Pesquisar este blog

Mostrando postagens com marcador Ateu. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Ateu. Mostrar todas as postagens

terça-feira, 26 de outubro de 2010

A última minoria

Fábio Ulhoa Coelho (*)


Quando Barack Obama, em janeiro de 2009, tomou posse como presidente dos Estados Unidos, a trajetória da luta pelos direitos da minoria registrou evento de simbolismo ímpar - um dos mais importantes cargos do mundo (se não o mais importante) era ocupado, a partir de então, por um negro.

Naquele momento acontecia algo absolutamente impensável há algumas décadas. E acontecia, pode-se dizer, com a naturalidade que devia mesmo caracterizá-lo. Ter-se dado pouca relevância à cor do novo presidente explica-se, exatamente, em razão dos avanços da luta pelos direitos das minorias. A falta de extraordinário destaque a essa particular circunstância revela o amadurecimento da sociedade norte-americana, cerca de meio século depois de deflagrado o movimento pelos direitos civis.

Sendo a assim chamada "raça" da pessoa em tudo irrelevante na avaliação da sua competência como chefe de Estado e de governo, não há mesmo nenhum motivo para dispensar a esse detalhe qualquer atenção desmedida.

A posse de Obama, no entanto, serve também a outra reflexão, igualmente importante para se compreender a trajetória da luta pelos direitos da minoria, para se perceber que, por mais eloquente que tenha sido, naquele momento, o resultado dessa luta, ela ainda não terminou. Há vários exemplos de representantes de outras minorias na chefia de governos e Estados em países democráticos. O gênero da pessoa, há tempos, não tem nenhuma importância na escolha de governantes e até mesmo a orientação sexual não é mais levada em conta em alguns lugares (na Alemanha, por exemplo).

O que demonstrou, na posse de Obama, que a luta pelos direitos da minoria ainda tem chão pela frente foi o acento dado à religião na cerimônia. Além do tradicional juramento com as mãos sobre a Bíblia, abriu-se a palavra à bênção de dois pastores. Sendo os EUA um Estado laico, a reverência dada à questão religiosa no transcorrer do ritual de transmissão da presidência liga-se a um aspecto importante da política: refiro-me ao preconceito contra uma minoria, os ateus.

Esse preconceito habita a política brasileira. É uma história de todos conhecida a tergiversação de Fernando Henrique Cardoso diante da pergunta do jornalista Boris Casoy, num debate entre os postulantes à Prefeitura de São Paulo em 1985, sobre se ele seria ateu. "Se não fosse, é óbvio que teria respondido, de modo direto e claro, à pergunta; se tergiversou, é ateu" - certamente foi isso que pensou algum eleitor. Nos anos seguintes, FHC visitou a Basílica de Nossa Senhora Aparecida no dia da padroeira. Independentemente da crença, ou não, que nutre ou nutria, em Deus, ele tinha de mostrar ao eleitorado que professava uma religião.

Mas por que a cor, o gênero e a opção sexual do candidato a cargos eletivos são, hoje, considerados atributos irrelevantes, mas a crença dele não? Por que o eleitor resiste a eleger um prefeito, governador ou presidente assumidamente ateu?

A questão surge como extremamente oportuna no interregno entre o primeiro e o segundo turnos da eleição presidencial em curso, quando, diante das dúvidas sobre a descriminalização do aborto, ganhou inusitada e inesperada relevância a crença religiosa cultivada pelos postulantes. Teria qualquer chance de se eleger um hipotético candidato à Presidência da República, no Brasil, que se apresentasse ao eleitorado como ateu?

Os ateus compõem uma minoria. São socialmente discriminados por suas convicções. Preferem, muitas vezes, ocultar a falta de crença na existência de um Deus criador e ordenador a se expor a tais discriminações. Mas, assim como a cor, o gênero e a opção sexual da pessoa, a falta de religião e de fé é atributo que não deveria pesar na hora da escolha dos governantes.

O preconceito contra os ateus origina-se da ideia de que a crença em Deus serve como freio moral. Assim, uma pessoa sem Deus seria desprovida de valores para discernir o certo do errado e, por isso, só conseguiria nortear sua conduta a partir de interesses egoístas. Essa ideia é falsa.

Quem respeita as normas de convivência social com medo da punição divina ou para obter beneplácitos celestiais é, sob o ponto de vista moral, uma pessoa bem mais frágil do que o ateu. Quando este age conforme tais normas, a despeito de qualquer temor de castigo ou desejo de recompensa futura, é porque está convencido da importância dos preceitos morais, tanto para sua própria vida como para a dos outros.

O preconceito contra o ateísmo talvez não seja perceptível no dia a dia. Afinal, não se divulgam discriminações no trabalho, em ambientes sociais ou manifestações culturais. Durante as eleições, no entanto, o preconceito aflora de modo avassalador.

José Serra, em Goiânia, beija o rosário e Dilma Rousseff vai à missa no Santuário de Aparecida - manifestações de religiosidade explícita tornam-se tema obrigatório de campanha, para que os candidatos (ateus ou crentes, pouco importa) possam defender-se eficazmente do preconceito contra o ateísmo.

E enquanto vicejar este preconceito, há sempre o risco de o debate político se contaminar por obscurantismos e fundamentalismos, desviando a atenção da campanha eleitoral para assuntos que fogem aos que realmente interessam ao País. O combate ao preconceito contra os ateus contribui, portanto, para o fortalecimento da democracia. Aliás, fortalece-a o combate a qualquer preconceito.

E assim como a emancipação da mulher é do interesse também dos homens, e o fim do apartheid não trouxe proveito somente aos diretamente prejudicados por essa nefasta política racial, também aos crentes interessa a superação dos preconceitos contra os ateus. Ganharíamos todos nós, os brasileiros, cuja significativa maioria tem religião e nutre fervorosa fé em Deus, se mais este preconceito fosse extirpado da política.

(*) Jurista, é professor da PUC-SP.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

10 mitos – e 10 verdades – sobre o ateísmo

Sam Harris
Tradução: Alenônimo

Fonte: Ateus do Brasil

Várias pesquisas indicam que o termo “ateísmo” tornou-se tão estigmatizado nos EUA que ser ateu virou um total impedimento para uma carreira política (de um jeito que sendo negro, muçulmano ou homossexual não é). De acordo com uma pesquisa recente da revista Newsweek, apenas 37% dos americanos votariam num ateu qualificado para o cargo de presidente.

Ateus geralmente são tidos como intolerantes, imorais, deprimidos, cegos para a beleza da natureza e dogmaticamente fechados para a evidência do sobrenatural.

Até mesmo John Locke, um dos maiores patriarcas do Iluminismo, acreditava que o ateísmo “não deveria ser tolerado porque, ele disse, “as promessas, os pactos e os juramentos, que são os vínculos da sociedade humana, para um ateu não podem ter segurança ou santidade.

Isso foi a mais de 300 anos. Mas nos Estados Unidos hoje, pouca coisa parece ter mudado. Impressionantes 87% da população americana alegam “nunca duvidar” da existência de Deus; menos de 10% se identificam como ateus – e suas reputações parecem estar deteriorando.

Tendo em vista que sabemos que os ateus figuram entre as pessoas mais inteligentes e cientificamente alfabetizadas em qualquer sociedade, é importante derrubarmos os mitos que os impedem de participar mais ativamente do nosso discurso nacional.

1) Ateus acreditam que a vida não tem sentido.

Pelo contrário: são os religiosos que se preocupam freqüentemente com a falta de sentido na vida e imaginam que ela só pode ser redimida pela promessa da felicidade eterna além da vida. Ateus tendem a ser bastante seguros quanto ao valor da vida. A vida é imbuída de sentido ao ser vivida de modo real e completo. Nossas relações com aqueles que amamos têm sentido agora; não precisam durar para sempre para tê-lo. Ateus tendem a achar que este medo da insignificância é... bem... insignificante.

2) Ateus são responsáveis pelos maiores crimes da história da humanidade.

Pessoas de fé geralmente alegam que os crimes de Hitler, Stalin, Mao e Pol Pot foram produtos inevitáveis da descrença. O problema com o fascismo e o comunismo, entretanto, não é que eles eram críticos demais da religião; o problema é que eles era muito parecidos com religiões. Tais regimes eram dogmáticos ao extremo e geralmente originam cultos a personalidades que são indistinguíveis da adoração religiosa. Auschwitz, o gulag e os campos de extermínio não são exemplos do que acontece quando humanos rejeitam os dogmas religiosos; são exemplos de dogmas políticos, raciais e nacionalistas andando à solta. Não houve nenhuma sociedade na história humana que tenha sofrido porque seu povo ficou racional demais.

3) Ateus são dogmáticos.

Judeus, cristãos e muçulmanos afirmam que suas escrituras eram tão prescientes das necessidades humanas que só poderiam ter sido registradas sob orientação de uma divindade onisciente. Um ateu é simplesmente uma pessoa que considerou esta afirmação, leu os livros e descobriu que ela é ridícula. Não é preciso ter fé ou ser dogmático para rejeitar crenças religiosas infundadas. Como disse o historiador Stephen Henry Roberts (1901-71) uma vez: “Afirmo que ambos somos ateus. Apenas acredito num deus a menos que você. Quando você entender por que rejeita todos os outros deuses possíveis, entenderá por que rejeito o seu”.

4) Ateus acham que tudo no universo surgiu por acaso.

Ninguém sabe como ou por que o universo surgiu. Aliás, não está inteiramente claro se nós podemos falar coerentemente sobre o “começo” ou “criação” do universo, pois essas idéias invocam o conceito de tempo, e estamos falando sobre o surgimento do próprio espaço-tempo.

