Krishnamurti de Carvalho Dias (*)
Vila Velha, ES, Brasil
"...no seu sentido original atualizar sempre foi passar de potência a ato, isto é, tirar do virtual para o real, o que significa agir em lugar de apenas pensar."
Quando Rivail fez as instituições espíritas estas praticavam atos letivos, pedagógicos a saber:
· A S.P.E.E. Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, que era um espaço cultural;
· A "Revista espírita" que era "un journal d’estudes spirites"; e finalmente
· A livraria que editou os seus livros;
· Foi no Brasil, e somente aqui, que se fugiu a esse padrão laico autoral e se quis torcê-lo para uma fantasia religiosa, com instituições visivelmente místicas e piedosas.
EXÓRDIO
1 - A gente espírita contempla perplexa o quadro a que chegamos, em que não se pode mais usar para ela o clássico apelido de "a comunidade", porque o que existe é de fato uma diversidade e até uma adversidade entre os dois blocos em que se repartiu a coletividade, um com o que se pode chamar de "viés religiosista" do conjunto versus o outro que já é de um "viés" não religioso.
Também o apelido de "o movimento" pode ter perdido o seu sentido, já que a coletividade agita-se internamente em movimentos brownianos, mas não avança em termos de incluir-se na sociedade geral, onde é visivelmente uma excluída, porque incompreendida, tal a confusão que se apossou dessa sociedade geral quanto à agremiação de adeptos. Afinal não se sabe exatamente o que será esta, se a propalada "religião espírita" que pratica o prestigioso e popular "culto espírita", ou se não é.
Nem comunidade, porque dividida internamente em facções de fato inconciliáveis, nem movimento, porque paralisada no tempo e sem ocupar espaços novos na sociedade, essa coletividade que, ainda, em meio a todas essas vicissitudes, se confessa e se proclama "espírita", tenta, até aqui, em vão, se articular.
Nos confrontos ácidos, ásperos, repassados de incompreensões e até de má vontade, longe estamos daquele ideal luminoso de Leopoldo Machado...
"... somos companheiros, amigos, irmãos,
a nossa alegria é bem do evangelho,
sempre ombro a ombro, sempre lado a lado,
mesmo entre perigos, daremos as mãos
como bons amigos, como bons irmãos..."
Bezerra de Menezes advertiu, enfático:
"Solidários somos união, mas, separados uns dos outros, não passaremos de meros pontos de vista, buscando fora aquilo que já está em nossas mãos..."
O que é esse "aquilo" que já está em nossas mãos?
2 - É o penhor de nossa reconciliação, de nossa unificação, de nossa reconquista de unidade original, devolvendo-nos o perdido estado de comunidade e de movimento: a identificação do que temos efetivamente de comum e o ímpeto solidário que nos leva a objetivos realmente comuns de pleno espalhamento de nossa cultura na sociedade.
Os dois blocos desavindos têm, cada qual, um “eslogã”, um apelo, que é sua bandeira particular.
O partido religiosista obstina-se em que o espiritismo é tripartite, descrito por uma trilogia, de ciência, filosofia e religião. Já o partido não religioso (não o chamarei por enquanto de "laico" para evitar certa confusão semântica embutida nesse adjetivo) sustenta outro “eslogã” tripartite também, o de "ciência, filosofia e moral". Ambos são trinaristas, triplicistas, então, porque não há consenso? É porque, evidentemente, há uma discrepância, uma divergência no fim de cada trilogia: religião versus moral, isso impede a coincidência desse terceiro termo, logo, destrói a comunidade e estabelece a diversidade.
Todavia, a comunidade vive mesmo assim expressa naquele par ou dupla de conceitos iniciais da ciência e filosofia, este sim é um dado comum a ambos os empenhos. Não estão aí a comunidade e o consenso de que precisamos? Resta saber se ambos os lados estariam dispostos a abrir mão, (eu disse: ambos), dos respectivos terceiros termos, se o fizessem, restaria o binômio original, natural, puro, de ciência e filosofia, como uma aspiração comum presente desde já em ambos os pleitos.
Ciência e filosofia, por sinal, foi essa a tese autoral, o padrão kardequiano, o autor documentalmente jamais propôs que sua obra fosse alguma terceira outra coisa mais além dessas duas, o padrão autoral sempre foi binário, apenas bidigital portanto, jamais tripartite, nunca trinitário.
No padrão autoral o espiritismo é figura bidimensional, sem triplicação nenhuma. Esta adveio foi da incapacidade dos adeptos de resistirem a uma verdadeira armadilha cultural, um engrama coletivo remotíssimo adquirido desde a fase dos pitecos, quando o homem tangido não sei por quais condicionantes evolutivas, fixou-se no três mito-mágico, místico-sagrado, como o numeral perfeito, cristalizando aí importantes quantificações.
É o trimurti bramânico de Brama-Shiwa-Vixnu, é ou são as famosas "tríades bárdicas" do celtismo-druidismo (que Rivail estremecia, mas pôs de lado, talvez para fugir ao engrama fatídico trinário), é o triunvirato romano; são as troicas da religiosidade egípcia, as trilogias políticas da franco-maçonaria, finalmente a maior trilogia da história leiga, a famosa e incendiária "liberté, fraternité, egalité" da Grande Revolução.
É a fraude histórica da "santíssima trindade", do símbolo de Nicéia, passando pelos três poderes de Montesquieu, este que retomou o rascunho dos Estados Gerais.
Enfim Zé-povo quando quer enumerar, não consegue passar do "Fulano, Sicrano, Beltrano", "do assado, frito e cozido", do isto, do aquilo, e mais outro, até o limite triplo irremovível nas cabeças como na retranca e o ferrolho das três dimensões espaciais, que Euclides fechou e só agora as simetrias de calibre, nas físicas de gauge, conseguiram, fora das vistas da humanidade, deles se evadir, puxando para um espaço-tempo decadimensional novo, em lugar do antigo espaço euclidiano só tridimensional. Engrama é isso: a fixação em algo que sobreleva a razão[1].
A mais importante abertura, derrubando o férreo circulo trinitário desse engrama ancianíssimo, foi sem dúvida a contribuição genial de Leibniz, rasgando à civilização a linguagem bidigital, donde saíram os tititis binários da internet, a alacridade a dois bits dos satélites e sondas espaciais, o bip-bip dos computadores, o chilrear alegre da cibernética, da informática, robótica e da eletrônica.
Era o fim da Era trinitária-tríplice em termos de unidades de significação. E Rivail estava com Leibniz. Seu padrão autoral é binário puro, só dois bits, os da ciência e filosofia, nada mais. O espírito está ou encarnado, se residente na biosfera e pois membro da biodiversidade; ou então permanece desentranhado na erraticidade, como desencarnado. Ao mesmo tempo, operava a maior redução conceitual, ao matar a idéia de morte, vista esta como um não-ser extinguindo a vida, proclamando em lugar desse dualismo falso, o monismo de vida só, sempre vida, com mais vida após a vida, passada esta em diferentes espaçotempos alternativos, no mundo corporal e/ou no dos espíritos, no que bem se pode chamar de "vida" e contravida, como fases alternas em que se decompõem binariamente a "hipervida" geral dos espíritos, seu existir perene, ininterrupto, incessante, contrapostas entre si, ora de internação na biosfera e na biodiversidade ou então de erraticidade, mas sempre vida só, sem morte no meio ou no fim.
Nenhuma triplicidade aí, só dualismo, discurso binário, bidigital, esse o caráter puramente dual do espiritismo, que não tem sido contemplado quando exposto a indevidas triplicações, onde qualquer terceiro termo soa falso, inautêntico, como uma coisa postiça.
Rivail abandonou o engrama, ancestralíssimo, do três fatídico, abraçando o binário, o bidigital revolucionário leibniziano, talvez por sua formação germanófona, pois além de tudo, "mais parecia um alemão", sublinha sua melhor biografa e tradutora, Anne Blackwell, isso até fisicamente, que dirá mentalmente.
Sua frase em que proclamou a supremacia da razão sobre a fé (em “O Evangelho segundo espiritismo”) é toda de Leibniz que já a dissera antes com outra redação[2], Rivail apenas a repropôs, mutatis mutandi. Ao optar pelo modelo leibniziano, Rivail apontou o padrão de sua obra, que é o de um binômio, com o qual seguia os ventos racionais e então ainda muito futuros da modernidade apenas amanhecida, deixando as soturnas virações antigas de trimurtis, trindades, tríades e triplicidades mito-mágicas de antanho.
Ciência e filosofia perfazem cognição, a qual é cultura, no sentido de posse de erudição, dos refinos e picos de saber, de ilustração. Todavia, cultura, após o decesso de Rivail (isso já por volta de 1881, por aí) adquiriu um contra-sentido diferente, já passou a ser também qualquer conjunto de hábitos, de idiossincrasias, praxes ou mores que um povo, mesmo inculto, analfabeto, até selvagem e primitivo, sempre tem. As culturas ágrafas, não escritas, são as culturas desses primitivos, o que decerto não se confunde com a cultura naquele primeiro sentido que antes examinávamos, o sinônimo de ilustração, de posse de ciência e filosofia, arte, tecnologia, em graus elevados e desenvolvidos dos povos cultos, civilizados.
Se dissermos qualquer terceira coisa extra além daquele binômio rivailiano, se triplicarmos o padrão autoral no que quer que seja, estaremos complicando e criando dificuldades de compreensão.
Deolindo Amorim, para contrapor ao discurso religiosista da FEB, uma afirmação laica marcante de sua própria posição, fabricou a expressão de "cultura espirita" (no seu ICEB), estabelecendo o contraditório. Era "o culto espírita" de Chesnel versus a cultura espirita de Rivail, isto é, a cognição, marca inseparável da codificação. Mas já a agremiação, a coletividade dos adeptos (que também levam o mesmo nome que a codificação, de "o espiritismo") em seus naturais estos de admiração e vivenciamento do que qualquer um bem entendia como sendo essa "cultura espírita", já demonstrava bem o perigo de se fixar essa expressão de Deolindo como um dado absoluto.
Se havia uma "cultura espírita", então corria-se o risco de assumir como espiritismo, (ou seja como a cognição erudita espírita) o acervo de hábitos, isto é, de mores, o estoque moral portanto, dos adeptos, toda a espantosa babel que as pessoas, egressas das religiões, dos sincretismos, do materialismo, das formas esotéricas, vinham trazendo cá para dentro da coletividade, como sua bagagem natural, no atavismo, nas idiossincrasias dessa gente, que constituía sem dúvida a sua cultura pessoal, e se essa era a cultura "dos espíritas" então era essa "a cultura espírita como um todo" na visão dos antropólogos, sociólogos, da mídia, dos governos, então tome confusão entre o candomblé, a quimbanda, a umbanda, a santeria, o roustainguismo, o trincadismo, "el cordon", o afro-indigenismo dos recém chegados, tudo confundido com a codificação, numa confusão conceitual que não pode ser chamada lisamente mais de "a cultura espírita".
3 - É que há dois conceitos de cultura, como os há também de religião, e finalmente, também de espiritismo, moral, de laicismo. Essas palavras têm manifestamente, duplo (e até maior número de) sentido cada qual, não podem ser manejadas com desjeito, com descuidado, para descrever e designar a obra apenas científica e filosófica de Rivail, esta que não recepciona nenhuma triplicidade conceitual, não é descritível por nenhuma triplicidade conceitual, nenhuma triplicação.
Rivail nunca assumiu nada mais do que isso: os fatos, apenas os fatos, devidamente estudados, formaram a ciência espírita, da qual decorreu uma filosofia espiritualista, ponto final dessa gênese epistemológica. Tudo mais que daí por diante houvesse, ficou externo, exterior, a esse binômio, como parte das coisas que estão "do lado de fora" desse fechado âmbito interior do padrão autoral de só ciência e filosofia. Por isso a frase padrão kardequiana de definição de sua obra foi muito clara: "o espiritismo é uma ciência e uma filosofia, que têm conseqüências morais", isto é, que afetam os mores, as praxes, os hábitos, a cultura, pois, da sociedade onde transita. E o binômio autoral faz isso. Se não pensarmos assim, não entenderemos a obra de Rivail. O espiritismo só é a codificação, na definição-padrão autoral: ciência e filosofia, cognição codificada, isto é, passada de um estado original para outro, o que dá a Rivail o legítimo direito de ostentar o apelido de "o codificador", sem incidir, momento algum, na pecha de autor religioso de algum novo culto, tão pouco de legislador moralista.
Ele foi apenas o agente que tirou a cognição sobre as coisas do espírito, do estado primitivo de elucubrações soturnas, trazendo-a para o modo aberto, transparente, de saber racional. Onde o que se aprende incorpora-se à mente e passa a transformar os mores, os hábitos de pensar, dizer, fazer, mas todo mundo inventa, fantasia, que tal transformação moral seria só em termos últimos, dramáticos de sublimidade espiritual e santidade.
Qualquer aprendizado e cultura, no sentido crasso de cognição opera tal mudança. Para Rivail, "reconhece-se o verdadeiro espírita por sua transformação moral", porque o seu conjunto de hábitos, seus mores (mos, moris, em latim era "hábitos", aquilo que se faz vulgarmente), passa a refletir a admissão dos novos conhecimentos espiriticos, sem nenhuma mudança dramática de personalidade.
4 - O que se chamava de moral, não passa de um adjetivo, um sinônimo corriqueiro de habitual, cultural, psicossocial, usual, costumeiro, isso é indisputável. Foi só na tendência a complicar, de modo pedante e sob a influência do sombrio religiosismo, que o dado moral, ou seja, as constâncias de procedimento, se tornaram pasto do moralismo, do maniqueísmo, o macartismo, do fiscalismo, território de catões, comadres e candinhas, pudicões e cérberos patrulhadores da vida alheia.
A palavra moral hoje é um caso perdido de polissemia, tal como religião, cultura, laicismo e até "espiritismo" também.
Se dizemos "religião", estamos falando do culto ou do laço. Se ferimos moral, ou é o trio de adjetivos (moral, imoral, amoral) ou é o substantivo, é o código de feras disposições mandatórias, é o conjunto de regras aceitas por um grupo. Se dizemos "espiritismo" ou é a codificação ou então é a agremiação.
Para evitar confusões, Rivail avisadamente pediu que ninguém chamasse sua obra por esses apelidamentos.
5 - Também foi enfático, declaratório, rasgado, em dizer que não havia trazido (nem os espíritos com ele), "nenhuma moral nova", isto é, nenhum código moralista, próprio, seu, inédito, como um Zenão, um Epicuro, um Confúcio, mas tinha, sim, ido buscar a moral de outrem, preexistente, a do Cristo (não a decantada "moral cristã" que não é do Cristo e sim dos papados e concílios) e que essa moral crística é que perfumava a codificação, não como alguma terceira parte dela, porém, como um elemento daqueles admitidos dados adicionais, externos, as conseqüências morais que estão do lado de fora do âmbito formal da codificação.
Moral, adjetivamente, o espiritismo sempre é, porque não é malsão, deletério, logo não é imoral nem amoral. Esse é o significado adjetivo da palavra, descritiva ou indicativa da área onde se dão as conseqüências do ensino e aprendizado espírita, que é o território dos mores populares.
O espiritismo é cultura num sentido mas já não é mais no outro da mesma palavra. Cultura no sentido de erudição clássica, formal, isso ele é; já no de qualquer conjunto de hábitos de gente, com gostinhos, palpites, fantasias; substantivamente porem, já é a decantada "moral espírita" pois realmente isso ele não é, visto Rivail não ter produzido tal código.
Porque é um laço, não um culto, não se pode nem se deve chamá-lo de religião. Porque é moral, só adjetivamente, no sentido de influir nos mores, transformando-os, então não se segue que ele seja substantivamente uma moral, um código rigorista, a diferença é essa.
6 - Já quando se diz que ele é laico, com isso afirmamos que não é religioso, então fatalmente só é um caso de... laicismo, mas o laicismo politicamente é a separação entre igreja e estado. Já por outra, laicismo é a convivência normal entre fés e credos religiosos, sem prevalência de nenhum. Complica que laicismo tornou-se também uma dessas doutrinas de estado contra cultos religiosos como no México, na Espanha republicana, em Portugal pós-monarquia, na Rússia comunista, na França de 89, e até no Brasil republicano. Não é pois palavra prestável para definir nossa posição. Não deve, pois, ser usada.
7 - Se Kardec se exorna com o luminoso título de "codificador" isso é exatíssimo. Romanos tinham ou rolos ou códigos a certa altura, quando se passava de um para outro dos formatos, isso era o codificare, era a codificationem, obra do codificator, o escravo letrado, culto, que fazia essa transposição. Passar de rolo a código, é a alma do que se chama de codificação, por isso Rivail recebeu esse cognome. Quem faz essa proeza, é um codificador, sem que tenha de ser visto como legislador moralista, jurídico ou iluminado de algum culto recém-inventado. Morse fez um código, tirando sentido e dando um fim novo ao bip-bip do telégrafo elétrico, esse código é tecnológico, não moralista. O mesmo com Louis Braille, permitindo aos cegos "lerem" com a ponta do dedos. Watson e Crick são autores do código genético, outro que não é moralista em nada.
8 - Estamos todos usando palavras más pelos seus sentidos múltiplos, que quando moduladas, confundem e abrem chance para espertas manobras de interessados em impor seus pontos de vista pessoais. É o caso de "doutrina", que para muitos é perfeita para descrever o espiritismo. Só que não é. A obra de Rivail não é mais uma doutrina e sim uma entidade mais completa, é um continuum de ciência e filosofia. Mas doutrina virou nome de produtos ideológicos terríveis como o nazismo, o fascismo, o comunismo, o sadismo, o anarquismo, o terrorismo, o racismo, o sexismo, as piores distorções humanas.
Chamado de doutrina tão desenvoltamente pelos espíritas, que idéia faz a sociedade sobre a nossa cultura, quando a vê sentada no banco de réus da história ao lado de tão sombrios colegas? Não podemos mais continuar apelidando assim ao produto rivailiano.
9 - Quando Rivail tomou do termo "espiritismo" foi para tirá-lo da função inglória de nome de mera crença popular antiga em motores invisíveis e projetá-lo como a coisa nova cultural que ele ora havia produzido, a matéria dupla, binária de cognição, isso é codificar. Todavia quando essa cognição bate na sociedade, desperta nesta ecos, repercussões e o povo divide-se a respeito. Uma parte fecha com o novo ismo e sustenta-o, religionando-se numa agremiação laica no puro sentido filosófico da palavra. Outra parte extrapola, fecha com a religiosidade e o misticismo mas ao fazê-lo sai do sentido profundo original laico da codificação.
10 - Acontece que a codificação não tem passado, mas a agremiação sim. A codificação são só dados na maioria técnicos, já a agremiação são pessoas vivas, com gostinhos, humores, caprichos e radicalizações, pontos de vista opiniáticos, emoções, e pesados atavismos imemoriais adquiridos nos trâmites evolutivos.
Agremiação então é um feixe de segmentos de gosto, opinião preferência, que se formam livremente. É um tecido demográfico, conforme a vida pregressa desses membros vivos, que são gente, pessoas.
