zíbia, outro admira Ramatís, aqueloutro execra essas possibilidades, que possam apenas conviver em paz, mantendo suas posições e suas idéias, sem, entretanto, jamais querer definir o que é o certo e o que é o errado, pois quem estaria habilitado para tal? Quem se arvoraria a parâmetro doutrinário do espiritismo?

São apenas algumas reflexões. Ainda encontro problemas com elas. Receio a profundidade a que me levarão, ainda assim seguirei em meus mergulhos, em minhas reflexões. Preciso mudar, e essa é a minha tarefa na vida, não posso parar em lutas que só desconstroem essa possibilidade.
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