A noção de que os ateus acreditam que tudo tenha surgido por acaso é também usada como crítica à teoria da evolução darwiniana. Como Richard Dawkins explica em seu maravilhoso livro, Deus, um delírio, isto representa uma grande falta de entendimento da teoria evolutiva. Apesar de não sabermos precisamente como os processos químicos da Terra jovem originaram a biologia, sabemos que a diversidade e a complexidade que vemos no mundo vivo não é um produto do mero acaso. Evolução é a combinação de mutações aleatórias e da seleção natural. Darwin chegou ao termo “seleção natural” em analogia ao termo “seleção artificial” usadas por criadores de gado. Em ambos os casos, seleção demonstra um efeito altamente não-aleatório no desenvolvimento de quaisquer espécies.

5) Ateísmo não tem conexão com a ciência.

Apesar de ser possível ser um cientista e ainda acreditar em Deus – alguns cientistas parecem conseguir isto –, não há dúvida alguma de que um envolvimento com o pensamento científico tende a corroer, e não a sustentar, a fé. Tomando a população americana como exemplo: A maioria das pesquisas mostra que cerca de 90% do público geral acreditam em um Deus pessoal; entretanto, 93% dos membros da Academia Nacional de Ciências não acreditam. Isto sugere que há poucos modos de pensamento menos apropriados para a fé religiosa do que a ciência.

6) Ateus são arrogantes.

Quando os cientistas não sabem alguma coisa – como por que o universo veio a existir ou como a primeira molécula auto-replicante se formou –, eles admitem. Na ciência, fingir saber coisas que não se sabe é uma falha muito grave. Mas isso é o sangue vital da religião. Uma das ironias monumentais do discurso religioso pode ser encontrado com freqüência em como as pessoas de fé se vangloriam sobre sua humildade, enquanto alegam saber de fatos sobre cosmologia, química e biologia que nenhum cientista conhece. Quando consideram questões sobre a natureza do cosmos, ateus tendem a buscar suas opiniões na ciência. Isso não é arrogância. É honestidade intelectual.

7) Ateus são fechados para a experiência espiritual.

Nada impede um ateu de experimentar o amor, o êxtase, o arrebatamento e o temor; ateus podem valorizar estas experiências e buscá-las regularmente. O que os ateus não tendem a fazer são afirmações injustificadas (e injustificáveis) sobre a natureza da realidade com base em tais experiências. Não há dúvida de que alguns cristãos mudaram suas vidas para melhor ao ler a Bíblia e rezar para Jesus. O que isso prova? Que certas disciplinas de atenção e códigos de conduta podem ter um efeito profundo na mente humana. Tais experiências provam que Jesus é o único salvador da humanidade? Nem mesmo remotamente – porque hindus, budistas, muçulmanos e até mesmo ateus vivenciam experiências similares regularmente.

Não há, na verdade, um único cristão na Terra que possa estar certo de que Jesus sequer usava uma barba, muito menos de que ele nasceu de uma virgem ou ressuscitou dos mortos. Este não é o tipo de alegação que experiências espirituais possam provar.

8) Ateus acreditam que não há nada além da vida e do conhecimento humano.

Ateus são livres para admitir os limites do conhecimento humano de uma maneira que nem os religiosos podem. É óbvio que nós não entendemos completamente o universo; mas é ainda mais óbvio que nem a Bíblia e nem o Corão demonstram o melhor conhecimento dele. Nós não sabemos se há vida complexa em algum outro lugar do cosmos, mas pode haver. E, se há, tais seres podem ter desenvolvido um conhecimento das leis naturais que vastamente excede o nosso. Ateus podem livremente imaginar tais possibilidades. Eles também podem admitir que se extraterrestres brilhantes existirem, o conteúdo da Bíblia e do Corão lhes será menos impressionante do que são para os humanos ateus.

Do ponto de vista ateu, as religiões do mundo banalizam completamente a real beleza e imensidão do universo. Não é preciso aceitar nada com base em provas insuficientes para fazer tal observação.

9) Ateus ignoram o fato de que as religiões são extremamente benéficas para a sociedade.

Aqueles que enfatizam os bons efeitos da religião nunca parecem perceber que tais efeitos falham em demonstrar a verdade de qualquer doutrina religiosa. É por isso que temos termos como “wishful thinking” e “autoenganação”. Há uma profunda diferença entre uma ilusão consoladora e a verdade.

De qualquer maneira, os bons efeitos da religião podem ser certamente questionados. Na maioria das vezes, parece que as religiões dão péssimos motivos para se agir bem, quando temos bons motivos atualmente disponíveis. Pergunte a si mesmo: o que é mais moral? Ajudar os pobres por se preocupar com seus sofrimentos, ou ajudá-los porque acha que o criador do universo quer que você o faça e o recompensará por fazê-lo ou o punirá por não fazê-lo?

10) Ateísmo não fornece nenhuma base para a moralidade.

Se uma pessoa ainda não entendeu que a crueldade é errada, não descobrirá isso lendo a Bíblia ou o Corão – já que esses livros transbordam de celebrações da crueldade, tanto humana quanto divina. Não tiramos nossa moralidade da religião. Decidimos o que é bom recorrendo a intuições morais que são (até certo ponto) embutidas em nós e refinadas por milhares de anos de reflexão sobre as causas e possibilidades da felicidade humana.

Nós fizemos um progresso moral considerável ao longo dos anos, e não fizemos esse progresso lendo a Bíblia ou o Corão mais atentamente. Ambos os livros aceitam a prática de escravidão – e ainda assim seres humanos civilizados agora reconhecem que escravidão é uma abominação. Tudo que há de bom nas escrituras – como a regra de ouro, por exemplo – pode ser apreciado por seu valor ético, sem a crença de que isso nos tenha sido transmitido pelo criador do universo.

domingo, 17 de janeiro de 2010

O maior espetáculo da Terra

Daniel Lopes

Fonte: Blog Index
Dizer que o novo livro de Richard Dawkins é uma resposta aos criacionistas é diminuí-lo. Seria como afirmar que O mundo assombrado pelos demônios (1996), do Sagan, é uma mera resposta àqueles que acreditam em abdução em massa ou em aparições da Virgem Maria.

Não estou certo de que os criacionistas mereçam uma resposta. O que eles merecem, sempre, é uma simples pergunta - “Qual a sua alternativa?” -, para diversão geral da nação. É claro que The greatest show on Earth: The evidence for Evolution se ocupa em desmontar argumentos criacionistas - o que na maioria dos casos equivale a ensinar o bê-a-bá da biologia e rudimentos de geologia, física e química -, mas o principal do livro é o encanto que ele causa no leitor, a cada página. E olha que consigo me impressionar com esse livro (não acabei ainda) imediatamente após encerrar os belos ensaios de A Devil’s Chaplain: Reflections on hope, lies, science and love (2003)!

O que Dawkins faz é nos maravilhar com os encantos da evolução das espécies no silêncio dos milhões de anos; nos mostrar nosso grau de parentesco com todos os seres vivos do planeta; descrever pesquisas que comprovam o fato da evolução e de alterações significativas numa espécie e o surgimento de outras, mesmo dentro do tempo de vida médio de uma pessoa (como as pesquisas de John Endler com peixes que “calculam” a relação custo-benefício entre se camuflar demais e não ser predado, e se destacar de menos e não atrair fêmeas, e que, a partir dos “resultados” e do meio em que estão, dão origem a novos tipos de peixes), mesmo em laboratório (caso do estudo de Richard Lenski e equipe com a evolução bacteriana - clique aqui e leia a respeito).

Um livro para fechar com classe este Ano de Darwin. E que felicidade da Cia. das Letras traduzi-lo e publicá-lo com grande rapidez no Brasil - O maior espetáculo da Terra.

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

O ateísmo como militância social

Mário Maestri

Fonte: Revista Espaço Acadêmico, 09/01/2010.
http://espacoacademico.wordpress.com/2010/01/09/o-ateismo-como-militancia-social/

Dentro do respeito às crenças individuais dos homens e das mulheres de bem, a militância ateísta é dever social inarredável, para todos os que se mobilizam pela redenção da humanidade da alienação social, material e espiritual que a submerge crescentemente neste início de milênio, ameaçando a sua própria existência. Por mais subjetiva, introspectiva e sublimada que se apresente, a crença religiosa, jamais nasce, se realiza e se esgota no indivíduo. Ela é fenômeno parido no mundo social, que influencia essencialmente a ação individual e coletiva.

Em forma mais ou menos radical, mais ou menos plena, mais ou menos consciente, a crença religiosa dissocia-se da objetividade material e social. Ela desqualifica o doloroso esforço histórico que permitiu ao ser humano superar sua origem animal e, percebendo a si e à natureza, começar a conhecer as leis imanentes ao mundo, na difícil, necessária e inconclusa luta pela harmonização da existência social.

A crença religiosa nega as crescentes conquistas da racionalidade, da objetividade, da materialidade, da historicidade, encobrindo-as com as espessas sombras da irracionalidade, da subjetividade, do espiritualismo. Desequilibra a difícil luta do ser humano para erguer-se sobre as pernas e moldar o mundo com as mãos, forçando-o a ajoelhar-se novamente, apequenado, temeroso, embasbacado diante do “desconhecido”, sob o peso de alienação socialmente alimentada.

A crença religiosa droga o ser social com suas ilusões infantis de redenção conquistada através da obediência incondicional a estranho super-pai que, em muitas das mais importantes tradições espiritualistas, apesar de onisciente, onipotente e onipresente, e, assim, capaz de tudo dar aos filhos, lançou-os – no singular e no plural – em desnecessária desassistência, miséria e tristeza.

É porque é!