11 - Enquanto vivermos chamando por um nome só e mesmo a coisas diferentes e até contraditórias, não sairemos do impasse da perda de consenso. Temos de redefinir nossa linguagem.
A agremiação deveria ser a comunidade, porém não é. É a diversidade, pelos seus desencontros e desacertos em manejar linguagens contraditórias. Deveria ser o movimento, o que também não é, pois não vai para parte alguma, move-se só dentro e de si mesma.
12 - Abandonar o passado, eis a palavra de ordem, só por isso, o pomo de discórdias das trilogias, das palavras de duplo sentido ficará desativado.
13 - É que as pessoas ou estão ainda movendo-se no clima pesado dos dependenciamentos religiosos, isto é, desfrutam de sua liberdade "de religião" (o direito de cada qual ter uma, a sua, a que escolheu e que satisfaz, por enquanto ao seu ego) ou então já se libertou de tal dependenciamento e desfruta já do oposto, da liberdade "da religião" tendo se emancipado desse dependenciamento.
14 - Mas uma coisa é pensar em conformidade, em consonância com o padrão autoral da codificação e bem outra é inventar, fantasiar e discrepar dele. Rivail previa isso e pediu exatamente esse respeito mútuo, onde "ninguém deve constranger a consciência de ninguém". Se um se acha o certo, todos virão a "pensar como ele", mas se ele estiver errado, "acabará por pensar como os demais". Esse é o padrão kardequiano.
Dentro da agremiação reina a divisão em segmentos, uns assim e outros assado, ao sabor das idiossincrasias individuais. Mas dentro do espiritismo enquanto codificação, no significado legítimo, original, autoral, está o padrão. Por vezes a agremiação abandona o padrão, esquece a codificação e projeta-se em largos desvios para fora desta. Mas há um segmento que não faz isso, que busca o padrão e observa-o, mantendo-se dentro de seus limites, sem os extrapolar. É o que chamo de "o segmento padrão da agremiação", porque conserva-se nos limites da codificação.
15 - O importante é que todos no fundo pensamos o espiritismo do mesmo modo padrão desejado por seu autor, pois eventuais acréscimos, adições, não passam de conseqüências morais, isto é, o fruto de traços externos, exteriores ao âmbito da codificação, encontráveis apenas na agremiação e em seus mores.
Apelo serenamente para o futuro: o programa agora é racionalizar, entender que o padrão autoral rivailiano é de fato apenas dual, não comportando nenhuma triplicação, posto que, já para fins de normativa para a agremiação, Rivail tivesse sido é tríplice na sua luminosa trilogia de "trabalho, solidariedade e tolerância", mas essas são duas coisas diferentes, que podem conviver e interagir, sem conflitar.
De coração desejo isso: que nos entendamos. Que nos procuremos, solidários, solícitos uns com os outros, embora as por vezes abissais diferenças que milênios de religiosismo e religiosidade, para uns, mas já apenas algumas décadas, só, até, de desconfessionalização e dessacralização para outros, terminaram por aprofundar, traçando um Canyon, uma calha, entre os dois contingentes.
PALAVRAS FINAIS
Total, absoluta é minha solidariedade com o pólo gaúcho e o santista do segmento padrão, bem como a minha identificação com luminosa CEPA, cuja volta ao Brasil tive a felicidade de presenciar. Ofereço essas palavras como uma reflexão muito cordial e fraterna ao consenso dos meus amados confrades.
NOTAS
[1] Quem define engrama é Henri Laborit, in "Deus não joga dados"; Editora Trajetória Cultural; 1º Edição - página nº: 66, Engrama: do grego en (em) e grama (caráter, traço) significa, em psicologia, "marca deixada no cérebro por um acontecimento do passado individual ".
[2] A citação da frase de Leibniz sobre "Fé raciocinada", que Rivail com outra redação reproduziu, está no livro "Bases científicas do espiritismo" - Epes Sargent, edição da FEB; Página nº.175:
"Nenhuma fé, diz Leibniz, pode ser real ou inteligível, se não tiver a sua base na razão humana. A religião divorciada da razão do homem não pode firmar-se e sustentar-se."
(*) Bancário aposentado, expositor, articulista, autor dos projetos CINESP, TEVESP e DATESP, com utilização das mídias, cinema, Super 8, TV VHS e os primeiros Home Computers; autor de diversos livros espíritas, entre os quais “O laço e o culto”, “O nascimento da morte”, “Toques de obsessão”, “A descoberta do espírito”, “Roustaing” e “2 Ensaios”. Desencarnou em Vitória-ES, no dia 02.01.2001, semanas após sua participação no Congresso da CEPA.
quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008
A hora e a vez do segmento padrão
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Porto Rico os espera!
Unam-se a nós no XX Congresso da Confederação Espírita Pan-Americana a realizar-se no período de 4 a 8 de junho de 2008, em Porto Rico. A Comissão Organizadora tem tudo preparado para este magno evento e espera com alegria sua participação. Centenas de espíritas da América, Europa, Caribe e Oceania se encontrarão para compartilhar experiências, conhecimentos e calor humano, sob o sol e a brisa quente da bela ilha. A seguir lhes damos as informações mais relevantes da atividade:
Local:
As reuniões serão no Hotel Holiday Inn de San Juan, Porto Rico. Necessitarão quatro noites para desfrutar plenamente do evento. O custo da diária é U$130 (dólares americanos) para duas pessoas (mais impostos). Admite-se duas pessoas adicionais no mesmo quarto, com acréscimo de U$25 na diária por pessoa (mais impostos). Para fazer reservas pode ligar para o telefone (787) 253-9000 ou via internet no endereço www.holidayinn.com.
Custo da inscrição:
Será oferecido coquetel e espetáculo artístico de voas vindas na cerimônia de abertura, todos os desjejuns, almoços e dois coffee-breaks de quinta a sábado, todos os materiais (pasta, papel, caneta etc.), dezenas de conferências com conferencistas internacionais e um jantar dançante na noite de sábado, pelo valor de U$200 (dólares americanos) por pessoa.
Fórum de Temas Livres – todos podem participar:
Como de praxe nos Congressos da CEPA, em Porto Rico também serão abertos espaços inteiramente livres à disposição de espíritas de qualquer parte do mundo. Um grupo de trabalho foi designado pelo Conselho Executivo para analisar previamente os pedidos de apresentação de temas livres. O grupo será coordenado por Juan Albino (Porto Rico) e integrado por Gustavo Molfino (Argentina), Maurice Herbert Jones (Brasil), Raúl Drubich (Argentina) e Ademar Arthur Chioro dos Reis (Brasil). Leia e/ou copie o Regulamento do Fórum de Temas Livres diretamente desta página que encontra-se juntamente com os livros publicados.
Para mais informações, acesse a página http://www.conocenos.org/CEPA2008/
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quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008
Reunião de desobsessão
uma abordagem kardecista
1 INTRODUÇÃO
Há uma recomendação difundida no movimento espírita brasileiro para que não se permita a presença de assistidos em reuniões de desobsessão realizadas nas casas espíritas. E o que se observa é que essa sugestão é, amiúde, fundamentada nalgumas obras psicografadas, principalmente em livros do espírito André Luiz, através das mediunidades de Francisco Xavier e de Waldo Vieira, e nalgumas psicografias do médium Divaldo Franco. A própria Federação Espírita Brasileira (FEB), em seus textos e manuais, também recomenda essa diretriz para tais reuniões.
Alguns exemplos dessa recomendação são também encontrados em livros como os do Projeto Manoel Philomeno de Miranda, que afirma, numa dessas obras, ser a privacidade –não apenas entendida como o caráter não público dos encontros mediúnicos, mas de qualquer presença estranha ao corpo de trabalhadores da casa– uma “condição normativa” e “princípio norteador” (Pugliese e outros, 2001, p.95), pois tais reuniões “não têm platéia, nem doentes interessados em curar-se, nem curiosos” (p.96). Num outro livro desse mesmo projeto, insiste-se: “Não há necessidade de franquear as reuniões aos apelantes do socorro desobsessivo” (Projeto..., 2000, p.140).
Entretanto, à revelia da disseminação dessa orientação prática às reuniões de desobsessão, a leitura cuidadosa das obras kardecistas aponta para um caminho oposto ao indicado pelo movimento espírita brasileiro. Entende-se que a presença do obsidiado não lhe traz inconvenientes e nem à reunião em questão, ao contrário, ela é benéfica ao seu melhoramento e deve ser incentivada pelas casas espíritas que buscam fundamentar suas práticas nos ensinamentos de Kardec. O que não invalida, e isso deve estar desde já bem explícito, o trabalho de assistência à distância, também citado nos textos e obras de Kardec como importante instrumento de auxílio.
Justifica-se esse estudo pela tentativa de esclarecer aqueles que, porventura, fazem suas reuniões com a presença de assistidos e sentem-se constrangidos diante dessa diretriz, como se descobrissem “erros” nas suas práticas mediúnicas, apesar do estudo contínuo e aprofundado e do bem que conseguem levar a tantas pessoas que procuram os recursos da desobsessão oferecidos em suas casas espíritas.
Para embasar a opinião sobre o tema, utiliza-se, sem parcimônia, a obra kardecista, que traz em vários pontos exemplos e discussões sobre a teoria e a prática das obsessões e desobsessões. Há referências óbvias em O livro dos espíritos, principalmente no capítulo 9 da parte 2, em O livro dos médiuns, espalhadas aqui e acolá, mas principalmente no capítulo 23 da parte 2, em A gênese, principalmente nos capítulos 14 e 15, além de inúmeros artigos espalhados pelos 12 anos da Revista espírita, editada por Kardec. Utiliza-se também, para servir de guia e modelo, das descrições dos Evangelhos que relatam as atividades de cura de Jesus durante sua experiência na Terra.
2 ARGUMENTOS DE INTERDIÇÃO
Primeiramente, cabe rever alguns dos argumentos mais utilizados para defender a ausência dos assistidos nas reuniões de desobsessão. Classificam-se em três principais: as opiniões dalguns espíritos sobre o assunto, principalmente aqueles que se utilizam de médiuns renomados; a posição da FEB, defendida através dum opúsculo intitulado Orientação ao centro espírita; e, por último, algumas citações de obras kardecistas, utilizadas descontextualizadamente.
Dos três argumentos, o mais comumente usado pelos defensores da interdição são as opiniões de espíritos sobre tal procedimento, trazidas através dalgumas obras psicografadas, todas contrárias à presença dos assistidos nas reuniões de atendimento mediúnico. Uma das obras mais citadas é a Desobsessão, ditada pelo espírito André Luiz aos médiuns Francisco Xavier e Waldo Vieira, que se propõe a ser uma orientação “à constituição e sustentação dos grupos espíritas devotados à obra libertadora e curativa da desobsessão” (Xavier, Vieira, 2004, p.18). Nessa obra, que chega a tratar da organização física do espaço utilizado pela reunião, indicando até onde devem situar-se cadeiras e bancos ou o que devem comer ou não os seus partícipes, há a orientação clara do impedimento do acesso à reunião dos que a ela chegam necessitados de auxílio, estando a esses reservados os procedimentos inicias como orientação fraterna e passes, impedindo-se a entrada posterior nas tarefas propriamente mediúnicas (p.95). Somente em casos excepcionais, de gravidade confirmada, é que o autor considera a possibilidade de acolhimento do assistido no interior da reunião como “assistência precisa” à sua enfermidade (p.96).
Já na obra Conduta espírita –psicografada pelo médium Waldo Vieira–, André Luiz é direto na sua afirmação: “abster-se da realização de sessões públicas para assistência a desencarnados sofredores” (Vieira, 1986, p.90). Tal assertiva é muito usada em textos e artigos correntes para fundamentar o impedimento da presença do obsidiado nas reuniões. Entretanto, aqui se tem um grave problema de compreensão: o que se argumenta é a participação do atendido no transcorrer da própria reunião, jamais uma reunião que seja aberta ao público. E pelas citações das obras referidas do autor espiritual, o que ele claramente coloca é a interdição da publicidade da reunião, e não a interdição absoluta da presença do atendido em seus procedimentos, apesar das ressalvas que faz para tal presença.
E é interessante comentar que vários autores, tal como acima se vê, referem-se à interdição da publicidade da reunião, com o quê aqui se concorda, sem entretanto tratar especificamente da presença de obsidiados, como se lê em Obsessão/desobsessão, de Suely Schubert, ao sugerir que trabalhos mediúnicos “jamais devem ser abertos ao público” (1985, p.130); também em Mediunidade, de Richard Simonetti: “as reuniões mediúnicas devem ser privativas” (2003, p.59); ou ainda em Mediunidade, de Edgard Armond: “A assistência deve ser afastada dos ambientes de trabalho” (1999, p.203). É importante insistir em destacar que o que se propõe não é uma reunião aberta ao público, mas uma reunião de caráter estritamente privado, com a presença de assistidos, jamais espectadores.
São também usados como argumentos contrários à presença do assistido nas reuniões de desobsessão algumas obras do médium Divaldo Franco. Por exemplo, no livro do espírito João Cleofas, Suave luz nas sombras, o autor espiritual enumera alguns requisitos para a boa consecução de uma reunião, a saber: a afinidade entre participantes; a lealdade de propósitos; o comportamento no bem; a sinceridade entre os membros; o desinteresse pela frivolidade; e a vigilância na atividade (Franco, 1994, p.108-109). Opinar, como se lê em alguns artigos constantes em periódicos espíritas, que esses requisitos seriam incompatíveis com a presença do assistido é ilação desprovida de fundamento prático e racional, pois o que trata o autor espiritual é quanto à qualidade das reuniões mediúnicas, e não sobre a presença ou não de assistidos, que, como se verá, em nada desqualifica uma reunião.
Outro exemplo é a opinião do espírito Vianna de Carvalho, retirada do livro Atualidade do pensamento espírita, psicografado também pelo médium Divaldo Franco, que assevera: “Incontestavelmente, para que se realize o tratamento das obsessões, não se torna condição essencial a presença do paciente. Essa deve ser evitada, em razão do seu próprio estado de desequilíbrio psíquico e emocional” (Franco, 1988, p.172). Aqui o que se lê é uma argumentação comum: a de que a presença do enfermo poderia causar ainda mais problemas a ele devido ao seu estado de fragilidade psíquica e emocional. Isso não é real, pois os benefícios resultantes de tal prática são excepcionalmente maiores do que aqueles sem a sua presença. Seria como questionar se o tratamento médico se faz melhor sem a presença do paciente ou com a sua presença, mesmo que ele se sinta, por vezes, constrangido com alguns aspectos do tratamento.
Já o espírito Bezerra de Menezes, na obra Nas fronteiras da loucura, assinada pelo espírito Manoel Philomeno de Miranda e ditada ao médium Divaldo Franco, opina “que a presença dos que se candidatam aos benefícios não é indispensável”, e, de forma ainda mais veemente, insiste: “é o despreparo de quem se arroga as condições de dirigente de sessões que responde pela incompetência” (Franco, 1982, p.120), falando daqueles dirigentes que levam seus assistidos às reuniões de desobsessão.
É certo que esses espíritos acima mencionados têm uma credibilidade acima de qualquer questionamento, mas não invalida o fato de serem espíritos imperfeitos como todos nós, que trazem suas opiniões e idéias mitigadas pelas experiências individuais, e limitadas ao seu nível de conhecimento e evolução espiritual. Portanto podem, e devem, ser tratados como pessoas, iguais a todos, com seus preconceitos e imperfeições, apenas despojados de seu invólucro carnal. Não é porque emitiram suas opiniões que se deve, a partir de então, segui-las, como se fossem revelações de novas verdades plenas, transcendentais. Justo por considerá-los como todos os espíritos envolvidos de forma direta com o labor terreno, não se deve vê-los como mentores, nem os adjetivar de veneráveis, superiores ou outros qualificativos idólatras, como sói acontecer no místico movimento espírita brasileiro. O respeito por eles é demonstrado através da análise rigorosa de seus conteúdos, lição inesquecível dos espíritos que participaram das obras kardecistas. Posto isso, cabe agora comparar suas opiniões com o que se encontra nos textos básicos do espiritismo, e percebe-se, então, não haver fundamento nessa restrição prática da atividade mediúnica, o que ficará explicitado mais adiante nesse texto.
O segundo argumento utilizado para justificar a opinião contrária à presença dos obsidiados nas sessões de atendimento mediúnico é uma recomendação da Federação Espírita Brasileira (FEB), aprovada pelo Conselho Federativo Nacional, firmada através de obra já citada, que se propõe a normalizar o funcionamento das casas espíritas, conforme o texto original. Nessa obra, a FEB argumenta a participação “de muitos estudiosos e dedicados obreiros” (FEB, 1985, p.11) para transformar suas opiniões em “princípios e normas básicas” (FEB, 1985, p.11), interpretando as orientações dadas pelo espírito André Luiz, na obra Desobsessão, na qual afirma a necessidade desse tipo de reunião: “Com base nessa afirmativa do espírito André Luiz, no intróito da obra Desobsessão, [...] e nas instruções dadas por ele neste livro para a realização das reuniões privativas (sem público) destinadas à desobsessão, elas deverão ser assim processadas” (FEB, 1985, p.34)[1], e aí se seguem as normas estabelecidas, definindo etapas e informando até mesmo os minutos a serem gastos em cada uma delas.
Acredita-se dever ser avaliada por todos os espíritas a criação de “princípios e normas básicas” a partir da opinião dum único espírito, e ainda mais, se cabe ao espírito essa tarefa ou aos encarnados. E mais grave, se se é possível falar em normalização dentro do meio espírita, mesmo que se queira argumentar a unificação. Outra avaliação que se faz quanto a essa argumentação é o esquecimento que a FEB, e todas as federações e uniões estaduais e municipais, são um conjunto de homens e mulheres envolvidos com idéias e propostas bem definidas, e que, portanto, nunca serão a representação plena de todo o movimento espírita, espalhado numa plêiade incontável de casas espíritas pelo Brasil. Por conta dessa reunião de pessoas em torno da FEB, é que se pode compreender algumas opiniões por ela emitidas, como as do Reformador, seu órgão de divulgação doutrinária, em julho de 1953, que afirma que “todo aquele que crê nas manifestações dos espíritos é espírita; ora, o umbandista nelas crê, logo o umbandista é espírita”, e vai além dizendo que “os que aceitam o fenômeno espírita como manifestação de ‘Satanás’, ou como ocasionado somente por forças desconhecidas, esses não são espíritas; mas aqueles que o têm como produzidos por espíritos, esses devem ser considerados como adeptos do espiritismo, isto é, espiritistas, admitam ou não a reencarnação e pratiquem ou não rituais que nós não adotamos” (FEB, 1953). É fato, e não se poderia esquecer, que a FEB se retratou no próprio Reformador de setembro de 1977, através de um editorial afirmando que a “Doutrina espírita é o conjunto de princípios básicos, codificados por Allan Kardec, que constituem o espiritismo. Estes princípios estão contidos nas obras fundamentais, que são: O livro dos espíritos, O livro dos médiuns, O evangelho segundo o espiritismo, O céu e o inferno e A gênese” (FEB, 1977). Essas citações são apenas para que não se esqueça os limites de atuação da FEB enquanto um dos órgãos de aglutinação do movimento espírita, mas nunca a representante do espiritismo, pois sempre estará sujeita às opiniões de pessoas da sua direção, e que podem ir de encontro aos princípios fundamentais do espiritismo, como a defesa longa e quase ingênua das obras de Roustaing, que se fazem constar inclusive em seus estatutos.
