Artigo de Sergio Mauricio publicado no Caderno Cultural do Jornal A Tarde, Salvador, BA, em 15/04/2006.
“Apesar de você, amanhã há de ser outro dia
Eu pergunto a você onde vai se esconder da enorme euforia?
Como vai proibir quando o galo insistir em cantar?
Água nova brotando e a gente se amando sem parar”
Fragmento duma canção de Chico Buarque
Imagine-se uma situação na qual alguns proprietários de latifúndios ou exploradores de minas pelo país reunir-se-iam, anualmente, numa data que, para eles, fosse representativa, e comemorassem o sistema escravocrata de produção. Nesse dia, seus expoentes fariam discursos enaltecendo a escravidão como responsável pelo desenvolvimento sócio-econômico do país por mais de 300 anos, e afirmariam o orgulho por um passado glorioso de força e poder, além de situar a escravidão como um valor imutável que daria sentido à economia brasileira.
Tal possibilidade seria considerada por muitos como esdrúxula e insensata, pois feriria a história e a dignidade daqueles que foram suas vítimas. Mas, apesar do absurdo, não se poderia negar tal direito de manifestação a quem quer que fosse, pois essa situação hipotética se inseriria no contexto das liberdades individuais, como a liberdade de expressão e pensamento, e, portanto, legítima. Entretanto, e se essa estranha comemoração fosse patrocinada por um órgão oficial do Governo Federal, como o Ministério da Agricultura, por exemplo? Nessa nova suposição, não se falaria mais em simples exercício das liberdades individuais, mas num posicionamento formal do governo de turno sobre a questão, que deliberadamente assumiria uma opinião sobre o tema. Haveria, obviamente, uma inadequação dessa postura oficial, pois se mostraria tolerante com a prepotência e a arrogância em detrimento da luta em favor da liberdade e da igualdade sociais.
Essa ficção inaceitável acima descrita acaba de ocorrer no Brasil, é preciso apenas trocar nomes e fatos históricos: no último dia 31 de março, o comandante do Exército, general Francisco Roberto de Albuquerque, protagonizou um momento insólito quando divulgou uma nota em comemoração ao golpe militar que submeteu o país a uma ditadura que durou mais de 20 anos.
Na nota, divulgada como ordem do dia, e, por conseguinte, lida em todos os quartéis do país, o general afirma: “o 31 de março insere-se na história pátria e é sob o prisma dos valores imutáveis de nossa Força e da dinâmica conjuntural que o entendemos”. Para melhor apreender o profundo significado dessa afirmação, precisa-se recorrer à história do país durante a vigência da ditadura militar, que foi responsável por um horror indescritível, que matou e torturou um sem-número de brasileiros, apenas por pensarem de forma diferente. A pergunta imediata que não se cala é a que valores o general se referiu? Seriam a tortura, o assassinato, o desaparecimento, a perseguição política, as prisões ilegais, o exílio contumaz, os tais “valores imutáveis de nossa Força”? É o que naturalmente se entende.
Adiante reflete o autor-general que o golpe militar "une-se, vigorosamente, aos demais acontecimentos vividos, para alicerçar, em cada brasileiro, a convicção perene de que preservar a democracia é dever nacional”. O advérbio de modo “vigorosamente” não poderia ser mais bem empregado e ilustra com rigoroso primor aquele momento vivido pelo país. Mas daí a concluir que a participação do Exército objetivou “alicerçar a convicção perene” dos valores democráticos soa a escárnio. O país vinha duma curta experiência democrática, após a ditadura Vargas, e os cidadãos escolhiam seus representantes políticos, à revelia de todos os problemas inerentes à frágil e jovem democracia brasileira. Após o golpe ditatorial de 1964, as primeiras providências tomadas pelos militares golpistas, através do Ato Institucional no 1 (AI-1), de 9 de abril de 1964, assinado por representantes das três forças armadas, foram a extinção das garantias constitucionais dos servidores públicos e as possibilidades de suspensão dos direitos políticos dos cidadãos brasileiros pelo prazo de 10 anos e de cassação de mandatos políticos em todas as instâncias legislativas nacionais.
No AI-2, decretado em 27 de outubro de 1965 pelo general Castelo Branco, após derrota, em alguns estados brasileiros, dos candidatos militares nas eleições para governador em 1965, com destaques para Israel Pinheiro, do PSD, em Minas Gerais e Negrão de Lima, pela coligação PSD/PTB, na Guanabara, extinguiram-se o pluripartidarismo e as eleições diretas para presidente, permitiram-se o fechamento do Congresso Nacional e a intervenção imediata em estados e municípios, e alterou-se a formação dos tribunais de justiça, buscando sua subserviência aos interesses da ditadura. No mesmo trajeto da violência contra a democracia e da supressão dos direitos políticos e das liberdades individuais, foi promulgado em 5 de fevereiro de 1966 o AI-3, que suprimiu a eleição direta para governador e prefeito das capitais estaduais, que passaram, então, a ser indicados pelos governadores nomeados pela ditadura militar. O AI-4, de 7 de dezembro de 1966, propôs um novo projeto de constituição, que, publicada em 24 de janeiro de 1967, instituiu a Lei de Segurança Nacional, instrumento legal que definiu o crime de opinião, o crime político e o crime de subversão, e a nova Lei de Imprensa, que impôs a censura prévia com agentes presentes em todas as redações de jornais, emissoras de rádio e de televisão.