A essência anti-científica da religião, que não argumenta, pois se nutre da crença incondicional no arbitrário, materializa-se na oposição visceral, mais ou menos realizada, ao maior tesouro humano, a capacidade de diálogo e de compreensão tendencial do universo. Que o digam Galileu e Giordano Bruno! Daí sua histórica intolerância, desconfiança e ojeriza para com o pensamento científico. E, verdadeiro tiro no pé, seu constante e paradoxal esforço para afirmar que a ciência seja uma crença a mais.

O pensamento religioso nega e aborta o ativismo e o otimismo racionalistas e materialistas, nascidos da possibilidade de compreensão, domínio e transformação do mundo social e material. Impõe visão pessimista, quietista, introspectiva e infantil do universo, essencialmente petrificado e eternizado pela materialização de transcendência, à qual o homem deve apenas submeter-se e render-se, para merecer a liberação.

Para tais visões, o ativismo e otimismo social são incongruências, ao não haver imperfeição social superável, já que esta última nasce da própria natureza humana, habitada pelo mal e pelo pecado, devido ao desrespeito a interdições primordiais do pai eterno – olha aí ele de novo –, origem do pecado. Pecado que exige incessante expiação e penitência, lançando o ser religioso em triste e mórbido mundo de culpa, de submissão, de punição.

Ativismo e otimismo sociais impensáveis para uma forma de compreender a sociedade em que não há história. Ou o que compreendemos como história se mostra ininteligível, pois regida essencialmente por determinações transcendentais paridas e concluídas à margem das práticas humanas. Realidade à qual, segundo tal visão, podemos ascender, muito limitadamente, apenas através da revelação.

Quando deus mata o homem

Na sua petrificação a-social e a-histórica, um mundo chato, triste, deprimente, infantil, mórbido. Um universo que valoriza a paciência, a submissão, o imobilismo, o quietismo, a humildade, a transcendência, a espiritualidade, etc., valores e comportamentos historicamente explorados pelos opressores, no esforço de manter o mundo imóvel, através de alienação e submissão dos oprimidos, nesta vida, é claro, pois na outra, se sentarão à direita de deus-pai.

O ateísmo militante é necessário ao retrocesso da alienação, enormemente crescente em tempos de vitória da contra-revolução neoliberal. Ele impõe-se na luta por um mundo mais rico, mais pleno, mais livre, mais fraterno, em que o homem seja o amigo, não o lobo do homem. É imprescindível ao esforço de superação da miséria, da tristeza e da dor, materiais e espirituais, nos limites férreos da natureza humana historicamente determinada.

O ateísmo militante é democrático, pois tem como essencial meio de pregação a conscientização, individual e coletiva, da necessidade de assentar as práticas sociais nos valores da humanidade, da racionalidade, da liberdade, da solidariedade, da igualdade. Pregação racionalista e materialista que compreende que a superação da alienação espiritual será materializada plenamente apenas através da superação da alienação social e material.

O que exige intransigente luta política, cultural e ideológica pela defesa dos maltratados valores do laicismo, única base possível para convivência social mínima por sobre crenças religiosas, étnicas, ideológicas, etc. singulares. Laicismo agredido pela despudorada exploração mercantil, política e social, direta ou indireta, por parte das religiões novas e antigas, da crescente anomia popular contemporânea. O monopólio público da educação e da grande mídia televisiva e radiofônica, sob controle democrático, e a ilegalização do escorcho religioso popular direto são pontos programáticos dessa mobilização.

O Céu e o Inferno

O ateísmo militante é pregação de adultos, conscientes do limite e dos perigos de empreitada subversiva, dessacralizadora e mobilizadora, pois voltada para a necessidade do homem de retomar as rédeas de sua vida material e espiritual, no aqui e no agora. É jornada sem esperanças de premiações e de graças, na outra vida e sobretudo nessa, ao contrário do habitual nas religiões oferecidas como vias expressas para o sucesso individual, no rentável balcão da exploração da alienação.

O racionalismo militante é caminho difícil que premia os que nele perseveram com a experiência, mesmo fugidia, com o que há de melhor nos seres humanos, a racionalidade, a solidariedade, a fraternidade. Sentimentos e práticas vividos em forma direta, sem tabelas, pois a única ponte que liga os homens são as lançadas entre os próprios homens, construídos pela história à imagem e semelhança dos homens.

A vida racional é aventura recompensada sobretudo pelo inebriante desvelamento do encoberto pela ignorância e irracionalidade e pelo equilíbrio obtido na procura da harmonia social, por mais difícil e limitada que seja. Trata-se de caminho que permite, sem sonhar nem crer, seguir decifrando, alegre e desvairadamente, esse mundo crescentemente encantado e terrível. Viagem por esta vida terrena, valiosa, breve e única, sempre apoiada na lembrança de que, diante das penas e tristezas, não se há de se rir ou chorar, mas sobretudo entender, para poder transformar.

Uma experiência de vida que, mesmo bordejando não raro o inferno, ou sendo elevado fugidamente aos reinos dos céus, sabe-se que tudo se passa e se conclui nesse mundo, concreto, terrivelmente triste e belo, sobre o qual somos plena, total, sem desculpas e irremediavelmente responsáveis.

sexta-feira, 25 de abril de 2008

Carta de deus

María Luisa Alba Bustos

Fonte:
Sociedade da Terra Redonda
http://www.str.com.br/

Prezado e temido Homem Todo-Poderoso:

Me dirijo a você para fazer-lhe chegar uma prece que espero poder ser atendida por sua parte. Certamente você já ouviu falar de mim, sou Deus, esse ser que os seus criaram há muitos, muitíssimos anos, quando apenas a sua espécie se distinguia do resto dos animais. Quando o desconhecimento, o temor, o desejo de proteção e a ignorância fazia-lhes tão vulneráveis como qualquer outro animal.

Criaram-me vocês à sua imagem e semelhança, enfeitado com todos os seus defeitos e virtudes, naqueles tempos primitivos até era divertido ser Deus, quero dizer, deuses, porque eram demasiadas as suas necessidades para criar um só Deus.

Criaram-me, mas criaram-me escravo das suas crenças e necessidades. Imaginaram-me sob distintas formas e atributos. Cada novo crente atava-me, e segue me atando, com as suas correntes exigindo de mim ajuda para aliviar a sua dor e ignorância.

Criaram-me, criaram-nos quando ainda não compreendiam o mundo que lhes rodeia e as leis que o regem. Quando ignoravam que podiam existir leis que regem o mundo e o universo. Por isso me criaram, nos criaram tão disparatados, nos criaram em arranjo a suas próprias fantasias e temores. Tão disparatado como só a mente de uma criança pode criar um ser inventado para que lhe ajude.

A minha história Senhor é muito triste, utilizaram-me como justificativa para todos os excessos e egoísmos próprios da sua espécie.

Utilizaram-me para justificar seus confrontos, para justificar o poder que alguns homens atribuíam para si mesmos, para que uns homens dominassem outros, para impor suas normas e suas crenças dizendo que provinham de mim. Para que uns homens se proclamassem portavozes da minha vontade desqualificando, no meu nome, todos aqueles que não acreditassem nas suas palavras.

Desde o primeiro momento vocês criaram guerras entre nós para justificar seus interesses.

Utilizaram-nos para justificar seus desejos de conquista, para vencer o adversário, para submetê-lo.

Utilizaram-nos para justificar a imensidão de mortos, feridos, torturados que essas guerras geraram e geram.

Utilizaram-nos para justificar seus ódios, sua voracidade, seus desejos de vingança.

Não creio que haja maldade na qual vocês não tenham invocado o meu nome.

Creio Homem, que não houve ocasião na sua história pessoal e coletiva onde não se tenha invocado o meu nome, ou nossos nomes, para defender seus interesses manifestos e ocultos.

No meu nome, nos nossos nomes tem se cometido e seguem se cometendo uma infinidade de carnificinas, crimes e atrocidades que não tem outra justificativa senão seus próprios interesses.

Sob a aparência de seres infinitamente poderosos não somos mais do que escravos das suas crenças, criaram-nos escravos e escravos seguimos, e assim seguiremos enquanto não nos libertarem dessas correntes que a vocês parecem justas, acreditando que nos elogiam e que gostamos.

São as mesmas correntes com que os poderosos da sua espécie atam vocês quando dizem que interpretam a nossa vontade, as nossas palavras e os nossos desejos.

A sua espécie, Homem, tem avançado muito, não tanto como deveria porque em nosso nome também se tem procurado deter o avanço da sua espécie, se tem forjado mentiras imensas, espantosas, horríveis falsidades destinadas a deter o avanço da sua espécie, se tem matado e destruído aqueles homens e obras que abriam brechas nas muralhas da ignorância.

Apesar de tudo avançou o suficiente para que não necessite mais acreditar em seres mágicos criados pela sua imaginação há muito, muitíssimo tempo.

Apesar de tudo sabe hoje que o mundo, o universo rege-se por leis que permanecem ocultas, não por minha vontade, não por nossa vontade.

Ainda falta-lhes muito para descobrir as várias leis que permanecem ocultas, mas sabem que essas leis existem, embora não as conheçam.

Já não tem necessidade de nós, já não tem necessidade de seres mágicos que guiem seus passos na escuridão e na ignorância.

Tomem nas suas mãos as rédeas do seu destino, averigüem as leis que regem tudo e me deixem, nos deixem descansar em paz.

Não me usem para justificar suas ambições, seus desejos, seus interesses, seus excessos ou suas atrocidades. Por isso Homem Todo-Poderoso te dirijo esta carta te rogando que me liberes das tuas correntes, das tuas crenças, da tua ignorância e dos teus medos.

Cada vez que sintas tentação de crer em mim te pergunta quem tem criado quem, se deus ao homem, ou homem à deus?