O terceiro, e último, dos principais argumentos trazidos pelos textos e artigos que buscam defender a idéia da interdição é mais profundo e requer uma análise mais acurada. Trata-se de citações de obras kardecistas com o propósito de fundamentar a recomendação da ausência do assistido nas reuniões mediúnicas. Se essa foi uma recomendação explícita de Kardec em suas obras, não há porque não acolher tal recomendação. Os fragmentos citados são geralmente os seguintes: 1) em O livro dos médiuns, no capítulo 29 da parte 2, itens 331 e 332, capítulo que trata das reuniões e sociedades espíritas (Kardec, 1996, p.427-428). Nesses fragmentos, Kardec versa sobre as condições ideais para que se tenha uma boa reunião espírita, falando da necessária homogeneidade de pensamentos e da dificuldade de encontrá-la em reuniões muito numerosas; e 2) na Revista espírita, de fevereiro de 1866, que descreve os procedimentos do Sr. Dombre em alguns processos de desobsessão acontecidos em Marmande, com alguns comentários de Kardec, em que afirma os benefícios das curas operadas à distância (Kardec, 1993c, p.38-43).
3 A EXPERIÊNCIA KARDECISTA
Inicialmente, devem-se contextualizar as palavras de Kardec nesses trechos citados de O livro dos médiuns. A Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, como se lê no seu regulamento, “tem por objeto o estudo de todos os fenômenos relativos às manifestações espíritas e suas aplicações às ciências morais, físicas, históricas e psicológicas” (Kardec, 1996, p.445), e Kardec ainda reafirma em artigo da Revista espírita: “Com este objetivo, recolhemos os fatos, examinamo-los, escrutamo-los naquilo que têm de mais íntimo, nós o comentamos, discutimo-los friamente, sem entusiasmo, e foi assim que chegamos a descobrir o admirável encadeamento em todas as partes dessa vasta ciência que toca os mais graves interesses da humanidade. Tal foi, até o presente, senhores, o objeto de nossos trabalhos, objeto perfeitamente caracterizado pelo simples título de Sociedade de Estudos Espíritas que adotamos” (Kardec, 2001, p.132). Portanto, quando fala no necessário controle de pessoas estranhas às reuniões, Kardec tem toda a razão, pois seria inconveniente a presença de estranhos que viessem às reuniões mediúnicas de estudo com o firme propósito de ver fraude e charlatanismo, ou que simplesmente buscassem seu convencimento das realidades espirituais, pois no mesmo artigo diz ainda: “as nossas sessões não são sessões de demonstração, sua publicidade não alcançaria, pois, o objetivo, e teria graves inconvenientes; com um público sem seleção, trazendo mais curiosidade do que desejo verdadeiro de se instruir, e ainda mais desejoso de criticar e escarnecer, seria impossível ter o recolhimento indispensável para toda manifestação séria” (p.131). Colocada essa questão com clareza, compreendem-se bem suas afirmações contidas no capítulo 29 de O livro dos médiuns, utilizadas, acredita-se, inadequadamente como refutação kardecista à presença de assistidos às reuniões de desobsessão. Kardec não realizou reuniões de desobsessão, a não ser de forma esporádica, e sob alguma solicitação, como se vêem exemplos espalhados por toda a Revista espírita.
Se não eram os argumentos kardecistas contidos em O livro dos médiuns referentes a reuniões de desobsessão, fica, dessarte, resolvida a primeira questão acerca das citações de Kardec, resta tratar da citação da Revista espírita que descreve os procedimentos do grupo a qual pertencia o Sr. Dombre em processos de desobsessão em Marmande. A passagem citada, contida na Revista espírita de fevereiro de 1866, não é a única que relata os fatos ocorridos em Marmande, há ainda outras cinco citações, respectivamente em fevereiro, março e junho de 1864, janeiro de 1865 e em junho de 1867. Todas essas descrições do Sr. Dombre sobre os fatos ocorridos em Marmande e circunvizinhança trazem os procedimentos de seu grupo no acompanhamento e cura de processos obsessivos. Um dos casos mais interessantes é, sem dúvida, o da jovem Thérèse B., que tinha crises regulares, todas as tardes, havia mais de oito meses, narrado nos textos de 1864. Ao entrar em contato com o guia espiritual do médium, Sr. L., que acompanhara o Sr. Dombre, foram instados a evocar todas as noites o espírito obsessor e a moralizá-lo, chamando-o pelo nome de Jules. Do dia 11 de janeiro, dia da primeira reunião, ao dia 18, os procedimentos foram feitos regularmente na casa da jovem vitimada pela grave obsessão, com as presenças de parentes e da própria menina. É no dia 16 de janeiro que Jules, o espírito obsessor, vira-se para a jovem e diz: “Terna criança (se dirige à sua vítima presente à sessão), tu que escolhi por minha presa, como o abutre a doce pomba, ora por mim, e que o nome de condenado se apague de tua memória. Recebi o batismo de amor das mãos do anjo do Senhor, e hoje visto a roupa da inocência. Pobre criança, desejo que tuas preces dirigidas por mim ao Senhor me livrem logo do remorso que vai-me seguir como uma expiação justamente merecida” (Kardec, 1993a, p.176). Ao final do relato do Sr. Dombre, Kardec tece alguns comentários: “Devemos um justo tributo de elogio aos nossos irmãos de Marmande, pelo tato, a prudência e o devotamento esclarecido dos quais deram prova nessa circunstância. Por este brilhante sucesso, Deus recompensou sua fé, sua perseverança e seu desinteresse moral, porque nisso não procuraram nenhuma satisfação de amor-próprio; provavelmente, não teria ali ocorrido o mesmo se o orgulho tivesse deslustrado a sua boa ação” (p.178). Os textos falam por si, não seriam necessários comentários adicionais, mas por conta da evidência, ressalta-se o procedimento do Sr. Dombre nesse caso, que mantém a presença da menina (de apenas treze anos!) durante a evocação do espírito que a atormenta; e, mais importante, os comentários gravemente elogiosos de Kardec aos procedimentos corretos do grupo de Marmande, refutando qualquer hipótese de fundamentar a ausência do assistido nas reuniões de desobsessão através de textos kardecistas.
Já no texto de janeiro de 1865, num novo relato de cura de obsessão feita pelo círculo espírita de Marmande, vê-se outra jovem, também de treze anos, Valentine Laurent, ter crises convulsivas que se renovavam várias vezes por dia. Após o uso de recursos vários, médicos e párocos, o grupo resolveu evocar seus guias espirituais e receberam a recomendação de evocar o espírito obsessor, nomeando-o Germaine. Convidando o pai da jovem, realizaram uma primeira sessão em 16 de setembro de 1864, com a finalidade de iniciar o trabalho de moralização de Germaine e de mostrar ao pai da vítima a verdadeira razão do problema de sua filha. A partir do dia 17 de setembro, o Sr. Dombre freqüentou a casa da família diariamente para testemunhar as crises e conhecer melhor o problema. No dia 21 de setembro, convidou pai e filha, a menina Valentine, para estarem presentes à reunião (Kardec, 1993b, p.10), e, lá, o grupo recebeu de seus guias uma mensagem a ser passada ao espírito: “Germaine, sois nossa irmã; esta jovem é também nossa irmã e a vossa. Se outrora alguma ação funesta vos ligou, e fez pesar sobre vós duas a justiça divina, não podeis dobrar o Juiz supremo. [...] Nesta família onde provocais a maldição, não será falado de vós senão o bem; haverá ali reconhecimento; essa criança pedirá também por vós, e se o ódio vos desuniu, o amor um dia vos reunirá” (p.10-11). Continua mais adiante o Sr. Dombre: “O dia 23 passou sem crise, como o da véspera. À noite a jovem vai com seu pai à sessão, para ouvir Germaine por quem ela já levava muito interesse” (p.16). E ainda no mesmo texto, após o processo de moralização de Germaine já ter resultados, lê-se o diálogo entre a menina e o espírito: “‘Dizei-me todos, tu sobretudo, pobre jovem, que me perdoais. Tenho necessidade de ouvir esta palavra sair de teu coração. Dai-me, se vos apraz, essa consolação’. A jovem Valentine lhe disse: ‘Sim, Germaine, eu vos perdôo; muito mais, vos amo!’” (p.17). Aqui, mais uma vez, os textos citados são límpidos, não restando qualquer argumentação contrária quanto ao fato da presença da jovem nas reuniões, e mais, participando inclusive dos diálogos com o espírito obsessor.
Só os fatos relatados nos casos de Marmande já seriam bastante suficientes para rechaçar qualquer argumentação contrária à presença dos assistidos nas reuniões de desobsessão. Todavia, não se limitará a eles, para não haver qualquer possibilidade de dúvidas sobre esse ponto. Visita-se agora um caso relatado pelo Sr. Delanne, no número de maio de 1865, no qual conta: “Numa outra sessão, fez-se a evocação do espírito que obsidiava, há dez anos, um operário chamado Joseph, agora em vias de cura. Jamais fiquei tão penosamente emocionado quanto em presença das dores do paciente no momento da evocação; calmo de início, foi tomado de repente de sobressaltos, de espasmos e de tremores nervosos; assim tomado por seu inimigo invisível e se agitou em convulsões terríveis; o peito se enche, sufoca, depois, retomando sua respiração, se contorce como uma serpente, rola na terra, se levanta de um pulo, se bate na cabeça. Não pronunciava senão palavras entrecortadas, sobretudo a palavra: Não! Não! O médium, que é uma senhora, estava em prece; ela tomou a pena, e eis que o invisível deixando sua presa por um instante, se apoderou de sua mão, e o teria assassinado se o deixasse fazê-lo” (Kardec, 1993b, p.143). Aqui Delanne relata curas através de seu grupo espírita, com a presença do assistido.
Ainda outro caso, relatado no número de junho de 1865, de uma cura realizada pelo grupo de espíritas de Barcelona, na Espanha, informa que a Sra. Rose N., atingida muitos anos “por ataques espasmódicos que se repetiam muito freqüentemente e com violência” (Kardec, 1993b, p.173), recorreu a vários recursos médicos e religiosos, sem qualquer resultado. Em julho de 1864 o grupo teve notícias do fato e se propôs a auxiliar a pobre senhora, afirmando o relato: “Aceitamos com zelo essa ocasião de fazer uma boa obra; reunimos vários adeptos sinceros, e fizemos vir a doente. Alguns minutos bastaram para reconhecer a causa da doença de Rose; era, com efeito, uma obsessão das mais terríveis. Tivemos muita dificuldade em fazer o obsessor vir ao nosso chamado. Ele foi muito violento, nos respondeu algumas palavras sem nexo, e logo se lançou com uma fúria sobre sua vítima, à qual deu uma crise violenta que foi, no entanto, logo acalmada pelo magnetizador” (p.174). O relato afirma que depois de algumas reuniões mediúnicas de moralização do espírito, sempre com a presença da vítima, essa estava completamente curada. Após o caso exposto, Kardec faz algumas considerações e afirma: “Os fatos de curas como este, como os de Marmande e outros não menos meritórios, sem dúvida, são um encorajamento; são também excelentes lições práticas que mostram a quais resultados se podem chegar pela fé, pela perseverança, e uma sábia e inteligente direção” (p.177). Aqui cabem alguns comentários adicionais, além de Kardec elogiar peremptoriamente o trabalho realizado pelo grupo de Barcelona. Enquanto o espírito Bezerra de Menezes, segundo citações já comentadas, chama os dirigentes de reuniões de desobsessão, que contam com a presença dos assistidos, de incompetentes e despreparados, Kardec os chama de sábios e inteligentes.
Se ainda restar um mínimo de dúvida sobre esse ponto, cita-se ainda o caso relatado na Revista espírita de junho de 1867, no artigo Nova sociedade espírita de Bordeaux, no qual o seu presidente, Sr. Peyranne, descreve as atividades desse grupo espírita no seu relatório anual, e dentre essas atividades fala da desobsessão: “Há de resto, em Bordeaux, muitos casos de obsessão, e uma sessão por semana especialmente consagrada à evocação e à moralização dos obsessores está longe de ser suficiente, uma vez que o médium curador, acompanhado de um médium escrevente, de um evocador e, freqüentemente, de certos de nossos irmãos, vai ao domicílio dos doentes, a fim de treinar os obsessores e ali virem mais facilmente, lado a lado” (Kardec, 1993d, p.178). Após esse e outros relatos, Kardec comenta: “Não podemos senão aplaudir o programa da Sociedade de Bordeaux e felicitá-la por seu devotamento e a inteligente direção de seus trabalhos. [...] A maneira pela qual ela procede para o tratamento das obsessões é ao mesmo tempo notável e instrutiva, e melhor prova de que essa maneira é boa, é de que ela triunfa” (p.181). Aqui se vê Kardec, mais uma vez, elogiando a direção da casa pela forma como conduz seus trabalhos, e sobre a reunião de desobsessão, especificamente, é contundente, adjetivando-a de “notável e instrutiva”.
Como já dito no início desse estudo, e demonstrado pelas citações da Revista espírita, Kardec dá preferência à presença dos assistidos nas reuniões de acompanhamento mediúnico de desobsessão, não obstante não invalidar a possibilidade do atendimento à distância. Inclusive, na região de Marmande, no artigo de fevereiro de 1866, que foi utilizado para afirmar a contrariedade de Kardec em relação à presença de assistidos em reuniões de desobsessão, há um relato de uma cura de obsessão operada à distância. Nele, o assistido, um camponês vitimado “de uma loucura de tal modo furiosa, que perseguia as pessoas a golpes de forcado para matá-las, e que na falta de pessoas, atacava os animais do galinheiro” (Kardec, 1993c, p.40), residia numa aldeia distante algumas léguas da região de Marmande. A família do camponês foi orientada a interná-lo em uma casa para alienados, mas antes de executar tal orientação, “um de seus parentes tendo ouvido falar das curas obtidas em Marmande, em casos semelhantes, veio procurar o Sr. Dombre e lhe disse: ‘Senhor, me disseram que curais os loucos, é por isso que venho vos procurar’” (p.40). A partir desse momento, não sem antes consultar seus guias espirituais, o grupo de Marmande passou a evocar o espírito obsessor do camponês, e solicitou que o parente os procurasse em Marmande a cada dois dias para dar notícias sobre o assistido. Após oito dias de reuniões, conseguiram moralizar o espírito que perseguia o camponês, que passou a apresentar melhorias sensíveis em seu comportamento social. Kardec se vê admirado com o resultado e comenta: “Poder-se-ia colocar à conta da imaginação as curas operadas à distância, sobre pessoas que jamais se viram, sem emprego de nenhum agente material qualquer” (p.41). Percebe-se, portanto, que Kardec, longe de recriminar a presença do assistido, antes se entusiasma com os resultados obtidos, apesar da sua ausência.
Mas em vários casos cuja presença do atendido é inviável, talvez pela distância ou pela impossibilidade de locomoção (problema bem superado pelo grupo de Bordeaux), o acompanhamento à distância e as preces são o melhor meio de assisti-lo. Um exemplo que se vê na Revista espírita de janeiro de 1863, quando discute os fenômenos de Morzine, ilustra essa possibilidade. É uma cura através de preces relatada por um membro da Sociedade Espírita de Paris, de uma jovem que casou de forma contrariada, o que “levou-a a uma alteração em suas faculdades mentais” (Kardec, 2000, p.5). Um espírito superior orientou-o assim: “A idéia fixa dessa senhora, por sua própria causa, atrai, ao seu redor, uma multidão de espíritos maus que a envolvem com seu fluido, mantendo-a em suas idéias, e impedindo que cheguem a ela as boas influências. Os espíritos dessa natureza pululam sempre nos meios semelhantes ao que ela se encontra, e são, freqüentemente, um obstáculo à cura dos enfermos. No entanto, podeis curá-la, mas é preciso para isso uma força moral capaz de vencer a resistência, e essa força não é dada a um só. Que cinco ou seis espíritas sinceros se reúnam todos os dias, durante alguns instantes, e peçam com fervor a Deus e aos bons espíritos para assisti-la; que vossa ardente prece seja, ao mesmo tempo, uma magnetização mental; não tendes, para isto, necessidade de estar junto dela, ao contrário; pelo pensamento podeis levar sobre ela uma corrente fluídica salutar [...]” (p.6).
Em fevereiro de 1863, ainda tratando dos problemas de Morzine, Kardec relata um delírio sofrido por um senhor de seu conhecimento que reside em outra cidade da província. Atendido por médicos, foi diagnosticada loucura e recomendado que fosse internado numa casa de saúde. Dispondo-se a ajudar, Kardec consulta um espírito sobre o problema, e esse afirma: “Esse senhor não é louco, mas da maneira a que isso se prende, poderia tornar-se; bem mais, poderia matá-lo. O remédio para o seu mal está no próprio espiritismo, e é tomado em contra-senso” (Kardec, 2000, p.35). Kardec então pergunta: “Poder-se-ia agir sobre ele daqui?” (p.35), e o espírito responde: “Sim, sem dúvida; podeis fazer-lhe o bem, mas vossa ação é paralisada pela má vontade daqueles que o cercam” (p.35). A pergunta de Kardec, se para ele fosse normal a ausência do assistido em suas reuniões, soaria incompreensível. Claro que se perguntou, é porque não estava convicto da eficácia do atendimento à distância.
Citam-se agora alguns trechos do Evangelho, conforme o capítulo 15 de A gênese, nos quais Jesus opera curas em homens possessos. Em Mc 1, 21-27, lê-se que “achava-se na sinagoga um homem possesso de um espírito impuro, que exclamou: – Que há entre ti e nós, Jesus de Nazaré? Vieste para nos perder? Sei quem és: és o santo de Deus. – Jesus, porém, falando-lhe ameaçadoramente, disse: Cala-te e sai desse homem. – Então, o espírito impuro, agitando o homem em violentas convulsões, saiu dele. Ficaram todos tão surpreendidos que uns aos outros perguntavam: Que é isto? Que nova doutrina é esta? Ele dá ordem com império, até aos espíritos impuros, e estes lhe obedecem” (Kardec, 1984, p.327-328). O homem doente estava na sinagoga, no meio de todos, e lá Jesus expulsa o espírito impuro. Em Mt 9, 32-34, apresentam a Jesus “um homem mudo, possesso do demônio” (p.328), que ele cura no meio do povo. Em Mc 9, 13-28, Jesus pede, em torno de uma grande multidão, ao pai de um rapaz, possesso de um espírito mudo, que lho traga para curá-lo. Em Mt 12, 22-28, apresentam-lhe um possesso surdo e mudo que ele cura no meio do povo. Há ainda outras passagens de curas de obsessões realizadas por Jesus, e vê-se, em quase todas, o procedimento de levar os doentes à presença de Jesus, e a cura acontecer à vista de todos. Kardec, comentando essas passagens, diz que a “prova da participação de uma inteligência oculta, em tal caso, ressalta de um fato material: são as múltiplas curas radicais obtidas, nalguns centros espíritas, pela só evocação e doutrinação dos espíritos obsessores, sem magnetização, nem medicamentos e, muitas vezes, na ausência do paciente e a grande distância deste” (p.329-330), ressaltando, mais uma vez, o fato de que a cura das obsessões na ausência dos assistidos ser também uma possibilidade real.