E no AI-5, mais conhecido pelo nível da repressão que desencadeou, publicado em 13 de dezembro de 1968, permitiu-se ao presidente militar, sem qualquer limitação, a intervenção em todos os níveis da administração pública nacional e o fechamento por tempo indeterminado dos poderes legislativos brasileiros, suspendeu-se a garantia jurídica do recurso de habeas corpus e instituíram-se medidas de segurança que proibiram manifestações e reuniões públicas e a freqüência a determinados lugares. No AI-13, baixado em 5 de setembro de 1969 pela junta militar que substituiu o general Costa e Silva, motivado pelo seqüestro do embaixador estadunidense no dia anterior pelos membros do MR-8, a ditadura endureceu ainda mais o regime, pois oficializou o banimento do Brasil de qualquer cidadão que fosse considerado inconveniente para os militares. E, para finalizar, no Pacote de Abril, decretado em 1977 pelo general Ernesto Geisel, cassam-se diversos parlamentares e altera-se a composição do Senado Federal, com a criação dos senadores biônicos, indicados pelas assembléias legislativas com o objetivo de garantir a maioria parlamentar submissa à ditadura.
Esse breve histórico, disponível a todos os brasileiros que se interessam em conhecer um pouco do passado do país durante o regime militar de exceção, é uma ilustração contundente e irrefutável que não se pode argumentar jamais que se pretendeu, durante a ditadura, preservar os valores democráticos. Ou se trata de má fé ou da mais simplória ignorância.
Ainda em seu libelo, o general sofisma ao dizer que “Esse Exército, o seu Exército, é conciliador sem perder a altivez, generoso com os vencidos, nobre nas atitudes, respeitador da lei, avesso aos ressentimentos”. Poder-se-ia até mesmo aceitar a afirmação se o militar estivesse apenas se referindo ao momento atual do nosso país, mas como sua referência é histórica e busca exaltar o 31 de março de 1964, o deboche é inquestionável. Respeitar leis que foram impostas pela força e pela arbitrariedade é muito fácil e nada democrático; se ser conciliador é proibir a livre expressão e calar “vigorosamente” os cidadãos; se ser generoso é fazer os adversários, mesmo que apenas de opinião, desaparecerem; se ter atitudes nobres é torturar, exilar e matar por crimes políticos; e se ser avesso aos ressentimentos é tripudiar da história e dos massacrados pela ditadura, é preciso urgentemente reformar os dicionários e construir novas definições que se acomodem a essa extravagante realidade.
Waldir Pires, o Ministro da Defesa recém assumido, argumentou para imprensa nacional que o general tem o direito de expressar a sua opinião e que tem “que respeitar a posição de cada um”. Insiste-se em afirmar que o cidadão tem todo o direito de pensar e publicar tudo o que foi escrito nessa louvaminha à participação do Exército brasileiro na história da repressão, o que não se pode admitir sob qualquer pretexto é que o Governo brasileiro seja envolvido nesse episódio burlesco, pois, afinal, o general falou não na qualidade de cidadão, mas de representante formal duma instituição do Governo Federal –o Exército brasileiro–, portanto, o texto representa não apenas a sua opinião, mas a opinião do Estado constituído, cujo novo Ministro da Defesa é um cidadão que viveu o exílio durante a ditadura militar e o Presidente da República foi preso como criminoso político por sua participação em protestos e greves durante esse regime ditatorial. O que tinge o fato com tons ainda mais severos são outros dois acontecimentos prévios: primeiro, mais distante, a constatação que esse episódio não foi um caso isolado, pois em 31 de março de 2000, também numa leitura da ordem do dia do Exército, o mesmo general já havia afirmado que o golpe militar de 1964 fora um ato de “coragem moral” para “restaurar a democracia”, confundindo mais uma vez sua opinião pessoal com o Estado brasileiro; e, segundo, pela afirmação do próprio general, ao referir-se às reações aos seus intempestivos juízos históricos, que o texto fora submetido com antecedência de duas semanas à aprovação do Vice-Presidente e então Ministro da Defesa José Alencar, seu superior imediato, o que corrobora a idéia que o texto representa a opinião da atual gestão política do Governo Federal, transformando o que seria apenas uma pilhéria inoportuna dum general numa interpretação equivocada e atroz da história brasileira por parte da presente administração.
Na Argentina, o dia 24 de março, dia do golpe militar que fez desaparecer cerca de 30 mil pessoas, foi esse ano transformado em feriado nacional pelo atual presidente Nestor Kirchner, não para se comemorar nada, pois nada há para ser comemorado, mas para ser usado como o dia da “memória”, um dia de reflexão e de manifestações para ninguém jamais esquecer o horror que aquele país viveu. Estimulou-se uma maratona de eventos políticos e culturais para registrar o sofrimento dos que trazem as marcas físicas e psicológicas da crueldade da ditadura portenha.