Por isso Senhor, Homem Todo-Poderoso, te peço, me libera dessa escravidão a que me tens submetido, deixa que me dissolva no nada de onde um dia me criaste, nos criaste, à tua imagem e semelhança.

sexta-feira, 28 de março de 2008

Deus

André Comte-Sponville
(Nasceu em Paris, em 1952, é professor-doutor da Université Paris I)
COMTE-SPONVILLE, André. Apresentação da filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2002. pg.77-87.

Crer num deus significa ver que a vida tem um sentidoLudwig Wittgenstein

Não sabemos se Deus existe. É por isso que se coloca a questão de crer em Deus ou não.

“Limitar o saber”, dizia Kant, “para abrir espaço para a fé.” Mas é que o saber é limitado de fato: não apenas porque nunca conheceremos tudo, é claro, mas porque o essencial sempre nos escapa. Ignoramos tanto as causas primeiras como os fins. Por que há alguma coisa em vez de nada? Não sabemos. Nunca saberemos. Por quê (com que fim)? Também não sabemos, nem sequer se há um fim. Mas se é verdade que nada nasce de nada, a simples existência de alguma coisa - o mundo, o universo - parece implicar que sempre houve alguma coisa: que o ser é eterno, incriado, talvez criador, e é o que alguns chamam de Deus.

Existiria desde sempre? Ou antes, fora do tempo, criando a este como cria todas as coisas? Que fazia Deus antes da criação? Não fazia nada, responde santo Agostinho, mas é que na verdade não havia antes (já que todo “antes” supõe o tempo): havia só o “perpétuo hoje” de Deus, que não é um dia (que sol para medi-lo, se todo sol dele depende?), nem uma noite, mas que precede e contém cada dia, cada noite que vivemos, que viveremos, como também todos e todas que, incontáveis, ninguém viveu. Não é a eternidade que é no tempo; o tempo é que é na eternidade. Não é Deus que é no universo; o universo é que é em Deus. Acreditar nisso? Parece o mínimo. Nada, sem esse ser absolutamente necessário, teria razão de existir. Como ele não existiria?

Deus está fora do mundo, como sua causa e seu fim. Tudo vem dele, tudo está nele (“é nele que temos o ser, o movimento e a vida”, dizia São Paulo), tudo tende a ele. Ele é o alfa e o ômega do ser: o Ser absoluto - absolutamente infinito, absolutamente perfeito, absolutamente real - sem o qual nada de relativo poderia existir. Por que existe alguma coisa em vez de nada? Porque Deus.

Dirão que isso não suprime a questão (por que Deus em vez de nada?), o que é verdade. Mas Deus seria esse Ser que responde - ele mesmo, por si mesmo, em si mesmo - a questão da sua própria existência. Ele é causa de si, como dizem os filósofos, e esse mistério (como um ser pode causar a si mesmo?) faz parte da definição. “Entendo por causa de si aquilo cuja essência envolve a existência”, escreve Spinoza, “em outras palavras, aquilo cuja natureza não pode ser concebida a não ser como existente.” Isso só vale para Deus: isso é Deus mesmo. Pelo menos o Deus dos filósofos. “Como Deus entra na filosofia?”, pergunta-se Heidegger. Como causa de si responde: “O ser do ente, no sentido do fundamento, só pode ser concebido como causa sui. Isso é nomear o conceito metafísico de Deus.” A esse Deus, acrescenta Heidegger, “o homem não pode nem rogar nem sacrificar.” Mas nenhuma prece, nenhum sacrifício, sem ele, seria filosoficamente pensável. O que é Deus? É o ser absolutamente necessário (causa de si), absolutamente criador (causa de tudo). absolutamente absoluto (não depende de nada, tudo depende dele): é o Ser dos seres, e o fundamento de todos.

Ele existe? Existe por definição, sem que, no entanto, possamos tomar sua definição como prova.

É o que há de fascinante e, ao mesmo tempo, de irritante na famosa prova ontológica que perpassa - pelo menos de santo Anselmo a Hegel - toda a filosofia ocidental. Como definir Deus? Como o ser supremo (santo Anselmo: “o ser tal que nada maior pode ser pensado”), o ser soberanamente perfeito (Descartes), o ser absolutamente infinito (Spinoza, Hegel). Ora, se ele não existisse, não seria nem o maior nem realmente infinito - e alguma coisa faltaria, é o mínimo que se pode dizer, à sua perfeição. Ele existe, pois, por definição: pensar Deus (concebê-lo como supremo, perfeito, infinito...) é pensá-lo como existente. “A existência não pode ser separada da essência de Deus” escreve Descartes, “do mesmo modo que, da essência de um triângulo retilíneo, a grandeza de seus três ângulos iguais a dois ângulos retos, ou da idéia de uma montanha, a idéia de um vale; de sorte que não há menos repugnância em conceber um Deus (isto é, um ser soberanamente perfeito) a que falte a existência (isto é, a que falte a perfeição) do que em conceber uma montanha que não tenha vale.” Dirão que isso não prova que montanhas e vales existem... Certamente, responde Descartes, mas sim que montanhas e vales não podem se separar umas dos outros. O mesmo ocorre, tratando-se de Deus: sua existência é inseparável da sua essência, inseparável dele, portanto, e é por isso que ele existe necessariamente. O conceito de Deus, escreverá Hegel, “inclui nele o ser”: Deus é o único ser que existe por essência.

Está claro que essa prova ontológica não prova nada, senão todos seríamos crentes, o que a experiência basta para desmentir, ou idiotas, o que ela não basta para atestar. Aliás, como uma definição poderia provar o que quer que seja? Seria o mesmo que pretender enriquecer definindo a riqueza... Cem francos reais não contêm nada mais que cem francos possíveis, nota Kant; mas sou mais rico com cem francos reais “do que com seu simples conceito ou possibilidade”. Não basta definir uma soma para possuí-la. Não basta definir Deus para prová-lo. Aliás, como poderíamos demonstrar por conceitos uma existência? O mundo, parece, é um argumento melhor (não mais a priori mas a posteriori, e é isso que a prova cosmológica significa.

De que se trata? Da aplicação do princípio de razão suficiente ao próprio mundo. “Nenhum fato”, escreve Leibniz, “poderia ser verdadeiro ou existente, nenhuma enunciação poderia ser verdadeira, sem que houvesse uma razão suficiente para que seja assim e não de outro modo.” Equivale a dizer que tudo o que existe deve poder, pelo menos de direito, ser explicado - mesmo que fôssemos incapazes de fazê-lo. Ora, o mundo existe, mas sem poder se explicar (ele é contingente: poderia não existir). Portanto, para explicar sua existência, é preciso lhe supor uma causa. Mas se essa causa também fosse contingente, deveria por sua vez ser explicada por outra, e assim infinitamente, de tal modo que a serie inteira das causas - logo, o mundo - pareceria inexplicada. Assim, para explicar o conjunto dos seres contingentes (o mundo), é necessário supor um ser absolutamente necessário (Deus). “A última razão das coisas”, continua Leibniz, “deve estar numa substância necessária, na qual o detalhe das mudanças só exista eminentemente, como na fonte; é a isso que chamamos Deus.” Para dizer com outras palavras: Se o mundo, então Deus; ou: o mundo, logo Deus.

Essa prova a contingentia mundi (pela contingência do mundo), tal como Leibniz a formula (mas também era o argumento de Tomás de Aquino e, já, em certo sentido, de Aristóteles), é a meus olhos o argumento mais forte, o mais perturbador, o único que às vezes me faz vacilar. A contingência é um abismo em que perdemos o pé. Como seria ele sem fundo, sem causa, sem razão?

A prova cosmológica vale, porém, tanto quanto o princípio de razão. Ora, como um princípio, nesses domínios, poderia provar o que quer que seja? Querer provar Deus pela contingência do mundo continua sendo passar de um conceito (o de causa necessária) a uma existência (a de Deus), e é por isso que, como observava Kant, essa prova cosmológica se reduz, na verdade, à prova ontológica. Por que nossa razão seria a norma do ser? Como teríamos certeza absoluta do seu valor, do seu alcance, da sua confiabilidade? Somente um Deus poderia garanti-las. É o que impede de demonstrar racionalmente que ele existe: já que, para garantir a verdade dos nossos raciocínios, seria necessário pressupor a existência desse mesmo Deus, que se trata de demonstrar. Só escapamos do abismo para cair num círculo: é passar de uma aporia a outra.

Sobretudo, essa prova cosmológica só provaria, no melhor dos casos, a existência de um ser necessário. Mas o que nos garante que esse ser é, no sentido ordinário do termo, um Deus? Poderia ser a Natureza, como queria Spinoza, em outras palavras, um ser eterno e infinito, claro, mas sem nenhuma subjetividade ou personalidade: um ser sem consciência, sem vontade, sem amor, e ninguém veria nele um Deus aceitável. De que adianta rogar a ele, se ele não nos escuta? De que adianta obedecer, se ele não nos pede nada? De que adianta amá-lo, se ele não nos ama?

Donde, talvez, a terceira das grandes provas tradicionais da existência de Deus: a prova físico-teológica, que eu preferiria chamar de prova físico-teleológica (do grego telos: o fim, a finalidade). O mundo seria ordenado demais, harmonioso demais, evidentemente finalizado demais, para que se possa explicá-lo sem supor, na sua origem, uma inteligência benevolente e organizadora. Como o acaso poderia fabricar um mundo tão bonito? Como poderia explicar o aparecimento da vida, sua incrível complexidade, sua evidente teleonomia? Se encontrassem um relógio num planeta qualquer ninguém poderia acreditar que ele se explicasse unicamente pelas leis da natureza: qualquer um veria nele o resultado de uma ação inteligente e deliberada. Ora, qualquer ser vivo é infinitamente mais complexo do que o relógio mais sofisticado. Como é que o acaso, que não poderia explicar este, explicaria aquele?