A desobsessão é tarefa essencial de qualquer casa espírita que queira seguir as orientações dos espíritos que participaram da obra kardecista, como se vê em O livro dos médiuns, no qual os espíritos propõem como atividade regular, após pergunta de Kardec, reuniões que visassem o auxílio aos espíritos errantes: “P. Não se pode também combater a influência dos maus espíritos, moralizando-os? R. Sim, mas é o que não se faz e é o que não se deve descurar de fazer, porquanto, muitas vezes, isso constitui uma tarefa que vos é dada e que deveis desempenhar caridosa e religiosamente. Por meio de sábios conselhos, é possível induzi-los ao arrependimento e apressar-lhes o progresso” (Kardec, 1996, p.322); ou ainda em O livro dos espíritos, pergunta 476: “P. Mas, não pode acontecer que a fascinação exercida pelo mau espírito seja de tal ordem que o subjugado não a perceba? Sendo assim, poderá uma terceira pessoa fazer que cesse a sujeição da outra? E, nesse caso, qual deve ser a condição dessa terceira pessoa? R. Sendo ela um homem de bem, a sua vontade poderá ter eficácia, desde que apele para o concurso dos bons espíritos, porque, quanto mais digna for a pessoa, tanto maior poder terá sobre os espíritos imperfeitos, para afastá-los, e sobre os bons, para os atrair. Todavia, nada poderá, se o que estiver subjugado não lhe prestar o seu concurso. Há pessoas a quem agrada uma dependência que lhes lisonjeia os gostos e os desejos. Qualquer, porém, que seja o caso, aquele que não tiver puro o coração nenhuma influência exercerá. Os bons espíritos não lhe atendem ao chamado e os maus não o temem” (Kardec, 1995, p.251). E o método de evocação de espíritos também é colocado em O livro dos médiuns: “Convém igualmente que só com muita prudência se façam evocações, na ausência das pessoas que as pediram, sendo mesmo preferível que não sejam feitas nessas condições, visto que somente aquelas pessoas se acham aptas a analisar as respostas, a julgar da identidade, a provocar esclarecimentos, se for oportuno, e a formular questões incidentes, que as circunstâncias indiquem. Além disso, a presença delas é um laço que atrai o espírito, quase sempre pouco disposto a se comunicar com estranhos, que lhes não inspiram nenhuma simpatia” (Kardec, 1996, p.351).
4 CONCLUSÃO
Diante de evidências tão explícitas, de exemplos tão contundentes, seria, no mínimo, incoerência afirmar a adesão de Kardec à sugestão dos espíritos e da FEB para que não se façam reuniões de desobsessão com a presença dos atendidos. Ao contrário, como já afirmado, sugere-se às casas espíritas que verdadeiramente querem seguir as orientações kardecistas que façam, por caridade e eficácia, seus atendidos adentrarem suas reuniões de desobsessão, deixando o atendimento sem sua presença limitado às necessidades pontuais, como a distância ou uma doença impeditiva. Isso não significa afirmar que as reuniões tornar-se-ão públicas, visto que o caráter privativo e íntimo dos encontros mediúnicos continua muito bem preservado.
NOTA
[1] Em 2007 a FEB lançou uma nova edição desse manual, com novo texto aprovado pelo Conselho Federativo Nacional, seu órgão deliberativo, em reunião de novembro de 2006. Na nova edição, as referências à obra de André Luiz como base para a reunião de desobsessão desapareceram, sem, entretanto, deixar de referir-se à necessidade da ausência de assistidos na reunião: “Deve-se evitar a presença de pessoas necessitadas de auxílio espiritual durante a fase de manifestação dos espíritos” (FEB, 2007, p.63).
BIBLIOGRAFIA
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1 INTRODUÇÃO
Há uma recomendação difundida no movimento espírita brasileiro para que não se permita a presença de assistidos em reuniões de desobsessão realizadas nas casas espíritas. E o que se observa é que essa sugestão é, amiúde, fundamentada nalgumas obras psicografadas, principalmente em livros do espírito André Luiz, através das mediunidades de Francisco Xavier e de Waldo Vieira, e nalgumas psicografias do médium Divaldo Franco. A própria Federação Espírita Brasileira (FEB), em seus textos e manuais, também recomenda essa diretriz para tais reuniões.
Alguns exemplos dessa recomendação são também encontrados em livros como os do Projeto Manoel Philomeno de Miranda, que afirma, numa dessas obras, ser a privacidade –não apenas entendida como o caráter não público dos encontros mediúnicos, mas de qualquer presença estranha ao corpo de trabalhadores da casa– uma “condição normativa” e “princípio norteador” (Pugliese e outros, 2001, p.95), pois tais reuniões “não têm platéia, nem doentes interessados em curar-se, nem curiosos” (p.96). Num outro livro desse mesmo projeto, insiste-se: “Não há necessidade de franquear as reuniões aos apelantes do socorro desobsessivo” (Projeto..., 2000, p.140).
Entretanto, à revelia da disseminação dessa orientação prática às reuniões de desobsessão, a leitura cuidadosa das obras kardecistas aponta para um caminho oposto ao indicado pelo movimento espírita brasileiro. Entende-se que a presença do obsidiado não lhe traz inconvenientes e nem à reunião em questão, ao contrário, ela é benéfica ao seu melhoramento e deve ser incentivada pelas casas espíritas que buscam fundamentar suas práticas nos ensinamentos de Kardec. O que não invalida, e isso deve estar desde já bem explícito, o trabalho de assistência à distância, também citado nos textos e obras de Kardec como importante instrumento de auxílio.
Justifica-se esse estudo pela tentativa de esclarecer aqueles que, porventura, fazem suas reuniões com a presença de assistidos e sentem-se constrangidos diante dessa diretriz, como se descobrissem “erros” nas suas práticas mediúnicas, apesar do estudo contínuo e aprofundado e do bem que conseguem levar a tantas pessoas que procuram os recursos da desobsessão oferecidos em suas casas espíritas.
Para embasar a opinião sobre o tema, utiliza-se, sem parcimônia, a obra kardecista, que traz em vários pontos exemplos e discussões sobre a teoria e a prática das obsessões e desobsessões. Há referências óbvias em O livro dos espíritos, principalmente no capítulo 9 da parte 2, em O livro dos médiuns, espalhadas aqui e acolá, mas principalmente no capítulo 23 da parte 2, em A gênese, principalmente nos capítulos 14 e 15, além de inúmeros artigos espalhados pelos 12 anos da Revista espírita, editada por Kardec. Utiliza-se também, para servir de guia e modelo, das descrições dos Evangelhos que relatam as atividades de cura de Jesus durante sua experiência na Terra.
2 ARGUMENTOS DE INTERDIÇÃO
Primeiramente, cabe rever alguns dos argumentos mais utilizados para defender a ausência dos assistidos nas reuniões de desobsessão. Classificam-se em três principais: as opiniões dalguns espíritos sobre o assunto, principalmente aqueles que se utilizam de médiuns renomados; a posição da FEB, defendida através dum opúsculo intitulado Orientação ao centro espírita; e, por último, algumas citações de obras kardecistas, utilizadas descontextualizadamente.
Dos três argumentos, o mais comumente usado pelos defensores da interdição são as opiniões de espíritos sobre tal procedimento, trazidas através dalgumas obras psicografadas, todas contrárias à presença dos assistidos nas reuniões de atendimento mediúnico. Uma das obras mais citadas é a Desobsessão, ditada pelo espírito André Luiz aos médiuns Francisco Xavier e Waldo Vieira, que se propõe a ser uma orientação “à constituição e sustentação dos grupos espíritas devotados à obra libertadora e curativa da desobsessão” (Xavier, Vieira, 2004, p.18). Nessa obra, que chega a tratar da organização física do espaço utilizado pela reunião, indicando até onde devem situar-se cadeiras e bancos ou o que devem comer ou não os seus partícipes, há a orientação clara do impedimento do acesso à reunião dos que a ela chegam necessitados de auxílio, estando a esses reservados os procedimentos inicias como orientação fraterna e passes, impedindo-se a entrada posterior nas tarefas propriamente mediúnicas (p.95). Somente em casos excepcionais, de gravidade confirmada, é que o autor considera a possibilidade de acolhimento do assistido no interior da reunião como “assistência precisa” à sua enfermidade (p.96).
Já na obra Conduta espírita –psicografada pelo médium Waldo Vieira–, André Luiz é direto na sua afirmação: “abster-se da realização de sessões públicas para assistência a desencarnados sofredores” (Vieira, 1986, p.90). Tal assertiva é muito usada em textos e artigos correntes para fundamentar o impedimento da presença do obsidiado nas reuniões. Entretanto, aqui se tem um grave problema de compreensão: o que se argumenta é a participação do atendido no transcorrer da própria reunião, jamais uma reunião que seja aberta ao público. E pelas citações das obras referidas do autor espiritual, o que ele claramente coloca é a interdição da publicidade da reunião, e não a interdição absoluta da presença do atendido em seus procedimentos, apesar das ressalvas que faz para tal presença.
E é interessante comentar que vários autores, tal como acima se vê, referem-se à interdição da publicidade da reunião, com o quê aqui se concorda, sem entretanto tratar especificamente da presença de obsidiados, como se lê em Obsessão/desobsessão, de Suely Schubert, ao sugerir que trabalhos mediúnicos “jamais devem ser abertos ao público” (1985, p.130); também em Mediunidade, de Richard Simonetti: “as reuniões mediúnicas devem ser privativas” (2003, p.59); ou ainda em Mediunidade, de Edgard Armond: “A assistência deve ser afastada dos ambientes de trabalho” (1999, p.203). É importante insistir em destacar que o que se propõe não é uma reunião aberta ao público, mas uma reunião de caráter estritamente privado, com a presença de assistidos, jamais espectadores.
São também usados como argumentos contrários à presença do assistido nas reuniões de desobsessão algumas obras do médium Divaldo Franco. Por exemplo, no livro do espírito João Cleofas, Suave luz nas sombras, o autor espiritual enumera alguns requisitos para a boa consecução de uma reunião, a saber: a afinidade entre participantes; a lealdade de propósitos; o comportamento no bem; a sinceridade entre os membros; o desinteresse pela frivolidade; e a vigilância na atividade (Franco, 1994, p.108-109). Opinar, como se lê em alguns artigos constantes em periódicos espíritas, que esses requisitos seriam incompatíveis com a presença do assistido é ilação desprovida de fundamento prático e racional, pois o que trata o autor espiritual é quanto à qualidade das reuniões mediúnicas, e não sobre a presença ou não de assistidos, que, como se verá, em nada desqualifica uma reunião.
Outro exemplo é a opinião do espírito Vianna de Carvalho, retirada do livro Atualidade do pensamento espírita, psicografado também pelo médium Divaldo Franco, que assevera: “Incontestavelmente, para que se realize o tratamento das obsessões, não se torna condição essencial a presença do paciente. Essa deve ser evitada, em razão do seu próprio estado de desequilíbrio psíquico e emocional” (Franco, 1988, p.172). Aqui o que se lê é uma argumentação comum: a de que a presença do enfermo poderia causar ainda mais problemas a ele devido ao seu estado de fragilidade psíquica e emocional. Isso não é real, pois os benefícios resultantes de tal prática são excepcionalmente maiores do que aqueles sem a sua presença. Seria como questionar se o tratamento médico se faz melhor sem a presença do paciente ou com a sua presença, mesmo que ele se sinta, por vezes, constrangido com alguns aspectos do tratamento.
Já o espírito Bezerra de Menezes, na obra Nas fronteiras da loucura, assinada pelo espírito Manoel Philomeno de Miranda e ditada ao médium Divaldo Franco, opina “que a presença dos que se candidatam aos benefícios não é indispensável”, e, de forma ainda mais veemente, insiste: “é o despreparo de quem se arroga as condições de dirigente de sessões que responde pela incompetência” (Franco, 1982, p.120), falando daqueles dirigentes que levam seus assistidos às reuniões de desobsessão.
É certo que esses espíritos acima mencionados têm uma credibilidade acima de qualquer questionamento, mas não invalida o fato de serem espíritos imperfeitos como todos nós, que trazem suas opiniões e idéias mitigadas pelas experiências individuais, e limitadas ao seu nível de conhecimento e evolução espiritual. Portanto podem, e devem, ser tratados como pessoas, iguais a todos, com seus preconceitos e imperfeições, apenas despojados de seu invólucro carnal. Não é porque emitiram suas opiniões que se deve, a partir de então, segui-las, como se fossem revelações de novas verdades plenas, transcendentais. Justo por considerá-los como todos os espíritos envolvidos de forma direta com o labor terreno, não se deve vê-los como mentores, nem os adjetivar de veneráveis, superiores ou outros qualificativos idólatras, como sói acontecer no místico movimento espírita brasileiro. O respeito por eles é demonstrado através da análise rigorosa de seus conteúdos, lição inesquecível dos espíritos que participaram das obras kardecistas. Posto isso, cabe agora comparar suas opiniões com o que se encontra nos textos básicos do espiritismo, e percebe-se, então, não haver fundamento nessa restrição prática da atividade mediúnica, o que ficará explicitado mais adiante nesse texto.
O segundo argumento utilizado para justificar a opinião contrária à presença dos obsidiados nas sessões de atendimento mediúnico é uma recomendação da Federação Espírita Brasileira (FEB), aprovada pelo Conselho Federativo Nacional, firmada através de obra já citada, que se propõe a normalizar o funcionamento das casas espíritas, conforme o texto original. Nessa obra, a FEB argumenta a participação “de muitos estudiosos e dedicados obreiros” (FEB, 1985, p.11) para transformar suas opiniões em “princípios e normas básicas” (FEB, 1985, p.11), interpretando as orientações dadas pelo espírito André Luiz, na obra Desobsessão, na qual afirma a necessidade desse tipo de reunião: “Com base nessa afirmativa do espírito André Luiz, no intróito da obra Desobsessão, [...] e nas instruções dadas por ele neste livro para a realização das reuniões privativas (sem público) destinadas à desobsessão, elas deverão ser assim processadas” (FEB, 1985, p.34)[1], e aí se seguem as normas estabelecidas, definindo etapas e informando até mesmo os minutos a serem gastos em cada uma delas.
Acredita-se dever ser avaliada por todos os espíritas a criação de “princípios e normas básicas” a partir da opinião dum único espírito, e ainda mais, se cabe ao espírito essa tarefa ou aos encarnados. E mais grave, se se é possível falar em normalização dentro do meio espírita, mesmo que se queira argumentar a unificação. Outra avaliação que se faz quanto a essa argumentação é o esquecimento que a FEB, e todas as federações e uniões estaduais e municipais, são um conjunto de homens e mulheres envolvidos com idéias e propostas bem definidas, e que, portanto, nunca serão a representação plena de todo o movimento espírita, espalhado numa plêiade incontável de casas espíritas pelo Brasil. Por conta dessa reunião de pessoas em torno da FEB, é que se pode compreender algumas opiniões por ela emitidas, como as do Reformador, seu órgão de divulgação doutrinária, em julho de 1953, que afirma que “todo aquele que crê nas manifestações dos espíritos é espírita; ora, o umbandista nelas crê, logo o umbandista é espírita”, e vai além dizendo que “os que aceitam o fenômeno espírita como manifestação de ‘Satanás’, ou como ocasionado somente por forças desconhecidas, esses não são espíritas; mas aqueles que o têm como produzidos por espíritos, esses devem ser considerados como adeptos do espiritismo, isto é, espiritistas, admitam ou não a reencarnação e pratiquem ou não rituais que nós não adotamos” (FEB, 1953). É fato, e não se poderia esquecer, que a FEB se retratou no próprio Reformador de setembro de 1977, através de um editorial afirmando que a “Doutrina espírita é o conjunto de princípios básicos, codificados por Allan Kardec, que constituem o espiritismo. Estes princípios estão contidos nas obras fundamentais, que são: O livro dos espíritos, O livro dos médiuns, O evangelho segundo o espiritismo, O céu e o inferno e A gênese” (FEB, 1977). Essas citações são apenas para que não se esqueça os limites de atuação da FEB enquanto um dos órgãos de aglutinação do movimento espírita, mas nunca a representante do espiritismo, pois sempre estará sujeita às opiniões de pessoas da sua direção, e que podem ir de encontro aos princípios fundamentais do espiritismo, como a defesa longa e quase ingênua das obras de Roustaing, que se fazem constar inclusive em seus estatutos.
O terceiro, e último, dos principais argumentos trazidos pelos textos e artigos que buscam defender a idéia da interdição é mais profundo e requer uma análise mais acurada. Trata-se de citações de obras kardecistas com o propósito de fundamentar a recomendação da ausência do assistido nas reuniões mediúnicas. Se essa foi uma recomendação explícita de Kardec em suas obras, não há porque não acolher tal recomendação. Os fragmentos citados são geralmente os seguintes: 1) em O livro dos médiuns, no capítulo 29 da parte 2, itens 331 e 332, capítulo que trata das reuniões e sociedades espíritas (Kardec, 1996, p.427-428). Nesses fragmentos, Kardec versa sobre as condições ideais para que se tenha uma boa reunião espírita, falando da necessária homogeneidade de pensamentos e da dificuldade de encontrá-la em reuniões muito numerosas; e 2) na Revista espírita, de fevereiro de 1866, que descreve os procedimentos do Sr. Dombre em alguns processos de desobsessão acontecidos em Marmande, com alguns comentários de Kardec, em que afirma os benefícios das curas operadas à distância (Kardec, 1993c, p.38-43).
3 A EXPERIÊNCIA KARDECISTA
Inicialmente, devem-se contextualizar as palavras de Kardec nesses trechos citados de O livro dos médiuns. A Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, como se lê no seu regulamento, “tem por objeto o estudo de todos os fenômenos relativos às manifestações espíritas e suas aplicações às ciências morais, físicas, históricas e psicológicas” (Kardec, 1996, p.445), e Kardec ainda reafirma em artigo da Revista espírita: “Com este objetivo, recolhemos os fatos, examinamo-los, escrutamo-los naquilo que têm de mais íntimo, nós o comentamos, discutimo-los friamente, sem entusiasmo, e foi assim que chegamos a descobrir o admirável encadeamento em todas as partes dessa vasta ciência que toca os mais graves interesses da humanidade. Tal foi, até o presente, senhores, o objeto de nossos trabalhos, objeto perfeitamente caracterizado pelo simples título de Sociedade de Estudos Espíritas que adotamos” (Kardec, 2001, p.132). Portanto, quando fala no necessário controle de pessoas estranhas às reuniões, Kardec tem toda a razão, pois seria inconveniente a presença de estranhos que viessem às reuniões mediúnicas de estudo com o firme propósito de ver fraude e charlatanismo, ou que simplesmente buscassem seu convencimento das realidades espirituais, pois no mesmo artigo diz ainda: “as nossas sessões não são sessões de demonstração, sua publicidade não alcançaria, pois, o objetivo, e teria graves inconvenientes; com um público sem seleção, trazendo mais curiosidade do que desejo verdadeiro de se instruir, e ainda mais desejoso de criticar e escarnecer, seria impossível ter o recolhimento indispensável para toda manifestação séria” (p.131). Colocada essa questão com clareza, compreendem-se bem suas afirmações contidas no capítulo 29 de O livro dos médiuns, utilizadas, acredita-se, inadequadamente como refutação kardecista à presença de assistidos às reuniões de desobsessão. Kardec não realizou reuniões de desobsessão, a não ser de forma esporádica, e sob alguma solicitação, como se vêem exemplos espalhados por toda a Revista espírita.