Que se faça o mesmo no Brasil e se use a efeméride desse trágico momento histórico para uma reflexão profunda sobre o papel da democracia em nossa sociedade. Todo regime que suprime as liberdades individuais, que impede a livre manifestação da opinião e do pensamento, que penaliza seus cidadãos pela discordância ideológica e que usa da violência extrema contra seus adversários políticos não merece ser lembrado, a não ser como exemplo a ser preservado às novas gerações do que não se deve permitir que volte a acontecer jamais. O regime ditatorial que se instalou no Brasil após o golpe antidemocrático de 1964, e que se arrastou por mais de 20 anos deixando para trás um rastro de sangue e de arbitrariedade, é um desses claros exemplos. O Brasil tem o dever moral e político de sempre lembrar que não há nada que justifique a supressão dos direitos democráticos, não há “milagre econômico” nem controle inflacionário, não há “Brasil, ame-o ou deixe-o” nem reformas de base, que possam minimizar o horror da escuridão da falta da liberdade e da democracia. Essa lembrança reiterada não deve ser apenas uma “ordem do dia” a ser lida nas escolas, nas fábricas, nos sindicatos, nas ruas e até nos quartéis, mas um valor a ser preservado como patrimônio da educação política do povo brasileiro, para que seus cidadãos tenham a certeza que não há atalhos salvacionistas e que só o exercício longo e contínuo da experiência democrática permiti-los-á construir uma nação mais justa e melhor.
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4 comentários:
Parabéns pelo post! Está realmente muito bem escrito e narra com fatos concretos as dificuldades que os cidadãos passaram durante a ditadura.
O seu texto incentiva a nós, cidadãos brasileiros buscar informação sobre o que aconteceu durante o regime militar e, ficar atentos para que fatos como esse nunca mais aconteçam e nome de interesses vários, menos os da liberdade e da democracia no nosso País.
Creio que a história não deva ser jamais esquecida, sob pena de revivermos os mesmos erros. Temos todos a obrigação de transmitir a herança cultural e histórica de nossas sociedades às gerações seguintes.
Ocorreu-me uma frase constante no livro "Crítica da razão tupiniquim", que aliás recomendo a todos: "É tão grave esquecer-se no passado quanto esquecer o passado".
Obrigado pelos comentários elogiosos.
"Visto que a autoridade sempre exige obediência, ela é comumente confundida com alguma forma de poder ou violência. Contudo, a autoridade exclui a utilização de meios externos de coerção; onde a força é usada, a autoridade em si mesma fracassou. A autoridade, por outro lado, é incompatível com a persuasão, a qual pressupõe igualdade e opera mediante um processo de argumentação. Onde se utilizam argumentos, a autoridade é colocada em suspenso. (Hannah Arendt)”.
Lamentável que o cidadão brasileiro tenha esta ferida remexida doravante às palavras dos quais teriam que ser os primeiros a tentar se desculpar pelos atos dos seus precursores hostis. Mais lamentável ainda é ver atos dessas proporções não serem criticados de forma mais abrangentes pela sociedade. Bem se entende que ñ devamos estar se lamentando pelo passado, claro que não sugiro que esqueçamos esta lanterna que clareia nossos passos, mas dai a valorizar estes; imagina as palavras de um general como força propulsora ideológica dentro dos quartéis no Brasil a fora?.
Não me aprofundarei nas barbáries cometidas pelos ditadores, que acima fica claro nos atos institucionais, não abordarei uma reflexão um pouco mais abrangente em pro da guerra fria no mundo, para que não me desvie em demonstrar meu repúdio por tais atos nacionais, que demonstram o caráter opressor da liberdade de reflexão que tanto poderiam ter contribuído para nossa sociedade, demonstrando período de atraso na tanta esperada democracia de fato, e não esta utopia que tanto se dificulta em instaurar, também em um país que cada vez mais nos mostra que quem estar no poder pode tudo, quando aprendemos a não tolerar a opressão militar, estamos agora na fase de aceitar os roubos e fraudes governamentais( a população oprimida de ideologia, alienada do conhecimento), talvez dona democracia esteja feliz em dizer que pior era na ditadura, demonstrando o conformismo das pizza congressistas, no qual probabilizo mais uma conseqüência do terror militar. Disperso-me e peço que desculpem qualquer incoerência que eu possa ter cometido, quero aproveitar a liberdade que tenho de expressão e agradecer a Deus por não ter convivido no tempo da instauração militar), onde esta pagina poderia me levar à morte ou a prisão, porém, graças que vivo na liberdade de idéias, onde alguns ferem a nação, outros mandam voltar avião, sendo os mesmos que se dizem interventores da honra, dever e retidão, virtudes que devemos cultivar, buscando glorias ideais a perfeição.
Leonardo vince
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