Os cientistas responderão, quem sabe, um dia. Mas desde já é impressionante constatar que esse argumento que foi por muito tempo o mais popular, o mais imediatamente convincente (já era o argumento de Cícero, será o de Voltaire e o de Rousseau), perdeu, hoje, boa parte da sua evidência. É que a harmonia se fende - quantos acasos no universo, quantos horrores no mundo! - e o que dela resta se explica cada vez melhor (pelas leis da natureza, pelo acaso e a necessidade, pela evolução e a seleção das espécies, pela racionalidade imanente de tudo...). Não há relógio sem relojoeiro, diziam Voltaire e Rousseau. Mas que relógio ruim o que contém terremotos, furacões secas, animais carnívoros, um sem-número de doenças - e o homem! A natureza é cruel, injusta, indiferente. Como ver nela a mão de Deus? É o que se chama, tradicionalmente, o problema do mal. Fazer dele um mistério, como faz a maioria dos crentes, é reconhecer-se incapaz de resolvê-lo. A prova fisico-teológica fica, por conseguinte, amputada do essencial do seu alcance. Sofrimentos demais (e muito antes da existência da humanidade: os bichos também sofrem), carnificinas demais, injustiças demais. A vida é uma maravilha de organização? Sem dúvida. Mas também um acúmulo aterrador de tragédias e de horrores. Milhões de espécies animais se alimentando com milhões de outras criam, para a biosfera, uma espécie de equilíbrio. Mas à custa, para os viventes, de quantas atrocidades? Os mais aptos sobrevivem; os outros desaparecem. Isso realiza, para as espécies, uma sorte de seleção. Mas à custa, para os indivíduos, de quantas dores e injustiças? A história natural não é nem um pouco edificante. A história humana também não. Que Deus após Darwin? Que Deus após Auschwitz?

A prova ontológica, a prova cosmológica, a prova físico-teológica... São as três grandes “provas” tradicionais da existência de Deus, que eu não podia deixar de evocar neste capítulo. No entanto forçoso é reconhecer que elas não provam nada, como Kant mostrou suficientemente, e como Pascal, antes dele, reconhecera. Isso não impedia esses dois gênios de acreditar em Deus, ou antes, é o que fazia da crença deles o que ela é: uma fé, não um saber; uma graça ou uma esperança, não um teorema. Eles acreditavam ainda mais em Deus por terem renunciado a demonstrar sua existência. Sua fé era tanto mais viva, relativamente, por se saber objetivamente inverificável.

Hoje é a regra geral. Não conheço filósofos contemporâneos que se interessem por essas provas por motivos que não sejam históricos, nem crentes que se fiem nelas. Provas? Se houvesse, para que a fé? Um Deus que se poderia demonstrar seria um Deus?

Isso não impede de refletir sobre elas, de examinar essas provas, nem de inventar outras. Poderíamos, por exemplo, conceber outra prova puramente panteísta (do grego to pan: o tudo) da existência de Deus. Chamemos Deus ao conjunto de tudo o que existe: ele existe, portanto, mais uma vez, por definição (o conjunto de tudo o que existe, existe necessariamente). E daí, se isso não nos diz nem o que ele é nem o que ele vale? O universo só faria um Deus plausível se pelo menos ele pudesse acreditar nesse Deus. É o que acontece? “Deus é a consciência de si do Todo”, diz meu amigo Marc Wetzel. Pode ser. Mas o que nos prova que o Todo tem uma consciência?

Todas essas provas têm em comum provar ao mesmo tempo demais e muito pouco. Mesmo que demonstrassem a existência de algo necessário, absoluto, eterno, infinito, etc., fracassariam em provar que esse algo é um Deus, no sentido em que o entendem a maioria das religiões: não apenas um ser mas uma pessoa, não apenas uma realidade mas um sujeito, não apenas algo mas alguém - não apenas um Princípio mas um Pai.

É também essa a fraqueza do deísmo, que é uma fé sem culto e sem dogmas. “Creio em Deus”, escreve-me uma leitora, “mas não no Deus das religiões, que são humanas e nada mais. O verdadeiro Deus é desconhecido...” Muito bem. Mas se não o conhecemos, como saber que é Deus?

Crer em Deus supõe conhecê-lo, pelo menos um pouco, o que só é possível por razão, revelação ou graça. Mas a razão, cada vez mais, se confessa incompetente. Restam pois a revelação e a graça: resta portanto a religião... Qual? Pouco importa aqui, já que a filosofia não tem nenhum meio de arbitrar entre elas. O Deus dos filósofos importa menos, para a maioria de nós, que o Deus dos profetas, dos místicos ou dos crentes. Pascal e Kierkegaard, melhor que Descartes ou Leibniz, disseram o essencial: Deus é objeto de fé, mais que de pensamento, ou antes, ele não é objeto nenhum mas sujeito, absolutamente sujeito, e só se oferece no encontro ou no amor. Pascal, numa noite de fogo, acreditou experimentá-lo: “Deus de Abraão, Deus de Isaac, Deus de Jacó, não dos filósofos e dos sábios. Certeza, sentimento, alegria, paz. Deus de Jesus Cristo... Alegria, alegria, alegria, prantos de alegria.” Isso não é uma demonstração. Mas nenhuma demonstração, sem essa experiência, bastaria para a fé.

É aí, talvez, que a filosofia se detém. Para que demonstrar o que se encontra? Como provar o que não se encontra? O ser não é um predicado, Kant tem razão nesse ponto, e é por isso que, já dizia Hume, não é possível nem demonstrar nem refutar uma existência. O ser é mais constatável do que demonstrável; ele se submete à prova e dele não se dá prova.

Dirão que a experiência prova. Que nada, porque, neste caso, ela não é nem reiterável, nem verificável, nem mensurável, nem mesmo absolutamente comunicável... A experiência não prova nada, já que há experiências falsas ou ilusórias. Uma visão? Um êxtase? As drogas também os proporcionam. E o que prova uma droga? Quem vê Deus, como saber se vê ou se alucina? Quem o ouve, como saber se o escuta ou se o faz falar? Quem sente sua presença, seu amor, sua graça, como saber se os percebe ou fantasia? Não conheço crente que tenha mais certeza na verdade da sua fé do que tenho na dos meus sonhos, quando durmo. Basta dizer que uma certeza, na medida em que permanece puramente subjetiva, não prova nada. É o que se chama fé: “uma crença que só subjetivamente é suficiente”, escreve Kant, e que por isso não pode ser imposta - nem teórica nem praticamente - a ninguém.

Em outras palavras, Deus é menos um conceito que um mistério, menos um fato que uma questão, menos uma experiência que uma aposta, menos um pensamento que uma esperança. Ele é o que convém supor para escapar do desespero (é essa a função, em Kant, dos postulados da razão prática), e é por isso que a esperança, tanto quanto a fé, é uma virtude teologal - porque ela tem Deus mesmo como objeto. “O contrário de desesperar é crer”, escreve Kierkegaard: Deus é o único ser capaz de satisfazer absolutamente nossa esperança.

Que isso, mais uma vez, não prova nada, é o que cumpre reconhecer, para terminar: a esperança não é um argumento, pois, como dizia Renan, é possível que a verdade seja triste. Mas que valem os argumentos que não deixam nada a esperar?

O que esperamos? Que o amor seja mais forte que a morte, como diz o Cântico dos cânticos, mais forte que o ódio, mais forte que a violência, mais forte que tudo, e só isso seria Deus, verdadeiramente: o amor onipotente, o amor que salva, e o único Deus absolutamente amável - porque seria absolutamente amante. É o Deus dos santos e dos místicos: “Deus é amor”, escreve Bergson, “e é objeto de amor: toda a contribuição do misticismo está aí. Desse duplo amor o místico nunca terminará de falar. Sua descrição é interminável, porque a coisa a descrever é inexprimível. Mas o que ela diz claramente é que o amor divino não é algo de Deus: é Deus mesmo.”

Objetarão que esse Deus é menos uma verdade (o objeto de um conhecimento) que um valor (o objeto de um desejo). Sem dúvida. Mas acreditar nele é acreditar que esse valor supremo (o amor) também é a verdade suprema (Deus). Isso não pode ser demonstrado. Isso não pode ser refutado. Mas isso pode ser pensado, esperado, acreditado. Deus é a verdade que constitui norma - a conjunção do Verdadeiro e do Bem -, e a norma, a esse título, de todas as verdades. O desejável e o inteligível, nesse nível supremo, são idênticos, explicava Aristóteles, e é essa identidade, se é que ela existe, que é Deus. Como dizer melhor que somente ele poderia nos saciar ou nos consolar absolutamente? “Somente um Deus poderia nos salvar”, reconhecia Heidegger. Portanto, é crer nele ou renunciar à salvação.

É por isso que Deus faz sentido, notemos para concluir, e proporciona sentido: primeiro porque todo sentido, sem ele, vem se chocar contra a insensatez da morte; depois porque só existe sentido para um sujeito e, por conseguinte, só existe sentido absoluto para um sujeito absoluto. Deus é o sentido do sentido, e o contrário, por isso, do absurdo ou do desespero.

Deus existe? Não podemos saber. Deus seria a resposta à questão do ser, à questão do verdadeiro, à questão do bem, e essas três respostas - ou essas três pessoas... - não seriam mais que uma.

Mas o ser não responde: é o que chamamos de mundo.
Mas o verdadeiro não responde: é o que chamamos de pensamento.
O bem? Ele ainda não responde, e é o que chamamos de esperança.

sábado, 23 de fevereiro de 2008

Da impossibilidade de uma prova cosmológica da existência de Deus

Immanuel Kant
Crítica da razão pura
Tradução: Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão
Edição: Fundação Calouste Gulbenkian, 5. ed, Lisboa, 2001.