Se não eram os argumentos kardecistas contidos em O livro dos médiuns referentes a reuniões de desobsessão, fica, dessarte, resolvida a primeira questão acerca das citações de Kardec, resta tratar da citação da Revista espírita que descreve os procedimentos do grupo a qual pertencia o Sr. Dombre em processos de desobsessão em Marmande. A passagem citada, contida na Revista espírita de fevereiro de 1866, não é a única que relata os fatos ocorridos em Marmande, há ainda outras cinco citações, respectivamente em fevereiro, março e junho de 1864, janeiro de 1865 e em junho de 1867. Todas essas descrições do Sr. Dombre sobre os fatos ocorridos em Marmande e circunvizinhança trazem os procedimentos de seu grupo no acompanhamento e cura de processos obsessivos. Um dos casos mais interessantes é, sem dúvida, o da jovem Thérèse B., que tinha crises regulares, todas as tardes, havia mais de oito meses, narrado nos textos de 1864. Ao entrar em contato com o guia espiritual do médium, Sr. L., que acompanhara o Sr. Dombre, foram instados a evocar todas as noites o espírito obsessor e a moralizá-lo, chamando-o pelo nome de Jules. Do dia 11 de janeiro, dia da primeira reunião, ao dia 18, os procedimentos foram feitos regularmente na casa da jovem vitimada pela grave obsessão, com as presenças de parentes e da própria menina. É no dia 16 de janeiro que Jules, o espírito obsessor, vira-se para a jovem e diz: “Terna criança (se dirige à sua vítima presente à sessão), tu que escolhi por minha presa, como o abutre a doce pomba, ora por mim, e que o nome de condenado se apague de tua memória. Recebi o batismo de amor das mãos do anjo do Senhor, e hoje visto a roupa da inocência. Pobre criança, desejo que tuas preces dirigidas por mim ao Senhor me livrem logo do remorso que vai-me seguir como uma expiação justamente merecida” (Kardec, 1993a, p.176). Ao final do relato do Sr. Dombre, Kardec tece alguns comentários: “Devemos um justo tributo de elogio aos nossos irmãos de Marmande, pelo tato, a prudência e o devotamento esclarecido dos quais deram prova nessa circunstância. Por este brilhante sucesso, Deus recompensou sua fé, sua perseverança e seu desinteresse moral, porque nisso não procuraram nenhuma satisfação de amor-próprio; provavelmente, não teria ali ocorrido o mesmo se o orgulho tivesse deslustrado a sua boa ação” (p.178). Os textos falam por si, não seriam necessários comentários adicionais, mas por conta da evidência, ressalta-se o procedimento do Sr. Dombre nesse caso, que mantém a presença da menina (de apenas treze anos!) durante a evocação do espírito que a atormenta; e, mais importante, os comentários gravemente elogiosos de Kardec aos procedimentos corretos do grupo de Marmande, refutando qualquer hipótese de fundamentar a ausência do assistido nas reuniões de desobsessão através de textos kardecistas.
Já no texto de janeiro de 1865, num novo relato de cura de obsessão feita pelo círculo espírita de Marmande, vê-se outra jovem, também de treze anos, Valentine Laurent, ter crises convulsivas que se renovavam várias vezes por dia. Após o uso de recursos vários, médicos e párocos, o grupo resolveu evocar seus guias espirituais e receberam a recomendação de evocar o espírito obsessor, nomeando-o Germaine. Convidando o pai da jovem, realizaram uma primeira sessão em 16 de setembro de 1864, com a finalidade de iniciar o trabalho de moralização de Germaine e de mostrar ao pai da vítima a verdadeira razão do problema de sua filha. A partir do dia 17 de setembro, o Sr. Dombre freqüentou a casa da família diariamente para testemunhar as crises e conhecer melhor o problema. No dia 21 de setembro, convidou pai e filha, a menina Valentine, para estarem presentes à reunião (Kardec, 1993b, p.10), e, lá, o grupo recebeu de seus guias uma mensagem a ser passada ao espírito: “Germaine, sois nossa irmã; esta jovem é também nossa irmã e a vossa. Se outrora alguma ação funesta vos ligou, e fez pesar sobre vós duas a justiça divina, não podeis dobrar o Juiz supremo. [...] Nesta família onde provocais a maldição, não será falado de vós senão o bem; haverá ali reconhecimento; essa criança pedirá também por vós, e se o ódio vos desuniu, o amor um dia vos reunirá” (p.10-11). Continua mais adiante o Sr. Dombre: “O dia 23 passou sem crise, como o da véspera. À noite a jovem vai com seu pai à sessão, para ouvir Germaine por quem ela já levava muito interesse” (p.16). E ainda no mesmo texto, após o processo de moralização de Germaine já ter resultados, lê-se o diálogo entre a menina e o espírito: “‘Dizei-me todos, tu sobretudo, pobre jovem, que me perdoais. Tenho necessidade de ouvir esta palavra sair de teu coração. Dai-me, se vos apraz, essa consolação’. A jovem Valentine lhe disse: ‘Sim, Germaine, eu vos perdôo; muito mais, vos amo!’” (p.17). Aqui, mais uma vez, os textos citados são límpidos, não restando qualquer argumentação contrária quanto ao fato da presença da jovem nas reuniões, e mais, participando inclusive dos diálogos com o espírito obsessor.
Só os fatos relatados nos casos de Marmande já seriam bastante suficientes para rechaçar qualquer argumentação contrária à presença dos assistidos nas reuniões de desobsessão. Todavia, não se limitará a eles, para não haver qualquer possibilidade de dúvidas sobre esse ponto. Visita-se agora um caso relatado pelo Sr. Delanne, no número de maio de 1865, no qual conta: “Numa outra sessão, fez-se a evocação do espírito que obsidiava, há dez anos, um operário chamado Joseph, agora em vias de cura. Jamais fiquei tão penosamente emocionado quanto em presença das dores do paciente no momento da evocação; calmo de início, foi tomado de repente de sobressaltos, de espasmos e de tremores nervosos; assim tomado por seu inimigo invisível e se agitou em convulsões terríveis; o peito se enche, sufoca, depois, retomando sua respiração, se contorce como uma serpente, rola na terra, se levanta de um pulo, se bate na cabeça. Não pronunciava senão palavras entrecortadas, sobretudo a palavra: Não! Não! O médium, que é uma senhora, estava em prece; ela tomou a pena, e eis que o invisível deixando sua presa por um instante, se apoderou de sua mão, e o teria assassinado se o deixasse fazê-lo” (Kardec, 1993b, p.143). Aqui Delanne relata curas através de seu grupo espírita, com a presença do assistido.
Ainda outro caso, relatado no número de junho de 1865, de uma cura realizada pelo grupo de espíritas de Barcelona, na Espanha, informa que a Sra. Rose N., atingida muitos anos “por ataques espasmódicos que se repetiam muito freqüentemente e com violência” (Kardec, 1993b, p.173), recorreu a vários recursos médicos e religiosos, sem qualquer resultado. Em julho de 1864 o grupo teve notícias do fato e se propôs a auxiliar a pobre senhora, afirmando o relato: “Aceitamos com zelo essa ocasião de fazer uma boa obra; reunimos vários adeptos sinceros, e fizemos vir a doente. Alguns minutos bastaram para reconhecer a causa da doença de Rose; era, com efeito, uma obsessão das mais terríveis. Tivemos muita dificuldade em fazer o obsessor vir ao nosso chamado. Ele foi muito violento, nos respondeu algumas palavras sem nexo, e logo se lançou com uma fúria sobre sua vítima, à qual deu uma crise violenta que foi, no entanto, logo acalmada pelo magnetizador” (p.174). O relato afirma que depois de algumas reuniões mediúnicas de moralização do espírito, sempre com a presença da vítima, essa estava completamente curada. Após o caso exposto, Kardec faz algumas considerações e afirma: “Os fatos de curas como este, como os de Marmande e outros não menos meritórios, sem dúvida, são um encorajamento; são também excelentes lições práticas que mostram a quais resultados se podem chegar pela fé, pela perseverança, e uma sábia e inteligente direção” (p.177). Aqui cabem alguns comentários adicionais, além de Kardec elogiar peremptoriamente o trabalho realizado pelo grupo de Barcelona. Enquanto o espírito Bezerra de Menezes, segundo citações já comentadas, chama os dirigentes de reuniões de desobsessão, que contam com a presença dos assistidos, de incompetentes e despreparados, Kardec os chama de sábios e inteligentes.
Se ainda restar um mínimo de dúvida sobre esse ponto, cita-se ainda o caso relatado na Revista espírita de junho de 1867, no artigo Nova sociedade espírita de Bordeaux, no qual o seu presidente, Sr. Peyranne, descreve as atividades desse grupo espírita no seu relatório anual, e dentre essas atividades fala da desobsessão: “Há de resto, em Bordeaux, muitos casos de obsessão, e uma sessão por semana especialmente consagrada à evocação e à moralização dos obsessores está longe de ser suficiente, uma vez que o médium curador, acompanhado de um médium escrevente, de um evocador e, freqüentemente, de certos de nossos irmãos, vai ao domicílio dos doentes, a fim de treinar os obsessores e ali virem mais facilmente, lado a lado” (Kardec, 1993d, p.178). Após esse e outros relatos, Kardec comenta: “Não podemos senão aplaudir o programa da Sociedade de Bordeaux e felicitá-la por seu devotamento e a inteligente direção de seus trabalhos. [...] A maneira pela qual ela procede para o tratamento das obsessões é ao mesmo tempo notável e instrutiva, e melhor prova de que essa maneira é boa, é de que ela triunfa” (p.181). Aqui se vê Kardec, mais uma vez, elogiando a direção da casa pela forma como conduz seus trabalhos, e sobre a reunião de desobsessão, especificamente, é contundente, adjetivando-a de “notável e instrutiva”.
Como já dito no início desse estudo, e demonstrado pelas citações da Revista espírita, Kardec dá preferência à presença dos assistidos nas reuniões de acompanhamento mediúnico de desobsessão, não obstante não invalidar a possibilidade do atendimento à distância. Inclusive, na região de Marmande, no artigo de fevereiro de 1866, que foi utilizado para afirmar a contrariedade de Kardec em relação à presença de assistidos em reuniões de desobsessão, há um relato de uma cura de obsessão operada à distância. Nele, o assistido, um camponês vitimado “de uma loucura de tal modo furiosa, que perseguia as pessoas a golpes de forcado para matá-las, e que na falta de pessoas, atacava os animais do galinheiro” (Kardec, 1993c, p.40), residia numa aldeia distante algumas léguas da região de Marmande. A família do camponês foi orientada a interná-lo em uma casa para alienados, mas antes de executar tal orientação, “um de seus parentes tendo ouvido falar das curas obtidas em Marmande, em casos semelhantes, veio procurar o Sr. Dombre e lhe disse: ‘Senhor, me disseram que curais os loucos, é por isso que venho vos procurar’” (p.40). A partir desse momento, não sem antes consultar seus guias espirituais, o grupo de Marmande passou a evocar o espírito obsessor do camponês, e solicitou que o parente os procurasse em Marmande a cada dois dias para dar notícias sobre o assistido. Após oito dias de reuniões, conseguiram moralizar o espírito que perseguia o camponês, que passou a apresentar melhorias sensíveis em seu comportamento social. Kardec se vê admirado com o resultado e comenta: “Poder-se-ia colocar à conta da imaginação as curas operadas à distância, sobre pessoas que jamais se viram, sem emprego de nenhum agente material qualquer” (p.41). Percebe-se, portanto, que Kardec, longe de recriminar a presença do assistido, antes se entusiasma com os resultados obtidos, apesar da sua ausência.
Mas em vários casos cuja presença do atendido é inviável, talvez pela distância ou pela impossibilidade de locomoção (problema bem superado pelo grupo de Bordeaux), o acompanhamento à distância e as preces são o melhor meio de assisti-lo. Um exemplo que se vê na Revista espírita de janeiro de 1863, quando discute os fenômenos de Morzine, ilustra essa possibilidade. É uma cura através de preces relatada por um membro da Sociedade Espírita de Paris, de uma jovem que casou de forma contrariada, o que “levou-a a uma alteração em suas faculdades mentais” (Kardec, 2000, p.5). Um espírito superior orientou-o assim: “A idéia fixa dessa senhora, por sua própria causa, atrai, ao seu redor, uma multidão de espíritos maus que a envolvem com seu fluido, mantendo-a em suas idéias, e impedindo que cheguem a ela as boas influências. Os espíritos dessa natureza pululam sempre nos meios semelhantes ao que ela se encontra, e são, freqüentemente, um obstáculo à cura dos enfermos. No entanto, podeis curá-la, mas é preciso para isso uma força moral capaz de vencer a resistência, e essa força não é dada a um só. Que cinco ou seis espíritas sinceros se reúnam todos os dias, durante alguns instantes, e peçam com fervor a Deus e aos bons espíritos para assisti-la; que vossa ardente prece seja, ao mesmo tempo, uma magnetização mental; não tendes, para isto, necessidade de estar junto dela, ao contrário; pelo pensamento podeis levar sobre ela uma corrente fluídica salutar [...]” (p.6).
Em fevereiro de 1863, ainda tratando dos problemas de Morzine, Kardec relata um delírio sofrido por um senhor de seu conhecimento que reside em outra cidade da província. Atendido por médicos, foi diagnosticada loucura e recomendado que fosse internado numa casa de saúde. Dispondo-se a ajudar, Kardec consulta um espírito sobre o problema, e esse afirma: “Esse senhor não é louco, mas da maneira a que isso se prende, poderia tornar-se; bem mais, poderia matá-lo. O remédio para o seu mal está no próprio espiritismo, e é tomado em contra-senso” (Kardec, 2000, p.35). Kardec então pergunta: “Poder-se-ia agir sobre ele daqui?” (p.35), e o espírito responde: “Sim, sem dúvida; podeis fazer-lhe o bem, mas vossa ação é paralisada pela má vontade daqueles que o cercam” (p.35). A pergunta de Kardec, se para ele fosse normal a ausência do assistido em suas reuniões, soaria incompreensível. Claro que se perguntou, é porque não estava convicto da eficácia do atendimento à distância.
Citam-se agora alguns trechos do Evangelho, conforme o capítulo 15 de A gênese, nos quais Jesus opera curas em homens possessos. Em Mc 1, 21-27, lê-se que “achava-se na sinagoga um homem possesso de um espírito impuro, que exclamou: – Que há entre ti e nós, Jesus de Nazaré? Vieste para nos perder? Sei quem és: és o santo de Deus. – Jesus, porém, falando-lhe ameaçadoramente, disse: Cala-te e sai desse homem. – Então, o espírito impuro, agitando o homem em violentas convulsões, saiu dele. Ficaram todos tão surpreendidos que uns aos outros perguntavam: Que é isto? Que nova doutrina é esta? Ele dá ordem com império, até aos espíritos impuros, e estes lhe obedecem” (Kardec, 1984, p.327-328). O homem doente estava na sinagoga, no meio de todos, e lá Jesus expulsa o espírito impuro. Em Mt 9, 32-34, apresentam a Jesus “um homem mudo, possesso do demônio” (p.328), que ele cura no meio do povo. Em Mc 9, 13-28, Jesus pede, em torno de uma grande multidão, ao pai de um rapaz, possesso de um espírito mudo, que lho traga para curá-lo. Em Mt 12, 22-28, apresentam-lhe um possesso surdo e mudo que ele cura no meio do povo. Há ainda outras passagens de curas de obsessões realizadas por Jesus, e vê-se, em quase todas, o procedimento de levar os doentes à presença de Jesus, e a cura acontecer à vista de todos. Kardec, comentando essas passagens, diz que a “prova da participação de uma inteligência oculta, em tal caso, ressalta de um fato material: são as múltiplas curas radicais obtidas, nalguns centros espíritas, pela só evocação e doutrinação dos espíritos obsessores, sem magnetização, nem medicamentos e, muitas vezes, na ausência do paciente e a grande distância deste” (p.329-330), ressaltando, mais uma vez, o fato de que a cura das obsessões na ausência dos assistidos ser também uma possibilidade real.
A desobsessão é tarefa essencial de qualquer casa espírita que queira seguir as orientações dos espíritos que participaram da obra kardecista, como se vê em O livro dos médiuns, no qual os espíritos propõem como atividade regular, após pergunta de Kardec, reuniões que visassem o auxílio aos espíritos errantes: “P. Não se pode também combater a influência dos maus espíritos, moralizando-os? R. Sim, mas é o que não se faz e é o que não se deve descurar de fazer, porquanto, muitas vezes, isso constitui uma tarefa que vos é dada e que deveis desempenhar caridosa e religiosamente. Por meio de sábios conselhos, é possível induzi-los ao arrependimento e apressar-lhes o progresso” (Kardec, 1996, p.322); ou ainda em O livro dos espíritos, pergunta 476: “P. Mas, não pode acontecer que a fascinação exercida pelo mau espírito seja de tal ordem que o subjugado não a perceba? Sendo assim, poderá uma terceira pessoa fazer que cesse a sujeição da outra? E, nesse caso, qual deve ser a condição dessa terceira pessoa? R. Sendo ela um homem de bem, a sua vontade poderá ter eficácia, desde que apele para o concurso dos bons espíritos, porque, quanto mais digna for a pessoa, tanto maior poder terá sobre os espíritos imperfeitos, para afastá-los, e sobre os bons, para os atrair. Todavia, nada poderá, se o que estiver subjugado não lhe prestar o seu concurso. Há pessoas a quem agrada uma dependência que lhes lisonjeia os gostos e os desejos. Qualquer, porém, que seja o caso, aquele que não tiver puro o coração nenhuma influência exercerá. Os bons espíritos não lhe atendem ao chamado e os maus não o temem” (Kardec, 1995, p.251). E o método de evocação de espíritos também é colocado em O livro dos médiuns: “Convém igualmente que só com muita prudência se façam evocações, na ausência das pessoas que as pediram, sendo mesmo preferível que não sejam feitas nessas condições, visto que somente aquelas pessoas se acham aptas a analisar as respostas, a julgar da identidade, a provocar esclarecimentos, se for oportuno, e a formular questões incidentes, que as circunstâncias indiquem. Além disso, a presença delas é um laço que atrai o espírito, quase sempre pouco disposto a se comunicar com estranhos, que lhes não inspiram nenhuma simpatia” (Kardec, 1996, p.351).