Pretender extrair de uma idéia, traçada com total arbitrariedade, a própria existência do objeto correspondente, era totalmente contrário à natureza e uma pura inovação do espírito escolástico. Com efeito, nunca se teria tentado esta via, se a razão não tivesse previamente sentido a necessidade de admitir algo necessário para a existência em geral (onde se pudesse parar na ascensão) e se, pelo fato desta necessidade ter de ser incondicionada e certa a priori, a razão não fosse obrigada a procurar um conceito que, na medida do possível, satisfizesse uma tal exigência e desse a conhecer uma existência, completamente a priori. Julgou-se encontrar esse conceito na idéia de um Ser realíssimo e, se foiutilizada esta idéia, foi somente para obter um conhecimento mais determinado de uma coisa de que já se estava, aliás, convencido ou persuadido que devia existir, ou seja, do ser necessário. Contudo, dissimulou-se este curso natural da razão e, em vez de terminar neste conceito, tentou-se começar por ele, para dele derivar a necessidade da existência que ele se destinava unicamente a completar. Daí surgiu a malograda prova ontológica, que nada tem de satisfatório, nem para o são entendimento natural, nem para sustentar um exame científico.

A prova cosmológica, que vamos agora examinar, mantém a ligação da necessidade absoluta com a realidade suprema; mas, em vez de partir, como a precedente, da realidade suprema, para deduzir a necessidade na existência, conclui da necessidade incondicionada e previamente dada, de qualquer ser, a sua realidade ilimitada e, deste modo, tudo encaminha por um raciocínio, não sei se racional se sofístico, mas que é, pelo menos, natural e que possui a maior força persuasiva, não só para o entendimento comum, mas também para o entendimento especulativo; e desta maneira traça visivelmente as primeiras linhas diretrizes de todos os argumentos da teologia natural, linhas que sempre foram seguidas e hão de sê-lo sempre, por muito que_ se adornem e disfarcem sob floreados e arrebiques. Esta prova, a que Leibniz deu também o nome de prova a contingentia mundi, é a que vamos agora expor e submeter a exame.

Formula-se assim: se algo existe deve existir também um ser absolutamente necessário. Ora, pelo menos, existo eu próprio; logo, existe um ser absolutamente necessário. A premissa menor contém uma experiência e a maior infere de uma experiência em geral a existência do necessário*. A prova parte, pois, da experiência; não é, por conseguinte, conduzida totalmente a priori ou ontologicamente; e, porque o objeto de toda a experiência possível se chama mundo, denomina-se prova cosmológica. Como também abstrai de todas as propriedades particulares dos objetos da experiência, pelas quais este mundo se distingue de qualquer outro mundo possível, distingue-se já, na sua designação, da prova físicoteológica, que utiliza, como argumentos, observações acerca da constituição particular . deste nosso mundo dos sentidos.

Mas a prova prossegue e conclui que o ser necessário só pode ser determinado de uma única maneira, isto é, só mediante um dos predicados de entre todos os predicados opostos possíveis e, por conseguinte, deverá ser integralmente determinado pelo seu conceito. Ora, só pode haver um único conceito de coisa que determine integralmente a priori esta coisa, ou seja, o conceito de ens realissimum; portanto, o conceito do ser soberanamente real é o único pelo qual pode ser pensado um ser necessário, isto é, existe necessariamente um Ser supremo.

Neste argumento cosmológico reúnem-se tantos princípios sofísticos, que a razão especulativa parece ter aqui desenvolvido toda a sua arte dialética a fim de produzir a máxima aparência transcendental possível. Vamos, no entanto, afastar por um momento o seu exame, para só pôr em evidência o artifício pelo qual apresenta, disfarçado de novo, um velho argumento, invocando o acordo de dois testemunhos, dos quais um é o da razão pura e o outro o de confirmação empírica, quando afinal é só o primeiro que muda o trajo e a voz para ser tomado pelo segundo. Para bem assegurar o seu fundamento esta prova estriba-se na experiência, dando assim a impressão de se distinguir da prova ontológica, que deposita toda a confiança em meros conceitos puros a priori. Mas a prova cosmológica só se serve desta experiência para dar um único passo, a saber, para se elevar à existência de um ser necessário em geral. O fundamento empírico da prova nada nos pode ensinar acerca dos atributos deste ser; então a razão afasta-se dele inteiramente e, por detrás de simples conceitos, investiga os atributos que um ser absolutamente necessário em geral deve possuir; ou seja, um ser que, entre todas as coisas possíveis, encerra as condições requeridas (requisita) para uma necessidade absoluta. Julga então encontrar estes requisitos unicamente no conceito de um ser soberanamente real e logo conclui: é este o ser absolutamente necessário. Mas, é claro, pressupõe-se aqui que o conceito de um ser dotado da realidade suprema satisfaz plenamente o conceito da necessidade absoluta na existência, ou seja, que este se conclui daquele; eis uma proposição, sustentada pelo argumento ontológico, que assim se admite e se dá por fundamento ao argumento cosmológico, o que afinal se pretendera evitar. Com efeito, a necessidade absoluta é uma existência extraída de simples conceitos. Se digo, então, que o conceito de ens realissimum é um desses conceitos e o único que é conforme e adequado à existência necessária, também tenho que concordar que esta se poderia inferir dele. Portanto, na chamada prova cosmológica, só a prova ontológica a partir de puros conceitos contém propriamente toda a força demonstrativa e a suposta experiência é totalmente inútil, servindo talvez somente para nos conduzir ao conceito de necessidade absoluta, mas não para nos mostrar essa necessidade em qualquer coisa determinada. Com efeito, sendo esta a nossa intenção, temos de abandonar toda a experiência e procurar entre conceitos puros qual deles contém as condições da possibilidade de um ser absolutamente necessário. Mas, deste modo, basta compreender-se a possibilidade de tal ser, para logo se demonstrar a sua existência; o mesmo é dizer que entre todo o possível há um ser que tem implícita a necessidade absoluta, isto é, que este ser existe de modo absolutamente necessário.

Tudo o que há de falacioso no raciocínio descobre-se muito facilmente, reduzindo os seus argumentos à forma escolástica. É o que vamos fazer.

Se é certa a proposição: Todo o ser absolutamente necessário é, ao mesmo tempo, soberanamente real (o que é o nervus probandi da prova cosmológica), deverá poder converter-se, como todos os juízos afirmativos, pelo menos per accidens; portanto: Alguns seres soberanamente reais são, ao mesmo tempo, seres absolutamente necessários. Ora um ens realissimum, não se distingue de outro ens realissimum em coisa alguma e o que vale em relação a alguns seres, englobados neste conceito, vale também em relação a todos. Por conseguinte, também (neste caso) poderei converter absolutamente a proposição, dizendo: Todo o ser soberanamente real é um ser necessário. Como esta proposição é determinada a priori unicamente pelos seus conceitos, o simples conceito de ser soberanamente real tem de conter, implicitamente, a necessidade absoluta desse ser. É o que a prova ontológica afirmava e a cosmológica não queria admitir, muito embora seja o fundamento das suas conclusões, se bem que de uma maneira oculta.

Assim, pois, a segunda via que segue a razão especulativa para demonstrar a existência do Ser supremo não só é tão enganadora como a primeira, mas, além disso, incorre no erro de cometer uma ignoratio elenchi, prometendo levar-nos por outro caminho e fazendo-nos regressar, após pequeno rodeio, ao antigo, que por sua causa abandonáramos.

Ainda há pouco disse que neste argumento cosmológico se ocultava todo um ninho de pretensões dialéticas, que a crítica transcendental facilmente pode descobrir e destruir. Vou limitar-me a citá-las, por agora, e deixo ao leitor já exercitado a tarefa de investigar e anular esses princípios ilusórios.

Aí se encontra por exemplo: 1. o princípio transcendental que do contingente nos faz inferir uma causa, princípio que só tem significado no mundo sensível, mas que já não tem sentido fora desse mundo. Com efeito, o conceito puramente intelectual do contingente não pode produzir nenhuma proposição sintética como a da causalidade, e o princípio desta só no mundo sensível encontra significação e critério para a sua aplicação; aqui, porém, deveria precisamente servir para sair do mundo sensível. 2. O raciocínio que consiste em concluir, da impossibilidade de uma série infinita de causas sobrepostas dadas no mundo sensível, uma causa primeira; o que nem os princípios do uso da razão autorizam na própria experiência, quanto mais tornar extensivo este princípio para além dela (até onde esta cadeia não pode prolongar-se). 3. A falsa satisfação da razão consigo mesma em relação ao acabamento desta série, em virtude de pôr enfim de lado toda a condição, sem a qual todavia não pode ter lugar nenhum conceito de necessidade; como então nada mais se pode compreender, considera-se isto como o acabamento do seu conceito. 4. A confusão da possibilidade lógica de um conceito de toda a realidade reunida (sem contradição interna) com a possibilidade transcendental; ora esta última, para operar uma síntese desse gênero, requer um princípio que, por sua vez, só pode aplicar-se no campo das experiências possíveis, etc.