4 CONCLUSÃO
Diante de evidências tão explícitas, de exemplos tão contundentes, seria, no mínimo, incoerência afirmar a adesão de Kardec à sugestão dos espíritos e da FEB para que não se façam reuniões de desobsessão com a presença dos atendidos. Ao contrário, como já afirmado, sugere-se às casas espíritas que verdadeiramente querem seguir as orientações kardecistas que façam, por caridade e eficácia, seus atendidos adentrarem suas reuniões de desobsessão, deixando o atendimento sem sua presença limitado às necessidades pontuais, como a distância ou uma doença impeditiva. Isso não significa afirmar que as reuniões tornar-se-ão públicas, visto que o caráter privativo e íntimo dos encontros mediúnicos continua muito bem preservado.
NOTA
[1] Em 2007 a FEB lançou uma nova edição desse manual, com novo texto aprovado pelo Conselho Federativo Nacional, seu órgão deliberativo, em reunião de novembro de 2006. Na nova edição, as referências à obra de André Luiz como base para a reunião de desobsessão desapareceram, sem, entretanto, deixar de referir-se à necessidade da ausência de assistidos na reunião: “Deve-se evitar a presença de pessoas necessitadas de auxílio espiritual durante a fase de manifestação dos espíritos” (FEB, 2007, p.63).
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domingo, 3 de fevereiro de 2008
Fronteiras da ciência:
um caso prático do problema da demarcação científica
RESUMO: A epistemologia contemporânea propõe pressupostos para os limites do que se entende como ciência que são plenamente alcançados pela metapsíquica, área do conhecimento humano que estuda determinados fenômenos não explicados pelas ciências acadêmicas mais tradicionais. Ampara-se tal inferência em breve mosaico histórico dessas pesquisas, orientadas por nomes que obtiveram proeminência nos estudos científicos em campos diversos do conhecimento, e na discussão dos problemas apontados pelos críticos dos estudos metapsíquicos, demonstrando-se a precariedade dessas críticas. A metapsíquica ainda não logrou o reconhecimento de seu status como ciência por questões culturais e históricas, e não por problemas de insuficiência epistemológica.
Palavras-chave: Epistemologia. Ciência. Metapsíquica.
INTRODUÇÃO
Propõe-se uma análise nesse estudo do problema da demarcação dos limites da ciência, utilizando-se da metapsíquica como exemplo prático de problemas que se enfrentam nesse campo filosófico. Essa análise remete tanto à história da ciência quanto à epistemologia, pois o que se pretende é discutir o caminho histórico das pesquisas dos fenômenos metapsíquicos, bem como a cientificidade desse tipo de estudo, ou seja, sua possibilidade epistêmica.
Quanto à análise do aspecto histórico, percorrem-se lepidamente os caminhos que foram trilhados pela plêiade de estudiosos de áreas de conhecimento distintas que se debruçou sobre o fenômeno metapsíquico, independente das hipóteses aventadas por cada um deles.
Quanto ao aspecto filosófico, analisam-se os motivos, sejam histórico-culturais ou epistemológicos, que impedem o acesso dos estudos metapsíquicos ao status de ciência, buscando discutir as alegações formuladas historicamente para esse impedimento, como a falta de critérios metodológicos rigorosos ou a presença constante de fraudes nessa área de pesquisa. Compreender seus “obstáculos epistemológicos”, a partir do próprio estudo histórico, como sugere Bachelard (1996, p.21-2), diferenciando, entretanto, os campos distintos dessa análise –a epistemologia e a história–, é o caminho usado para se compreender a questão.
BREVE HISTÓRICO
Augustus De Morgan, famoso matemático inglês do século XIX, estudioso da lógica formal, da álgebra e do cálculo diferencial, prefaciou o livro de sua esposa, a Sra. Sophia Elizabeth De Morgan, From matter to spirit, lançado em Londres em 1863, no qual afirma: “Estou perfeitamente convencido que tenho, ambos, visto e ouvido, numa maneira que faria a descrença impossível, coisas chamadas espirituais que não podem ser tomadas por um ser racional como capazes de explicação pela impostura, coincidência ou erro” (2001, p.v). E numa de suas cartas (PODMORE, 2003, p.6), datada de julho de 1853, De Morgan relata experiências por duas horas, na presença de “oito ou nove pessoas” em sua casa, que teve com a sensitiva estadunidense Sra. Hayden, nas quais realizou diversos testes e procedimentos que pudessem suprimir a possibilidade de fraude, usando um alfabeto sobre uma mesa e argüindo-a através de questionamentos mentais, tendo como respostas batidas que se faziam ouvir quando passava uma das mãos sobre letras do referido alfabeto. De Morgan alerta, entretanto, que não teria uma teoria específica que pudesse explicar os fenômenos relatados.
Alfred Russel Wallace, naturalista e biólogo nascido no século XIX em Gales, Reino Unido, conhecido pela colaboração extensa que manteve com Charles Darwin na proposição da evolução das espécies através de mecanismos naturais, escreveu diversas obras de notável interesse científico, como Darwinism (1889) e The Malay archipelago (1869). Além dos estudos naturalistas, Wallace também se dedicou a outro tipo de fenômeno, que eram por ele também considerados naturais. Em sua obra On miracles and modern spiritualism, explica suas razões para a incursão no tema:
"É verdade, talvez, que deva afirmar que por vinte e cinco anos eu fui um completo cético da existência de todas as inteligências preter-humana ou sobre-humana, e que nem por um momento eu contemplei a possibilidade de que as maravilhas relatadas pelos espiritualistas pudessem ser literalmente verdadeiras. Se agora mudei minha opinião, é simplesmente pela força da evidência" (1896, p.132).
Nesse texto, ele relata várias experiências que organizou para testemunhar e estudar fenômenos como as mesas girantes, as pancadas sonoras, o deslocamento de objetos etc. Tais reuniões, inicialmente na casa de sensitivos conhecidos, aconteciam em sua própria residência, onde tinha maior controle sobre os resultados das experiências, pela prévia preparação de todo material utilizado. Os fatos que descreve são variados e incontestavelmente surpreendentes, levando-o a seguinte conclusão:
"Foi objetado que nós muito freqüentemente usamos a expressão que os fenômenos que testemunhamos 'não poderiam ter sido produzidos por nenhuma das pessoas presentes'. Eu mantenho que nessa situação eles não poderiam, e continuarei com essa convicção até que sejam produzidos sob condições similares e o modus operandi explicado" (1896, p.144).
Sir William Crookes, também do século XIX, químico e físico, foi descobridor em 1861 do elemento químico tálio e estudioso da espectroscopia, dos raios catódicos e da radiatividade. Suas descobertas resultaram em diversas novidades nas pesquisas físico-químicas, como os tubos de raios catódicos e de raios X. Duas de suas obras mais conhecidas são Select methods in chemical analysis (1871) e Diamonds (1909). Além de toda a sua contribuição às ciências naturais, Crookes interessou-se sobremaneira pelos fenômenos metapsíquicos, pesquisando-os com o mesmo rigor metodológico e o mesmo empenho que dedicava aos seus outros estudos. Sua obra mais conhecida nesse campo é Researches into the phenomena of spiritualism, de 1874, que condensa seus artigos publicados no Quarterly Journal of Science, de Londres, e que trata de suas experiências com os famosos sensitivos Sra. Florence Cook, Srta. Kate Fox e Daniel D. Home. Antes de iniciar seus relatos, afirma:
"Ver-se-á que todos esses fatos têm o caráter mais surpreendente, e que parecem inteiramente inconciliáveis com todas as teorias conhecidas da ciência moderna. Tendo-me assegurado da sua realidade, seria uma covardia moral negar-lhes o meu testemunho, só porque as minhas publicações precedentes foram ridicularizadas por críticos e outras pessoas que nada em absoluto conheciam do assunto, e que tinham bastante critério para ver e julgar por si mesmas se esses fenômenos eram ou não verdadeiros. Direi simplesmente tudo o que vi e o que me foi provado por experiências repetidas e verificadas, e 'tenho ainda necessidade de que me demonstrem não ser razoável esforçar-se uma pessoa por descobrir as causas de fenômenos inexplicados'" (1996, p.25-6).
Seus relatos envolvem fenômenos de materialização de espectros, como a aparição conhecida como Katie King, incluindo vasta documentação fotográfica (cf. CHÉROUX; et alli, 2004), efeitos sonoros dos mais diversos, movimentação de objetos pesados, levitação de corpos humanos etc. Seus estudos, ao lado dos de Cesare Lombroso e de Alexander Aksakof, são dos mais vastos e bem documentados que há. Ao concluir um de seus artigos que compõem sua obra espiritualista, Crookes lista oito possíveis explicações para os fenômenos que presenciou e estudou, optando por rejeitar aquelas que apenas vêem fraude, loucura coletiva ou ação inconsciente do cérebro.
Poder-se-iam ainda citar diversos nomes reconhecidos nos meios científicos e filosóficos, tais como os já acima citados Cesare Lombroso, médico italiano famoso por seus estudos em antropologia criminal, mas que também escreveu a obra Ricerche sui fenomeni ipinotici e spiritici (1901), na qual relata suas pesquisas com a poderosa sensitiva Sra. Eusapia Palladino; e Alexander Aksakof, diplomata e filósofo russo que publicou Animismus und spiritismus (1890), numa controvérsia com o filósofo alemão Eduard von Hartmann, e que levou a Rússia a formar a primeira comissão de caráter puramente científico para o estudos dos fenômenos metapsíquicos. Também o médico francês Charles Richet, prêmio Nobel de medicina em 1913 pela descoberta da soroterapia, autor de diversas obras de patologia e fisiologia humana, dedicou-se também ao estudo dessa fenomenologia, que denominou de ciência metapsíquica, discutida em obras como Traité de métapsychique (1922) e Notre sixième sens (1927); Camille Flammarion, astrônomo e físico francês, fundador da Société Astronomique de France e do Observatório de Juvisy-sur-Orge, nos arredores de Paris, entre suas obras mais conhecidas estão Astronomie populaire (1880) e L'atmosphère et les grands phénomènes de la nature (1905), além daquelas que estudam os fenômenos metapsíquicos, como L'inconnu et les problèmes psychiques (1917) e La mort et son mystère (1917); e Lord Rayleigh (John William Strutt), físico inglês, ganhador do prêmio Nobel de física em 1904 por suas pesquisas sobre gases e pela descoberta do elemento químico argônio, escreveu mais de 430 trabalhos científicos, dentre eles The theory of sound (1877-8), e relata ter-se interessado pela metapsíquica a partir da leitura dum artigo de Crookes sobre o assunto.
Entre os filósofos, destacam-se Robert Owen, socialista utópico galês que se dedicou também aos estudos do modern spiritualism, tendo escrito além de obras analíticas sobre o capitalismo e o socialismo, algumas sobre a metapsíquica, como Address on spiritual manifestations (1855); e o filósofo estadunidense William James, representante da escola pragmática e um dos fundadores da psicologia moderna, que estudou esses fenômenos através da Society for Psychical Research, em Londres, tendo afirmado:
"O que quero atestar imediatamente a seguir é a presença –no meio de todos os ingredientes da farsa– de um conhecimento verdadeiramente supranormal. Entendo por um tal conhecimento aquele cuja origem não possa ser atribuída às fontes ordinárias de informação –ou seja, os sentidos do sujeito" (1973, p.238).
No meio literário, são conhecidos os estudos do francês Victor Hugo e sua participação em sessões familiares de mesas girantes na ilha de Jersey, durante seu exílio entre os anos 1853 e 1855 (SIMON, 1996); e do escocês Sir Arthur Conan Doyle, criador da personagem Sherlock Holmes, que também se dedicou ao estudo desses fenômenos, escrevendo diversos livros sobre o tema, sendo mais conhecido The history of spiritualism (1926).
FRONTEIRAS DUMA CIÊNCIA: A METAPSÍQUICA
O mui breve e incompleto resumo histórico acima intenta ressaltar o interesse despertado em diversos estudiosos, de áreas de conhecimento distintas, acerca do fenômeno metapsíquico, já tão fastidiosamente observado e estudado. Entretanto, apesar das evidências às mancheias, a ciência formal, representada por suas variadas instituições acadêmicas, reluta em acomodar dentro de suas formalidades o estudo desse tipo de fenômeno, relegando-o a uma posição de somenos importância, ajuizando-o sempre como mera habilidade de prestidigitação ou como resultado duma superexcitação de mentes impressionáveis, ou ainda como produto de estudos mitigados de ideologias esotérico-religiosas, portanto sem critérios marcadamente científicos.
Não se pretende justificar o uso feito por linhas específicas de pensamento religioso ou filosófico da existência dos fenômenos metapsíquicos, que pretendem sempre confirmar dogmas ou fundamentar revelações para amparar suas posições sectárias. Entretanto, o uso sem critérios científicos de fatos e conhecimentos humanos não se esgota nessa única possibilidade, mas alcança todas as áreas do conhecimento, como o uso das teorias darwinistas para justificações de preconceitos dos mais diversos ou o uso de teorias filosóficas para a implantação de regimes políticos autoritários, dentre outros vários possíveis exemplos.
O que se pretende, e esse objetivo deve ser claro, é a discussão sobre os limites dos fatos que estariam sob a égide do método científico, através duma análise histórica e epistemológica. A classe de fenômenos, aqui chamados de metapsíquicos –concordando com Charles Richet (2003, p.4)–, em detrimento de outras denominações, como parapsicológicos, sobrenaturais, espirituais ou mediúnicos, escolhida por ser a de menor carga ideológica e conteúdo hipotético, não obstante toda possibilidade fraudulenta comum nesse campo de estudo, é passível de criteriosa observação e análise científica? É possível estabelecer critérios epistemológicos no estudo da metapsíquica? Ou tais fenômenos estarão fadados ad aeternum ao desinteresse da ciência formal? E em caso de o desinteresse ser ratificado, o que levou indivíduos renomados da ciência e da filosofia, como os alguns poucos aqui citados, debruçarem-se sobre essas questões? Ou, de forma mais objetiva, que tipo de fenômeno interessa à ciência? Há, para a ciência, limites e fronteiras para o estudo fenomênico? Se sim, como demarcá-los?
Bacon (2005, p.27) sugere no início do Novum organum que: “Todos aqueles que ousaram proclamar a natureza como assunto exaurido para o conhecimento, por convicção, por vezo professoral ou por ostentação, infligiram grande dano tanto à filosofia quanto às ciências”. Essa sua ilação é pertinente à questão aqui proposta, pois em todos os momentos quando a ciência, por força dalguma novidade gnosiológica, viu-se diante do inusitado ou do, até então, inexplicado, as reações comuns foram a indiferença da comunidade científica ou o repúdio mais acintoso, alcançando a zombaria e o sarcasmo, daqueles que se ousavam nas investigações do novo. Tais posturas são percebidas, por exemplo, nas afirmações de pensadores como Max Scheler e Edgar Morin, citados por Loeffler (2003, p.188), que, a respeito do enfrentamento científico dos fenômenos metapsíquicos, afirmam seu desinteresse e assumem uma postura assaz hostil; ou de Lorde Kelvin, físico escocês conhecido pelo estudo das propriedades do calor, que sentenciou:
"Mantenho-me limitado a rejeitar tudo que tenda à aceitação dessa desprezível superstição de magnetismo animal, mesas girantes, espiritualismo, clarividência e pancadas. Não há sétimo sentido místico. Clarividência e todo o resto são senão os resultados de má observação combinados com impostura intencional praticada em mentes simples e crédulas" (apud RICHET, 2003, p.7).
Mas é o próprio Bacon quem, mais uma vez, adverte:
"O que se tem constituído, de longe, no maior obstáculo ao progresso das ciências e à propensão para novas tarefas e para a abertura de novas províncias do saber é o desinteresse dos homens e a suposição de sua impossibilidade. Os homens prudentes e severos, nesse terreno, mostram-se desconfiados" (2005, p.74).
Cuidadoso como Bacon no trato dos fatos empíricos, Pierre Janet, psiquiatra e psicólogo francês da primeira metade do século XX, reconhecido como o precursor das novas visões sobre dissociação, que, apesar do forte posicionamento contrário às hipóteses não materiais, como as que atribuem esses fenômenos a inteligências extra-corpóreas, debruçou-se sobre sujeitos que apresentavam capacidades metapsíquicas no mais alto grau –o que chamou de “desagregações psicológicas”–, pois esses estudos eram, para ele, “observações psicológicas muito interessantes e refinadas que são longe de inúteis para os observadores de nossos dias” (apud ALMEIDA; LOTUFO NETO, 2004, p.132), demonstrando, portanto, o necessário espírito científico. Ainda no campo da psiquiatria, Carl G. Jung, que se dedicou sobremaneira ao estudo da metapsíquica, com diversos textos publicados sobre o tema, numa de suas cartas ao Dr. Fritz Blanke, em tom pesaroso, diz: “Infelizmente essas coisas ainda são pouco pesquisadas. É assunto para os próximos séculos” (apud ARGOLLO, 2004, p.61).
O objeto de estudo da metapsíquica é amplo e variado em suas manifestações, Charles Richet (2003, p.5) dividiu-o em fenômenos objetivos e subjetivos. Os primeiros caracterizam-se por ações de conseqüências físicas suscetíveis de mensuração instrumental e percepção sensorial, como ruídos em móveis e paredes (raps), deslocamentos de objetos (apports), materialização de espectros etc.; os outros se caracterizam pelos fenômenos psíquicos subjetivos, puramente intelectuais, como a capacidade telepática, a pré-cognição, a xenoglossia, as comunicações ditas mediúnicas, dentre outro sem-número de manifestações. Alguns desses últimos fenômenos entraram para o estudo da psicologia, como demonstram as pesquisas de Freud, Jung, Janet, James e Myers (ALMEIDA; LOTUFO NETO, 2004), que, à revelia das diferentes hipóteses aventadas, dedicaram-se a esse objeto dentro da sua própria especialidade científica.
Embora parte desses fenômenos tenha sido incorporada pelas ciências mais tradicionais, como acima dito, aqueles classificados de objetivos por Richet ainda não lograram um maior empenho da comunidade científica em sua compreensão, pois são esses os fenômenos, apesar de mais espetaculares em suas manifestações, que sofrem os maiores preconceitos por parcela significativa da comunidade científica, que prefere ignorá-los a compreendê-los com mais acuidade, como ilustra a opinião de Kelvin já citada –nesse ponto evoca-se a fala de Bachelard:
"A ciência, tanto por sua necessidade de coroamento como por princípio, opõe-se absolutamente à opinião. Se, em determinada questão, ela legitimar a opinião, é por motivos diversos daqueles que dão origem à opinião; de modo que a opinião está, de direito, sempre errada. A opinião pensa mal; não pensa: traduz necessidades em conhecimentos. Ao designar os objetos pela utilidade, ela se impede de conhecê-los. Não se pode basear nada na opinião: antes de tudo, é preciso destruí-la. Ela é o primeiro obstáculo a ser superado. Não basta, por exemplo, corrigi-la em determinados pontos, mantendo, como uma espécie de moral provisória, um conhecimento vulgar provisório. O espírito científico proíbe que tenhamos uma opinião sobre questões que não compreendemos, sobre questões que não sabemos formular com clareza" (1996, p.18).