O artifício da prova cosmológica tem a finalidade única de evitar a prova que pretende demonstrar a priori a existência de um ser necessário, mediante simples conceitos, prova que deve-ria ser estabelecida ontologicamente, coisa de que nos sentimos completamente incapazes. Com essa intenção concluímos, tanto quanto é possível, de uma existência real que se põe como fundamento (de uma experiência em geral), uma condição absolutamente necessária dessa existência. Não temos, pois, necessidade de explicar a sua possibilidade. Pois, se está provado que ela existe, é inútil o problema da sua possibilidade. Se queremos agora determinar, de uma maneira mais precisa, na sua essência, este ser necessário, não procuramos aquilo que é suficiente para compreender, pelo seu conceito, a necessidade da existência; pois que se pudéssemos fazê-lo não teríamos necessidade de nenhum pressuposto empírico; não, nós procuramos apenas a condição negativa (conditio sine qua non) sem a qual um ser não seria absolutamente necessário. Ora, isto seria viável em qualquer espécie de raciocínios que remontam de uma conseqüência dada ao seu princípio; porém, aqui, infelizmente, a condição que se exige para a necessidade absoluta só pode ser encontrada num ser único que, por conseguinte, deveria conter no seu conceito tudo o que se requer para a necessidade absoluta e que, portanto, possibilita uma conclusão a priori de esta necessidade; isto é, deveria também poder concluir-se, reciprocamente, que a coisa, à qual este conceito (da realidade suprema) convém, é absolutamente necessária, e se não posso concluir assim (o que terei de confessar, se quiser evitar a prova ontológica), esta nova via é também um malogro e novamente me encontro no ponto de onde parti. O conceito do Ser supremo satisfaz, certamente, a priori, todas as questões que se podem pôr quanto às determinações internas de uma coisa e é, também, por esse motivo, um ideal ímpar, porque o conceito geral o designa, ao mesmo tempo, como um indivíduo entre todas as coisas possíveis. Mas não satisfaz à questão que se refere à sua própria existência, que era afinal a única que importava; e a quem tenha admitido a existência de um ser necessário e só pretenda saber qual dentre todas as coisas deverá ser considerada como tal, não se lhe poderá responder: eis aqui o ser necessário.

Bem pode ser permitido admitir a existência de um ser soberanamente suficiente como causa de todos os efeitos possíveis, para facilitar à razão a unidade dos princípios explicativos que procura. Porém, chegar ao extremo de dizer que tal ser existe necessariamente, não é já a modesta expressão de uma hipótese permitida, mas a pretensão orgulhosa de uma certeza apodítica; porque o conhecimento do que se afirma como absolutamente necessário deve também comportar uma absoluta necessidade.

Todo o problema do ideal transcendental consiste em encontrar para a necessidade absoluta um conceito ou para o conceito de uma coisa a absoluta necessidade dessa coisa. Se um dos casos for possível também o outro deverá sê-lo, pois que a razão só reconhece como absolutamente necessário o que seja necessário pelo seu conceito. Porém, ambas as coisas não só excedem totalmente todos os esforços que podemos tentar para satisfazer o nosso entendimento, quanto a este ponto, mas também todas as tentativas para o tranqüilizar quanto a esta incapacidade.

A necessidade incondicionada de que tão imprescindivelmente carecemos, como suporte último de todas as coisas é o verdadeiro abismo da razão humana. A própria eternidade, por mais terrivelmente sublime que um Haller a possa descrever, está longe de provocar no espírito esta impressão de vertigem, porquanto apenas mede a duração das coisas, mas não as sustenta. Não podemos afastar nem tão-pouco suportar o pensamento de que um ser, que representamos como o mais alto entre todos os possíveis, diga de certo modo para consigo: Eu sou desde a eternidade para a eternidade; fora de mim nada existe a não ser pela minha vontade; mas de onde sou então? Eis que tudo aqui se afunda sob os nossos pés, e tanto a maior como a mais pequena perfeição pairam desamparadas perante a nossa razão especulativa, à qual nada custa fazer desaparecer uma e outra sem o menor entrave.

Muitas forças da natureza, que só através de certos efeitos manifestam a sua existência, continuam impenetráveis para nós, porque não podemos segui-las pela observação durante tempo suficiente. O objeto transcendental, que serve de fundamento aos fenômenos, e, a par deste, o princípio pelo qual a nossa sensibilidade está submetida a estas condições supremas e não a outras, são e continuam sendo para nós indecifráveis, embora a própria coisa seja dada, mas sem ser compreendida. Porém, um ideal da razão pura não pode considerar-se imperscrutável, porque não apresenta qualquer outra garantia da sua realidade além da necessidade que a razão tem de completar, por este meio, a unidade sintética. Se não é mesmo dado como objeto pensável, também não é, como tal, imperscrutável; antes deverá, como simples idéia, poder ter a sua sede na natureza da razão e aí encontrar solução, podendo ser, por conseguinte, perscrutado, pois que a razão consiste precisamente nisso, em podermos prestar contas de todos os nossos conceitos, opiniões e afirmações, quer seja mediante princípios objetivos, quer tratando-se de uma simples aparência, mediante princípios subjetivos.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Da impossibilidade de uma prova ontológica da existência de Deus

Immanuel Kant
Crítica da razão pura
Tradução: Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão
Edição: Fundação Calouste Gulbenkian, 5. ed, Lisboa, 2001.

Só há três provas possíveis da existência de Deus para a razão especulativa

Todos os caminhos, pelos quais neste intuito se possa enveredar, partem da experiência determinada e da natureza particular do mundo dos sentidos, que ela dá a conhecer, e daí ascendem, segundo as leis da causalidade, até à causa suprema, residente fora do mundo; ou põem, empiricamente, como fundamento, apenas uma experiência indeterminada, isto é, uma existência qualquer; ou, finalmente, abstraem de toda a experiência e concluem, inteiramente a priori, a existência de uma causa suprema a partir de simples conceitos. A primeira prova é a prova físico-teológica, a segunda a cosmológica e a terceira a ontológica. Não há nem pode haver outras.

Demonstrarei que a razão nada consegue nem por uma das vias (a via empírica) nem pela outra (a via transcendental) e que em vão abre as asas para se elevar acima do mundo sensível pela simples força da especulação. Mas, no que respeita à ordem em que estas provas devem ser submetidas a exame, será precisamente a inversa da que segue a razão que se desenvolve pouco a pouco e na qual primeiro as apresentamos. Com efeito, ver-se-á que, embora a experiência forneça a primeira ocasião, é tão-só o conceito transcendental que guia a razão neste esforço e fixa em todas estas tentativas o objetivo que se propôs. Começarei, portanto, pelo exame da prova transcendental, para depois averiguar até que ponto a adição do empírico pode aumentar a sua força demonstrativa.

Da impossibilidade de uma prova ontológica da existência de Deus

Facilmente se depreende do que atrás dissemos, que o conceito de um ser absolutamente necessário é um conceito puro da razão, isto é, uma simples idéia, cuja realidade objetiva está ainda longe de ser provada pelo fato de a razão necessitar dela e que, aliás, não faz outra coisa que não seja indicar-nos uma certa perfeição inacessível, e que serve, na verdade, mais para limitar o entendimento do que para o estender a novos objetos. Depara-senos aqui algo de estranho e absurdo, que é parecer urgente e rigoroso o raciocínio que, de uma existência dada em geral, conclui uma existência absolutamente necessária, e serem contudo completamente adversas todas as condições que o entendimento exige para formar um conceito de uma tal necessidade.

Em todos os tempos se falou do ser absolutamente necessário, mas envidaram-se mais esforços para provar a sua existência do que para compreender como se poderá e até mesmo se se poderá pensar uma coisa desta espécie. Ora, é muito fácil dar uma definição nominal do que seja este conceito, dizendo que é algo cuja não-existência é impossível; mas nem por isso ficamos mais cientes das condições que tornam impossível considerar a não-existência de uma coisa como absolutamente impensável e que são, na verdade, aquilo que se pretende saber, isto é, se através desse conceito pensamos ou não em geral qualquer coisa. Porque rejeitar, mediante a palavra incondicionado, todas as condições de que o entendimento sempre carece para considerar algo como necessário, não me permite, nem de longe, ainda compreender se por este conceito de um ser incondicionalmente necessário ainda penso algo ou porventura já nada penso.

Bem mais: tem-se julgado, mediante grande porção de exemplos, explicar este conceito, ao princípio lançado temerariamente ao acaso e que, por fim, se tornou tão corrente que uma indagação ulterior acerca da sua inteligibilidade se afigurou completamente inútil. Toda a proposição da geometria, como por exemplo, que um triângulo tem três ângulos, é absolutamente necessária e assim se falava de um objeto, que está totalmente fora da esfera do nosso entendimento, como se se compreendesse perfeitamente o que se quer dizer com o seu conceito.

Todos os exemplos propostos são, sem exceção, extraídos unicamente de juízos, mas não de coisas e da sua existência. Porém, a necessidade incondicionada dos juízos não é uma necessidade absoluta das coisas. Porque a necessidade absoluta do juízo é só uma necessidade condicionada da coisa ou do predicado no juízo. A proposição acabada de citar não dizia que três ângulos são absolutamente necessários mas que, posta a condição de existir um triângulo (de ser dado), também (nele) há necessariamente três ângulos. Contudo, esta necessidade lógica demonstrou um tão grande poder de ilusão que, embora se tivesse formado o conceito a priori de uma coisa, de tal maneira que na opinião corrente a existência esteja incluída na sua compreensão, julgou-se poder concluir seguramente que, convindo a existência necessariamente ao objeto desse conceito, isto é, sob a condição de pôr esta coisa como dada (como existente), também necessariamente se põe a sua existência (pela regra da identidade), e que este ser é, portanto, ele próprio, absolutamente necessário, porque a sua existência é pensada conjuntamente num conceito arbitrariamente admitido e sob a condição de que eu ponha o seu objeto.