Seria, então, uma posição pouco afeita ao espírito científico a simples negação da possibilidade do fenômeno, sem sequer o conhecer e estudar. Alguns homens, com reputação científica acima de qualquer suspeita e deveras cuidadosos para não se permitirem o engodo e a fraude, como já alguns aqui aludidos, estudaram os fenômenos objetivos com propriedade e cuidados metodológicos tais que os permitiram chegar a alguma hipótese sobre o tema. Aqui não importa que tipo de hipótese, pois se pretende apenas discutir a possibilidade científica desses estudos, e não atestar tal ou qual hipótese. Além disso, a história das ciências ilustra que muitas descobertas e estudos foram rejeitados a priori, como alguns exemplos citados por Richet que, pelo ridículo, merecem exposição literal, apesar de longa:
"Anestesia médica foi negada por Majendie. A ação dos micróbios foi contestada por vinte anos por todos os cientistas de todas as academias. Galileu foi preso por dizer que a Terra gira. Bouillaud declarou que o telefone era apenas ventriloquia. Lavoisier disse que pedras não podem cair do céu, por não haver pedras no céu. A circulação do sangue somente foi admitida após quarenta anos de discussão estéril. Numa conferência em 1827 na Academia de Ciências, meu bisavô, P. S. Girard, considerou tolice supor que a água poderia ser conduzida aos níveis superiores das casas por tubos. Em 1840, J. Muller declarou que a velocidade dos impulsos nervosos jamais poderia ser medida. Em 1699, Papin construiu o primeiro barco a vapor; cem anos depois Fulton redescobriu a possibilidade da navegação a vapor, mas ela não foi aplicada até vinte anos depois. Quando em 1892, sob a orientação do meu distinto mestre, Marey, fiz minha primeira tentativa na aviação, encontrei apenas incredulidade, desdém, e sarcasmo. Um volume poderia ser escrito sobre as censuras absurdas com que toda grande descoberta foi recebida" (2003, p.7-8).
Para que o objeto de estudo da metapsíquica esteja claro, evitando-se o problema do “obstáculo verbal”, para que não se o confunda, como a “esponja” de Bachelard (1996, p.91-102), exemplifica-se-o com os estudos de William Crookes (1996, p.19-29), que, inicialmente, imiscuía-se aos grupos espiritualistas, não como adepto, mas como pesquisador, para poder observar e estudar os fenômenos metapsíquicos, fazendo verificações e impondo algumas condições experimentais. Como se sentia, por vezes, um estorvo ao credo dos outros participantes, que viam naqueles encontros uma reunião de caráter religioso, resolveu, então, estudá-los em sua própria casa, montando um local adequado para seus experimentos e para controlá-los com mais severidade metodológica, como descreve em seus textos. Seguem alguns relatos de movimentos de objetos feitos pelo autor:
"A minha própria cadeira descreveu em parte um círculo, não estando os meus pés repousados no soalho. Sob a vista de todos os assistentes, uma cadeira veio lentamente de um canto, distante da sala, o que todas as pessoas presentes confirmaram; [...] Durante três sessões consecutivas, uma pequena mesa moveu-se lentamente pelo meio da sala, nas condições que eu tinha expressamente preparado, a fim de responder a qualquer objeção que se pudesse levantar contra esse fato. [...] Em cinco ocasiões diferentes, uma pesada mesa de sala de jantar elevou-se de algumas polegadas a um pé e meio acima do soalho, e em condições especiais que tornavam a fraude impossível. [...] Os casos mais notáveis de elevação de que fui testemunha realizaram-se com o Sr. Home. Em três ocasiões diferentes, vi-o elevar-se completamente acima do soalho da sala. [...] De cada vez, tive toda a liberdade possível para observar o fato, no momento em que ele se produzia" (1996, p.33 et seq.).
Ainda com exemplos do objeto, seguem alguns relatos de Alfred Wallace:
"Uma pequena mesa subiu verticalmente cerca de um pé do assoalho e permaneceu suspensa por cerca de vinte segundos, enquanto meu amigo, que estava sentado observando, podia ver a parte inferior da mesa com os pés livremente suspensos acima do assoalho. [...] um violão que fora colocado nas mãos da Srta. T. escorregou para o assoalho, passou sobre meus pés e veio ao Sr. R., subindo pelas suas pernas até que apareceu acima da mesa. Eu e o Sr. R. olhávamo-lo cuidadosamente o tempo todo. [...] A mesa tendo sido previamente examinada, uma folha de papel foi marcada privadamente por mim, e colocada com um lápis sob o pé central da mesa, todos presentes tinham suas mãos sobre o mesa. Após alguns minutos batidas foram ouvidas, e pegando o papel encontrei escrito à mão livre – William" (1896, p.135 et seq.).
O estudo do objeto metapsíquico, segundo Richet (2003, p.15), divide-se em quatro etapas históricas: 1) o período mítico, que vai até os estudos sobre o magnetismo animal de Franz Mesmer (1778); 2) o período magnético, que abarca o período entre Mesmer e o conhecido caso das irmãs Fox, em Hydesville, estado de Nova Iorque (1778-1847); 3) o período espiritista, que abrange o período entre as irmãs Fox e o início dos estudos científicos de William Crookes (1847-1872); e, por fim, 4) o período científico, que se inicia com Crookes e alcança os estudos de Richet. Loeffler (2003, p.278), atualizando a classificação de Richet, propõe as seguintes modificações: 4) período metapsíquico, de Crookes ao início dos estudos sobre a parapsicologia de Joseph Rhine (1872-1934); 5) período parapsicológico, de Rhine até o surgimento das pesquisas de Friedrich Jürgenson sobre a transcomunicação instrumental (1934-1967); e 6) período instrumental, que seriam os estudos atuais sobre esses fenômenos.
POSSÍVEIS PROBLEMAS EPISTEMOLÓGICOS DA METAPSÍQUICA
A classificação positivista das ciências, proposta por Comte (2005, p.61), marcou profundamente a história científica recente, pois traz consigo uma idéia que se propagou amiúde: o método das ciências naturais como paradigma de cientificidade. É tão explícita a intenção comtiana que a ciência social é nomeada de “física social”, a fim de mais aproximar seus métodos. Essa visão restrita de cientificidade, que busca unificar os métodos das ciências através do modelo metodológico das ciências naturais, malgrado sua ainda forte presença nos meios científicos, foi, durante todo o século XX, bastante criticada e transformada pelos estudiosos da epistemologia. Popper, que em alguns de seus escritos dos anos 1940 defende esse posicionamento monista em relação ao método das ciências (MOURA, 2002), afasta-se paulatinamente dessa posição, aproximando-se mais da visão do economista, e amigo pessoal, Friedrich von Hayek, que propugnava métodos distintos a áreas distintas das ciências (FERNANDEZ, 2000), como se pode ler na afirmação de sua sétima tese sobre as ciências sociais: “o errôneo e equivocado naturalismo ou cientificismo metodológico, que exige que as ciências sociais aprendam [...] das ciências da natureza o que é método científico” (1978, p.12).
Ainda no final do século XIX, os estudiosos dos fenômenos metapsíquicos já discutiam os aspectos metodológicos de suas abordagens (vê-se essa discussão em quase todos os trabalhos de vulto, como alguns já citados). E quase sempre se colocavam contrários à proposta positivista de unificar os métodos de estudo dos objetos científicos, para que se pudesse validar o caráter de ciência a determinado campo de estudo humano, sem embargo do esforço de alguns em buscar, devido à sua formação positiva, a adequação do método das ciências naturais ao estudo doutras ciências, como a metapsíquica. É notório, por exemplo, o desejo desses pesquisadores em se adaptar à linguagem e às técnicas, então predominantes, dos estudos da física, modelo maior de cientificidade para o homem do século XIX e do raiar do XX, como no já citado fragmento de Crookes (1996, p.28): “o que me foi provado por experiências repetidas e verificadas”; na idolatria do método indutivo feita por Hudson (1896, p.19): “Nada pode ser conhecido com certeza exceto por um apelo a fatos. Este é o raciocínio indutivo”; ou nos cuidados metodológicos de Cesare Lombroso (1999, p.64): “por muito repetidos e controlados por instrumentos de precisão”. O que se espera duma ciência nos moldes positivistas é justamente sua possibilidade de alcançar a objetividade do conhecimento através das repetições de experimentos em condições controladas.
Contudo, essa redução positivista nega peremptoriamente o caráter científico às humanidades, visto não ser possível, em grande parte de suas disciplinas, o uso desse expediente metodológico na abordagem de seus objetos específicos. O método observacional, em que o pesquisador precisa aguardar a ocorrência do fenômeno, sem possibilidade da sua repetição em condições controladas, é fato manifesto das ciências humanas, e, por extensão, dos estudos metapsíquicos. Essa discussão nas ciências humanas já se tornou clássica, e resultou, à revelia dalgumas contestações ainda aferrolhadas em seus idola theatri –no dizer de Bacon–, na validação do caráter científico de suas pesquisas. Alguns exemplos dessas fundamentações epistemológicas das ciências humanas são encontrados na controvérsia entre Popper e Adorno; nas abordagens metodológicas de Émile Durkheim e Max Weber no campo dos estudos sociais; nas discussões metodológicas freudianas sobre seu objeto de estudo, bem diversas dos debates epistemológicos das correntes comportamentalistas da psicologia; e na contribuição metodológica da antropologia cultural, como as de Lévi-Strauss e Franz Boas e seus estudos etnográficos e etnológicos.
Nessa mesma problemática se enquadram as pesquisas da metapsíquica de Richet ou da parapsicologia de Rhine, em muito desacreditadas pela impossibilidade de reprodução em condições controladas de diversos dos fenômenos estudados, principalmente aqueles considerados por Richet como objetivos –ele cita inclusive uma crítica feita a seus estudos, em que o autor argumenta da seguinte maneira: “Uma ciência que alega ser experimental mas confia em experimentos que não podem ser reproduzidos não é jamais uma ciência” (2003, p.6), e responde que: “Em nenhum tipo de experimento todas as condições estão absolutamente sob controle. Este axioma do método científico se aplica mais fortemente na metapsíquica do que em qualquer outra ciência” (2003, p.12)–. Bouvéry (1897, p.165-6), estudioso francês dos fenômenos metapsíquicos do final do século XIX, argumenta, diante da questão da cientificidade dessas pesquisas, que essa disciplina não se enquadra no rol das “ciências exatas, as quais realizam suas experiências à vontade”, pois “há coisas que ultrapassam o quadro das observações e das experiências de nossos laboratórios”. É interessante notar que essas exigências metodológicas, quase sempre inflexíveis, feitas aos estudos dos fenômenos objetivos metapsíquicos não se aplicam a muitas das ciências, e não apenas àquelas ligadas às humanidades, mas também às próprias ciências naturais, como a astronomia, por exemplo, que, apesar da matematização de seus princípios, é disciplina essencialmente observacional, sem possibilidades de reproduzir em condições específicas e controladas diversos de seus estudos e conclusões.
Outro aspecto criticado e lembrado como característica de pseudociência da metapsíquica é a impossibilidade de previsão fenomênica. Loeffler (2003, p.161) lembra diversos exemplos de fenômenos naturais e humanos que são carentes de previsibilidade, como abalos sísmicos e condições climáticas ou comportamentos econômicos e fatos políticos, por mais que suas ciências se esforcem em seu maior e melhor entendimento; no entanto, isso não impede que se reconheçam seus atributos científicos e sua contribuição sui generis na compreensão dos fatos abordados. Destarte, não é esse o fator que fará com que o estudo dessa ordem de fenômenos não seja considerado uma ciência, pois, não obstante alguns pressupostos metodológicos necessários ao seu enfrentamento, deve ser objeto dos estudos científicos.
Um último problema associado a essas pesquisas é a possibilidade constante de fraude. É comum o relato de indivíduos que usaram da disposição de assistentes crédulos para conseguir impressionar através de uso de subterfúgios e prestidigitação, intentando imitar essa realidade fenomênica. Não se pode negar tal prática, ela é real. Há sempre pessoas dispostas ao embuste, em qualquer das atividades humanas. E isso inclui, necessariamente, as ciências formais, sejam naturais ou humanas. São, infelizmente, comuns os relatos de pesquisadores que fraudaram determinados estudos com a precípua intenção da promoção pessoal ou por interesses outros, como o famoso caso do homem de Piltdown, fóssil que ocuparia a posição de “elo perdido”, encontrado na Inglaterra em 1912 pelo paleontologista Charles Dawson; ou o caso da fusão a frio, técnica desenvolvida para fusão nuclear a temperatura ambiente pelos pesquisadores Martin Fleischmann e Stanley Pons em 1989, que se mostrou uma farsa ainda irrealizável; e mais recentemente o médico-veterinário sul-coreano Woo-Suk Hwang que afirmou em 2005 ter conseguido clonar embriões humanos, e que mais tarde confessaria a fraude intencional na manipulação de resultados de seu trabalho. Ainda outros exemplos poder-se-iam citar, pois a lista de desvios éticos no ambiente científico é tristemente longa em extensão e ampla em suas especialidades, mas para a finalidade aqui proposta bastam os citados para se constatar que a existência da fraude e dos problemas morais no exercício da prática científica não torna a ciência uma fraude. Não é porque houve fraudes no estudo dos fósseis que a paleontologia seja uma fraude, da mesma forma, as fraudes em experiências com clonagens ou nos estudos médicos não fazem das ciências biológicas uma fraude. Se há indivíduos dispostos a fraudar fenômenos metapsíquicos, porque os há aos borbotões, mesmo que não intencionalmente, isso não significa em nenhuma hipótese que o estudo dessa gama de fenômenos seja uma fraude ou uma brincadeira para pessoas simplórias, até porque, como visto, os nomes envolvidos nessas pesquisas não permitem esse tipo de inferência.
CONCLUSÃO
Afinal, o que torna então um conhecimento científico? Para Popper, será “sempre questão de decisão ou de convenção saber o que deve ser denominado ‘ciência’ e quem deve ser chamado ‘cientista’” (1993, p.55). Stengers (1990, p.80) propõe uma solução contextual à questão: “Qualquer resposta é histórica e coletiva, ela constitui em cada época e para cada ciência o que está em jogo no trabalho dos cientistas interessados”. Deve-se então, segundo Stengers, buscar a resposta ao problema específico da metapsíquica nas questões culturais que permearam o século XX. E, sobre esse problema em particular, ela afirma:
"Rhine recriou as questões parapsicológicas de tal maneira que as respostas devem ser admitidas como científicas conforme as normas epistemológicas, mas isso não funcionou. Não é à epistemologia que se deve pedir a resposta à questão 'isso é científico?', pois não há resposta de direito, normativa, trans-histórica" (1990, p.80).
O que resta claro, então, é que a exclusão dos fenômenos que interessam à metapsíquica, acima bem delineados, e por corolário a própria metapsíquica, do campo dos estudos científicos é uma questão meramente cultural e histórica, já que esses estudos foram e estão amparados por criteriosa metodologia científica, não sendo portanto, posto comum, coerente com a proposta do espírito científico o impedimento da melhor compreensão sobre essas questões, independente das hipóteses e respostas alcançadas.
REFERÊNCIAS
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RESUMO: A epistemologia contemporânea propõe pressupostos para os limites do que se entende como ciência que são plenamente alcançados pela metapsíquica, área do conhecimento humano que estuda determinados fenômenos não explicados pelas ciências acadêmicas mais tradicionais. Ampara-se tal inferência em breve mosaico histórico dessas pesquisas, orientadas por nomes que obtiveram proeminência nos estudos científicos em campos diversos do conhecimento, e na discussão dos problemas apontados pelos críticos dos estudos metapsíquicos, demonstrando-se a precariedade dessas críticas. A metapsíquica ainda não logrou o reconhecimento de seu status como ciência por questões culturais e históricas, e não por problemas de insuficiência epistemológica.
Palavras-chave: Epistemologia. Ciência. Metapsíquica.
INTRODUÇÃO
Propõe-se uma análise nesse estudo do problema da demarcação dos limites da ciência, utilizando-se da metapsíquica como exemplo prático de problemas que se enfrentam nesse campo filosófico. Essa análise remete tanto à história da ciência quanto à epistemologia, pois o que se pretende é discutir o caminho histórico das pesquisas dos fenômenos metapsíquicos, bem como a cientificidade desse tipo de estudo, ou seja, sua possibilidade epistêmica.
Quanto à análise do aspecto histórico, percorrem-se lepidamente os caminhos que foram trilhados pela plêiade de estudiosos de áreas de conhecimento distintas que se debruçou sobre o fenômeno metapsíquico, independente das hipóteses aventadas por cada um deles.
Quanto ao aspecto filosófico, analisam-se os motivos, sejam histórico-culturais ou epistemológicos, que impedem o acesso dos estudos metapsíquicos ao status de ciência, buscando discutir as alegações formuladas historicamente para esse impedimento, como a falta de critérios metodológicos rigorosos ou a presença constante de fraudes nessa área de pesquisa. Compreender seus “obstáculos epistemológicos”, a partir do próprio estudo histórico, como sugere Bachelard (1996, p.21-2), diferenciando, entretanto, os campos distintos dessa análise –a epistemologia e a história–, é o caminho usado para se compreender a questão.
BREVE HISTÓRICO
Augustus De Morgan, famoso matemático inglês do século XIX, estudioso da lógica formal, da álgebra e do cálculo diferencial, prefaciou o livro de sua esposa, a Sra. Sophia Elizabeth De Morgan, From matter to spirit, lançado em Londres em 1863, no qual afirma: “Estou perfeitamente convencido que tenho, ambos, visto e ouvido, numa maneira que faria a descrença impossível, coisas chamadas espirituais que não podem ser tomadas por um ser racional como capazes de explicação pela impostura, coincidência ou erro” (2001, p.v). E numa de suas cartas (PODMORE, 2003, p.6), datada de julho de 1853, De Morgan relata experiências por duas horas, na presença de “oito ou nove pessoas” em sua casa, que teve com a sensitiva estadunidense Sra. Hayden, nas quais realizou diversos testes e procedimentos que pudessem suprimir a possibilidade de fraude, usando um alfabeto sobre uma mesa e argüindo-a através de questionamentos mentais, tendo como respostas batidas que se faziam ouvir quando passava uma das mãos sobre letras do referido alfabeto. De Morgan alerta, entretanto, que não teria uma teoria específica que pudesse explicar os fenômenos relatados.
Alfred Russel Wallace, naturalista e biólogo nascido no século XIX em Gales, Reino Unido, conhecido pela colaboração extensa que manteve com Charles Darwin na proposição da evolução das espécies através de mecanismos naturais, escreveu diversas obras de notável interesse científico, como Darwinism (1889) e The Malay archipelago (1869). Além dos estudos naturalistas, Wallace também se dedicou a outro tipo de fenômeno, que eram por ele também considerados naturais. Em sua obra On miracles and modern spiritualism, explica suas razões para a incursão no tema:
"É verdade, talvez, que deva afirmar que por vinte e cinco anos eu fui um completo cético da existência de todas as inteligências preter-humana ou sobre-humana, e que nem por um momento eu contemplei a possibilidade de que as maravilhas relatadas pelos espiritualistas pudessem ser literalmente verdadeiras. Se agora mudei minha opinião, é simplesmente pela força da evidência" (1896, p.132).