Se num juízo idêntico suprimo o predicado e mantenho o sujeito, resulta uma contradição e é por isso que digo que esse predicado convém necessariamente ao sujeito. Mas se suprimir o sujeito, juntamente com o predicado, não surge nenhuma contradição; porque não há mais nada com que possa haver contradição. Pôr um triângulo e suprimir os seus três ângulos é contraditório; mas anular o triângulo, juntamente com os seus três ângulos, não é contraditório. O mesmo se passa com o conceito de um ser absolutamente necessário. Se suprimis a existência, suprimis a própria coisa com todos os seus predicados; de onde poderia vir a contradição? Exteriormente, nada há com que possa haver contradição, porque a coisa não deverá ser exteriormente necessária; interiormente, nada há também, porque suprimindo a própria coisa, suprimistes, ao mesmo tempo, tudo o que é interior. Deus é Todo-poderoso, eis um juízo necessário. A onipotência não pode ser anulada, se puserdes uma divindade, ou seja, um ser infinito a cujo conceito aquele predicado é idêntico. Porém, se disserdes que Deus não é, então nem a onipotência nem qualquer dos seus predicados são dados; porque todos foram suprimidos juntamente com o sujeito e não há neste pensamento a menor contradição.

Vistes, pois, que, suprimindo o predicado de um juízo, juntamente com o sujeito, não poderá haver contradição interna, qualquer que seja o predicado. Não tendes, assim, outro remédio senão dizer que há sujeitos que não podem absolutamente ser suprimidos e que, por conseqüência, têm que subsistir, mas isto equivaleria a dizer que há sujeitos absolutamente necessários. Suposição esta cuja legitimidade me pareceu susceptível de ser posta em dúvida e cuja possibilidade me quisestes tentar mostrar. Com efeito, não posso formar o menor conceito de uma coisa que, mesmo suprimida com todos os seus predicados, ainda suscita contradição; e fora da contradição não tenho, mediante simples conceitos puros a priori, nenhum critério de impossibilidade.

Contra todos estes raciocínios gerais (a que ninguém se pode recusar) objetais-me com um caso que apresentais como prova de fato: que há, não obstante, um conceito, e na verdade só este, em que a própria não-existência é contraditória em si, isto é, não se poderia, sem contradição, suprimir o objeto e esse é o conceito do ser realíssimo. Possui ele, dizeis vós, toda a realidade e tendes o direito de admitir tal ser como possível (o que por ora consinto, embora a não-contradição do conceito esteja longe de provar a possibilidade do objeto)* . Ora, em toda a realidade está compreendida também a existência; a existência está pois contida no conceito de um possível. Por conseqüência, se esta coisa é suprimida, também se suprime a possibilidade interna da coisa, o que é contraditório.

Respondo eu: caístes em contradição ao introduzir no conceito de uma coisa, que vos propúnheis pensar apenas quanto à possibilidade, o conceito da sua existência, oculto seja sob que nome for. Se vos concedermos isto. tendes aparentemente ganho a partida, mas de fato nada dissestes, pois cometestes uma simples tautologia. Pergunto-vos: a proposição esta ou aquela coisa (que vos concedo como possível, seja qual for) existe, será uma proposição analítica ou sintética? Se é analítica, a existência da coisa nada acrescenta ao vosso pensamento dessa coisa e então, ou o pensamento dessa coisa que está em vós deveria ser a própria coisa ou supusestes uma existência como pertencente à possibilidade e concluístes, supostamente, a existência a partir da possibilidade interna, o que é uma mísera tautologia. A palavra realidade, que no conceito da coisa soa diferentemente de existência no conceito do predicado, não resolve esta questão. Porque se denominardes realidade a toda a posição (sem determinar o que se põe), já pusestes e admitistes como real, no conceito do sujeito, a própria coisa com todos os seus predicados, e no predicado só o repetis. Se, pelo contrário, reconhecerdes, como é justo que todo o ser razoável reconheça, que toda a proposição de existência é sintética, como podereis então sustentar que não se pode suprimir sem contradição o predicado da existência, se esta prerrogativa pertence especificamente à proposição analítica, cujo carácter assenta precisamente sobre ela?

Eu podia, sem dúvida, ter a esperança de refutar, sem mais rodeios, esta vã argúcia, mediante a rigorosa determinação do conceito de existência, se não tivesse descoberto que a ilusão de confundir um predicado lógico com um predicado real (isto é, com a determinação de uma coisa) quase exclui todo o esclarecimento. Tudo pode servir, indistintamente, de predicado lógico, e mesmo o sujeito pode servir a si próprio de predicado, porque a lógica abstrai de todo o conteúdo; mas a determinação é um predicado que excede o conceito do sujeito e o amplia. Não deve pois estar nele contida.

Ser não é, evidentemente, um predicado real, isto é, um conceito de algo que possa acrescentar-se ao conceito de uma coisa; é apenas a posição de uma coisa ou de certas determinações em si mesmas. No uso lógico é simplesmente a cópula de um juízo. A proposição Deus é omnipotente contém dois conceitos que têm os seus objetos: Deus e onipotência; a minúscula palavra é não é um predicado mais, mas tão-somente o que põe o predicado em relação com o sujeito. Se tomar pois o sujeito (Deus) juntamente com todos os seus predicados (entre os quais se conta também a onipotência) e disser Deus é, ou existe um Deus, não acrescento um novo predicado ao conceito de Deus, mas apenas ponho o sujeito em si mesmo, com todos os seus predicados e, ao mesmo tempo, o objeto que corresponde ao meu conceito. Ambos têm de conter, exatamente. o mesmo; e, em virtude de eu pensar o objeto desse conceito como dado em absoluto (mediante a expressão: ele é), nada se pode acrescentar ao conceito, que apenas exprime a sua possibilidade. E assim o real nada mais contém que o simplesmente possível. Cem talheres reais não contêm mais do que cem talheres possíveis. Pois que se os talheres possíveis significam o conceito e os talheres reais o objeto e a sua posição em si mesma, se este contivesse mais do que aquele, o meu conceito não exprimiria o objeto inteiro e não seria, portanto, o seu conceito adequado. Mas, para o estado das minhas posses, há mais em cem talheres reais do que no seu simples conceito (isto é na sua possibilidade). Porque, na realidade, o objeto não está meramente contido, analiticamente, no meu conceito, mas é sinteticamente acrescentado ao meu conceito (que é uma determinação do meu estado), sem que por essa existência exterior ao meu conceito os cem talheres pensados sofram o mínimo aumento.

Assim, pois, quando penso uma coisa, quaisquer que sejam e por mais numerosos que sejam os predicados pelos quais a penso (mesmo na determinação completa), em virtude de ainda acrescentar que esta coisa é, não lhe acrescento o mínimo que seja. Porquanto, se assim não fosse, não existiria o mesmo, existiria, pelo contrário, mais do que o que pensei no conceito e não poderia dizer que é propriamente o objeto do meu conceito que existe. Mesmo se pensar numa coisa toda a realidade, com exceção de uma só, pelo fato de dizer que tal coisa defeituosa existe, não lhe é acrescentada a realidade que lhe falta, mas existe precisamente tão defeituosa como quando a pensei; de outro modo, existiria uma coisa diferente da que foi pensada. Se, por conseguinte, penso um ser como realidade suprema (sem defeito), mantém-se sempre o problema de saber se existe ou não. Porque, embora nada falte ao meu conceito do conteúdo real possível de uma coisa em geral, falta ainda algo na relação com todo o meu estado de pensamento, a saber, que o conhecimento desse objeto também seja possível a posteriori. E aqui se mostra também a causa da dificuldade que reina neste ponto. Tratando-se de um objeto dos sentidos não poderia confundir a existência da coisa com o simples conceito da coisa. Porque, através do conceito só se pensa o objeto de acordo com as condições universais de um conhecimento empírico possível em geral, ao passo que, pela existência, o penso como incluso no contexto de toda a experiência; e embora o conceito do objeto não seja em nada aumentado pela ligação ao conteúdo de toda a experiência, mediante este o nosso pensamento recebe todavia a mais uma percepção possível. Se, pelo contrário, quisermos pensar a existência unicamente através da categoria pura, não admira que não possamos apresentar um critério que sirva para a distinguir da simples possibilidade.

Pode pois o nosso conceito de um objeto conter o que se queira e quanto se queira, que teremos sempre que sair fora dele para conferir existência ao objeto. Nos objetos dos sentidos isto sucede mediante o encadeamento com qualquer das minhas percepções, segundo leis empíricas; mas, nos objetos do pensamento puro, não há absolutamente nenhum meio de conhecer a sua existência, porque teria de ser totalmente conhecida a priori; porém, a nossa consciência de toda a existência (quer seja imediatamente proveniente da percepção ou de raciocínios que ligam algo à percepção) pertence inteira e totalmente à unidade da experiência e, muito embora se não possa considerar absolutamente impossível uma existência fora desse campo, é todavia uma suposição que nada tem a justificá-la.

O conceito de um ser supremo é uma idéia muito útil sob diversos aspectos; mas, precisamente porque é simplesmente uma idéia, é totalmente incapaz, por si só, de alargar o nosso conhecimento, relativamente ao que existe. Nem sequer consegue instruir-nos acerca da possibilidade de uma pluralidade de coisas. Não se lhe pode contestar o carácter analítico da possibilidade, que consiste no fato de as simples posições (realidades). não suscitarem contradição; porém, a ligação de todas as propriedades reais numa coisa é uma síntese, acerca de cuja possibilidade não podemos ajuizar a priori, porque as realidades não são dadas especificamente e, se o fossem, não se verificaria em parte alguma um juízo, porque o carácter da possibilidade de conhecimentos sintéticos tem de ser procurado sempre apenas na experiência, a que não pode pertencer o objeto de uma idéia; assim, o famoso Leibniz não realizou aquilo de que se ufanava: ter conseguido, como pretendia, conhecer a priori a possibilidade de um ser ideal tão elevado.

Por conseguinte, em vão se despendeu esforço e canseira com a célebre prova ontológica (cartesiana) da existência de um Ser supremo a partir de conceitos, e assim como um mercador não aumenta a sua fortuna se acrescentar uns zeros ao seu livro de caixa para aumentar o seu pecúlio, assim também ninguém pode enriquecer os seus conhecimentos mediante simples idéias.
Powered By Blogger