Nesse texto, ele relata várias experiências que organizou para testemunhar e estudar fenômenos como as mesas girantes, as pancadas sonoras, o deslocamento de objetos etc. Tais reuniões, inicialmente na casa de sensitivos conhecidos, aconteciam em sua própria residência, onde tinha maior controle sobre os resultados das experiências, pela prévia preparação de todo material utilizado. Os fatos que descreve são variados e incontestavelmente surpreendentes, levando-o a seguinte conclusão:
"Foi objetado que nós muito freqüentemente usamos a expressão que os fenômenos que testemunhamos 'não poderiam ter sido produzidos por nenhuma das pessoas presentes'. Eu mantenho que nessa situação eles não poderiam, e continuarei com essa convicção até que sejam produzidos sob condições similares e o modus operandi explicado" (1896, p.144).
Sir William Crookes, também do século XIX, químico e físico, foi descobridor em 1861 do elemento químico tálio e estudioso da espectroscopia, dos raios catódicos e da radiatividade. Suas descobertas resultaram em diversas novidades nas pesquisas físico-químicas, como os tubos de raios catódicos e de raios X. Duas de suas obras mais conhecidas são Select methods in chemical analysis (1871) e Diamonds (1909). Além de toda a sua contribuição às ciências naturais, Crookes interessou-se sobremaneira pelos fenômenos metapsíquicos, pesquisando-os com o mesmo rigor metodológico e o mesmo empenho que dedicava aos seus outros estudos. Sua obra mais conhecida nesse campo é Researches into the phenomena of spiritualism, de 1874, que condensa seus artigos publicados no Quarterly Journal of Science, de Londres, e que trata de suas experiências com os famosos sensitivos Sra. Florence Cook, Srta. Kate Fox e Daniel D. Home. Antes de iniciar seus relatos, afirma:
"Ver-se-á que todos esses fatos têm o caráter mais surpreendente, e que parecem inteiramente inconciliáveis com todas as teorias conhecidas da ciência moderna. Tendo-me assegurado da sua realidade, seria uma covardia moral negar-lhes o meu testemunho, só porque as minhas publicações precedentes foram ridicularizadas por críticos e outras pessoas que nada em absoluto conheciam do assunto, e que tinham bastante critério para ver e julgar por si mesmas se esses fenômenos eram ou não verdadeiros. Direi simplesmente tudo o que vi e o que me foi provado por experiências repetidas e verificadas, e 'tenho ainda necessidade de que me demonstrem não ser razoável esforçar-se uma pessoa por descobrir as causas de fenômenos inexplicados'" (1996, p.25-6).
Seus relatos envolvem fenômenos de materialização de espectros, como a aparição conhecida como Katie King, incluindo vasta documentação fotográfica (cf. CHÉROUX; et alli, 2004), efeitos sonoros dos mais diversos, movimentação de objetos pesados, levitação de corpos humanos etc. Seus estudos, ao lado dos de Cesare Lombroso e de Alexander Aksakof, são dos mais vastos e bem documentados que há. Ao concluir um de seus artigos que compõem sua obra espiritualista, Crookes lista oito possíveis explicações para os fenômenos que presenciou e estudou, optando por rejeitar aquelas que apenas vêem fraude, loucura coletiva ou ação inconsciente do cérebro.
Poder-se-iam ainda citar diversos nomes reconhecidos nos meios científicos e filosóficos, tais como os já acima citados Cesare Lombroso, médico italiano famoso por seus estudos em antropologia criminal, mas que também escreveu a obra Ricerche sui fenomeni ipinotici e spiritici (1901), na qual relata suas pesquisas com a poderosa sensitiva Sra. Eusapia Palladino; e Alexander Aksakof, diplomata e filósofo russo que publicou Animismus und spiritismus (1890), numa controvérsia com o filósofo alemão Eduard von Hartmann, e que levou a Rússia a formar a primeira comissão de caráter puramente científico para o estudos dos fenômenos metapsíquicos. Também o médico francês Charles Richet, prêmio Nobel de medicina em 1913 pela descoberta da soroterapia, autor de diversas obras de patologia e fisiologia humana, dedicou-se também ao estudo dessa fenomenologia, que denominou de ciência metapsíquica, discutida em obras como Traité de métapsychique (1922) e Notre sixième sens (1927); Camille Flammarion, astrônomo e físico francês, fundador da Société Astronomique de France e do Observatório de Juvisy-sur-Orge, nos arredores de Paris, entre suas obras mais conhecidas estão Astronomie populaire (1880) e L'atmosphère et les grands phénomènes de la nature (1905), além daquelas que estudam os fenômenos metapsíquicos, como L'inconnu et les problèmes psychiques (1917) e La mort et son mystère (1917); e Lord Rayleigh (John William Strutt), físico inglês, ganhador do prêmio Nobel de física em 1904 por suas pesquisas sobre gases e pela descoberta do elemento químico argônio, escreveu mais de 430 trabalhos científicos, dentre eles The theory of sound (1877-8), e relata ter-se interessado pela metapsíquica a partir da leitura dum artigo de Crookes sobre o assunto.
Entre os filósofos, destacam-se Robert Owen, socialista utópico galês que se dedicou também aos estudos do modern spiritualism, tendo escrito além de obras analíticas sobre o capitalismo e o socialismo, algumas sobre a metapsíquica, como Address on spiritual manifestations (1855); e o filósofo estadunidense William James, representante da escola pragmática e um dos fundadores da psicologia moderna, que estudou esses fenômenos através da Society for Psychical Research, em Londres, tendo afirmado:
"O que quero atestar imediatamente a seguir é a presença –no meio de todos os ingredientes da farsa– de um conhecimento verdadeiramente supranormal. Entendo por um tal conhecimento aquele cuja origem não possa ser atribuída às fontes ordinárias de informação –ou seja, os sentidos do sujeito" (1973, p.238).
No meio literário, são conhecidos os estudos do francês Victor Hugo e sua participação em sessões familiares de mesas girantes na ilha de Jersey, durante seu exílio entre os anos 1853 e 1855 (SIMON, 1996); e do escocês Sir Arthur Conan Doyle, criador da personagem Sherlock Holmes, que também se dedicou ao estudo desses fenômenos, escrevendo diversos livros sobre o tema, sendo mais conhecido The history of spiritualism (1926).
FRONTEIRAS DUMA CIÊNCIA: A METAPSÍQUICA
O mui breve e incompleto resumo histórico acima intenta ressaltar o interesse despertado em diversos estudiosos, de áreas de conhecimento distintas, acerca do fenômeno metapsíquico, já tão fastidiosamente observado e estudado. Entretanto, apesar das evidências às mancheias, a ciência formal, representada por suas variadas instituições acadêmicas, reluta em acomodar dentro de suas formalidades o estudo desse tipo de fenômeno, relegando-o a uma posição de somenos importância, ajuizando-o sempre como mera habilidade de prestidigitação ou como resultado duma superexcitação de mentes impressionáveis, ou ainda como produto de estudos mitigados de ideologias esotérico-religiosas, portanto sem critérios marcadamente científicos.
Não se pretende justificar o uso feito por linhas específicas de pensamento religioso ou filosófico da existência dos fenômenos metapsíquicos, que pretendem sempre confirmar dogmas ou fundamentar revelações para amparar suas posições sectárias. Entretanto, o uso sem critérios científicos de fatos e conhecimentos humanos não se esgota nessa única possibilidade, mas alcança todas as áreas do conhecimento, como o uso das teorias darwinistas para justificações de preconceitos dos mais diversos ou o uso de teorias filosóficas para a implantação de regimes políticos autoritários, dentre outros vários possíveis exemplos.
O que se pretende, e esse objetivo deve ser claro, é a discussão sobre os limites dos fatos que estariam sob a égide do método científico, através duma análise histórica e epistemológica. A classe de fenômenos, aqui chamados de metapsíquicos –concordando com Charles Richet (2003, p.4)–, em detrimento de outras denominações, como parapsicológicos, sobrenaturais, espirituais ou mediúnicos, escolhida por ser a de menor carga ideológica e conteúdo hipotético, não obstante toda possibilidade fraudulenta comum nesse campo de estudo, é passível de criteriosa observação e análise científica? É possível estabelecer critérios epistemológicos no estudo da metapsíquica? Ou tais fenômenos estarão fadados ad aeternum ao desinteresse da ciência formal? E em caso de o desinteresse ser ratificado, o que levou indivíduos renomados da ciência e da filosofia, como os alguns poucos aqui citados, debruçarem-se sobre essas questões? Ou, de forma mais objetiva, que tipo de fenômeno interessa à ciência? Há, para a ciência, limites e fronteiras para o estudo fenomênico? Se sim, como demarcá-los?
Bacon (2005, p.27) sugere no início do Novum organum que: “Todos aqueles que ousaram proclamar a natureza como assunto exaurido para o conhecimento, por convicção, por vezo professoral ou por ostentação, infligiram grande dano tanto à filosofia quanto às ciências”. Essa sua ilação é pertinente à questão aqui proposta, pois em todos os momentos quando a ciência, por força dalguma novidade gnosiológica, viu-se diante do inusitado ou do, até então, inexplicado, as reações comuns foram a indiferença da comunidade científica ou o repúdio mais acintoso, alcançando a zombaria e o sarcasmo, daqueles que se ousavam nas investigações do novo. Tais posturas são percebidas, por exemplo, nas afirmações de pensadores como Max Scheler e Edgar Morin, citados por Loeffler (2003, p.188), que, a respeito do enfrentamento científico dos fenômenos metapsíquicos, afirmam seu desinteresse e assumem uma postura assaz hostil; ou de Lorde Kelvin, físico escocês conhecido pelo estudo das propriedades do calor, que sentenciou:
"Mantenho-me limitado a rejeitar tudo que tenda à aceitação dessa desprezível superstição de magnetismo animal, mesas girantes, espiritualismo, clarividência e pancadas. Não há sétimo sentido místico. Clarividência e todo o resto são senão os resultados de má observação combinados com impostura intencional praticada em mentes simples e crédulas" (apud RICHET, 2003, p.7).
Mas é o próprio Bacon quem, mais uma vez, adverte:
"O que se tem constituído, de longe, no maior obstáculo ao progresso das ciências e à propensão para novas tarefas e para a abertura de novas províncias do saber é o desinteresse dos homens e a suposição de sua impossibilidade. Os homens prudentes e severos, nesse terreno, mostram-se desconfiados" (2005, p.74).
Cuidadoso como Bacon no trato dos fatos empíricos, Pierre Janet, psiquiatra e psicólogo francês da primeira metade do século XX, reconhecido como o precursor das novas visões sobre dissociação, que, apesar do forte posicionamento contrário às hipóteses não materiais, como as que atribuem esses fenômenos a inteligências extra-corpóreas, debruçou-se sobre sujeitos que apresentavam capacidades metapsíquicas no mais alto grau –o que chamou de “desagregações psicológicas”–, pois esses estudos eram, para ele, “observações psicológicas muito interessantes e refinadas que são longe de inúteis para os observadores de nossos dias” (apud ALMEIDA; LOTUFO NETO, 2004, p.132), demonstrando, portanto, o necessário espírito científico. Ainda no campo da psiquiatria, Carl G. Jung, que se dedicou sobremaneira ao estudo da metapsíquica, com diversos textos publicados sobre o tema, numa de suas cartas ao Dr. Fritz Blanke, em tom pesaroso, diz: “Infelizmente essas coisas ainda são pouco pesquisadas. É assunto para os próximos séculos” (apud ARGOLLO, 2004, p.61).
O objeto de estudo da metapsíquica é amplo e variado em suas manifestações, Charles Richet (2003, p.5) dividiu-o em fenômenos objetivos e subjetivos. Os primeiros caracterizam-se por ações de conseqüências físicas suscetíveis de mensuração instrumental e percepção sensorial, como ruídos em móveis e paredes (raps), deslocamentos de objetos (apports), materialização de espectros etc.; os outros se caracterizam pelos fenômenos psíquicos subjetivos, puramente intelectuais, como a capacidade telepática, a pré-cognição, a xenoglossia, as comunicações ditas mediúnicas, dentre outro sem-número de manifestações. Alguns desses últimos fenômenos entraram para o estudo da psicologia, como demonstram as pesquisas de Freud, Jung, Janet, James e Myers (ALMEIDA; LOTUFO NETO, 2004), que, à revelia das diferentes hipóteses aventadas, dedicaram-se a esse objeto dentro da sua própria especialidade científica.
Embora parte desses fenômenos tenha sido incorporada pelas ciências mais tradicionais, como acima dito, aqueles classificados de objetivos por Richet ainda não lograram um maior empenho da comunidade científica em sua compreensão, pois são esses os fenômenos, apesar de mais espetaculares em suas manifestações, que sofrem os maiores preconceitos por parcela significativa da comunidade científica, que prefere ignorá-los a compreendê-los com mais acuidade, como ilustra a opinião de Kelvin já citada –nesse ponto evoca-se a fala de Bachelard:
"A ciência, tanto por sua necessidade de coroamento como por princípio, opõe-se absolutamente à opinião. Se, em determinada questão, ela legitimar a opinião, é por motivos diversos daqueles que dão origem à opinião; de modo que a opinião está, de direito, sempre errada. A opinião pensa mal; não pensa: traduz necessidades em conhecimentos. Ao designar os objetos pela utilidade, ela se impede de conhecê-los. Não se pode basear nada na opinião: antes de tudo, é preciso destruí-la. Ela é o primeiro obstáculo a ser superado. Não basta, por exemplo, corrigi-la em determinados pontos, mantendo, como uma espécie de moral provisória, um conhecimento vulgar provisório. O espírito científico proíbe que tenhamos uma opinião sobre questões que não compreendemos, sobre questões que não sabemos formular com clareza" (1996, p.18).
Seria, então, uma posição pouco afeita ao espírito científico a simples negação da possibilidade do fenômeno, sem sequer o conhecer e estudar. Alguns homens, com reputação científica acima de qualquer suspeita e deveras cuidadosos para não se permitirem o engodo e a fraude, como já alguns aqui aludidos, estudaram os fenômenos objetivos com propriedade e cuidados metodológicos tais que os permitiram chegar a alguma hipótese sobre o tema. Aqui não importa que tipo de hipótese, pois se pretende apenas discutir a possibilidade científica desses estudos, e não atestar tal ou qual hipótese. Além disso, a história das ciências ilustra que muitas descobertas e estudos foram rejeitados a priori, como alguns exemplos citados por Richet que, pelo ridículo, merecem exposição literal, apesar de longa:
"Anestesia médica foi negada por Majendie. A ação dos micróbios foi contestada por vinte anos por todos os cientistas de todas as academias. Galileu foi preso por dizer que a Terra gira. Bouillaud declarou que o telefone era apenas ventriloquia. Lavoisier disse que pedras não podem cair do céu, por não haver pedras no céu. A circulação do sangue somente foi admitida após quarenta anos de discussão estéril. Numa conferência em 1827 na Academia de Ciências, meu bisavô, P. S. Girard, considerou tolice supor que a água poderia ser conduzida aos níveis superiores das casas por tubos. Em 1840, J. Muller declarou que a velocidade dos impulsos nervosos jamais poderia ser medida. Em 1699, Papin construiu o primeiro barco a vapor; cem anos depois Fulton redescobriu a possibilidade da navegação a vapor, mas ela não foi aplicada até vinte anos depois. Quando em 1892, sob a orientação do meu distinto mestre, Marey, fiz minha primeira tentativa na aviação, encontrei apenas incredulidade, desdém, e sarcasmo. Um volume poderia ser escrito sobre as censuras absurdas com que toda grande descoberta foi recebida" (2003, p.7-8).
Para que o objeto de estudo da metapsíquica esteja claro, evitando-se o problema do “obstáculo verbal”, para que não se o confunda, como a “esponja” de Bachelard (1996, p.91-102), exemplifica-se-o com os estudos de William Crookes (1996, p.19-29), que, inicialmente, imiscuía-se aos grupos espiritualistas, não como adepto, mas como pesquisador, para poder observar e estudar os fenômenos metapsíquicos, fazendo verificações e impondo algumas condições experimentais. Como se sentia, por vezes, um estorvo ao credo dos outros participantes, que viam naqueles encontros uma reunião de caráter religioso, resolveu, então, estudá-los em sua própria casa, montando um local adequado para seus experimentos e para controlá-los com mais severidade metodológica, como descreve em seus textos. Seguem alguns relatos de movimentos de objetos feitos pelo autor:
"A minha própria cadeira descreveu em parte um círculo, não estando os meus pés repousados no soalho. Sob a vista de todos os assistentes, uma cadeira veio lentamente de um canto, distante da sala, o que todas as pessoas presentes confirmaram; [...] Durante três sessões consecutivas, uma pequena mesa moveu-se lentamente pelo meio da sala, nas condições que eu tinha expressamente preparado, a fim de responder a qualquer objeção que se pudesse levantar contra esse fato. [...] Em cinco ocasiões diferentes, uma pesada mesa de sala de jantar elevou-se de algumas polegadas a um pé e meio acima do soalho, e em condições especiais que tornavam a fraude impossível. [...] Os casos mais notáveis de elevação de que fui testemunha realizaram-se com o Sr. Home. Em três ocasiões diferentes, vi-o elevar-se completamente acima do soalho da sala. [...] De cada vez, tive toda a liberdade possível para observar o fato, no momento em que ele se produzia" (1996, p.33 et seq.).
Ainda com exemplos do objeto, seguem alguns relatos de Alfred Wallace:
"Uma pequena mesa subiu verticalmente cerca de um pé do assoalho e permaneceu suspensa por cerca de vinte segundos, enquanto meu amigo, que estava sentado observando, podia ver a parte inferior da mesa com os pés livremente suspensos acima do assoalho. [...] um violão que fora colocado nas mãos da Srta. T. escorregou para o assoalho, passou sobre meus pés e veio ao Sr. R., subindo pelas suas pernas até que apareceu acima da mesa. Eu e o Sr. R. olhávamo-lo cuidadosamente o tempo todo. [...] A mesa tendo sido previamente examinada, uma folha de papel foi marcada privadamente por mim, e colocada com um lápis sob o pé central da mesa, todos presentes tinham suas mãos sobre o mesa. Após alguns minutos batidas foram ouvidas, e pegando o papel encontrei escrito à mão livre – William" (1896, p.135 et seq.).
O estudo do objeto metapsíquico, segundo Richet (2003, p.15), divide-se em quatro etapas históricas: 1) o período mítico, que vai até os estudos sobre o magnetismo animal de Franz Mesmer (1778); 2) o período magnético, que abarca o período entre Mesmer e o conhecido caso das irmãs Fox, em Hydesville, estado de Nova Iorque (1778-1847); 3) o período espiritista, que abrange o período entre as irmãs Fox e o início dos estudos científicos de William Crookes (1847-1872); e, por fim, 4) o período científico, que se inicia com Crookes e alcança os estudos de Richet. Loeffler (2003, p.278), atualizando a classificação de Richet, propõe as seguintes modificações: 4) período metapsíquico, de Crookes ao início dos estudos sobre a parapsicologia de Joseph Rhine (1872-1934); 5) período parapsicológico, de Rhine até o surgimento das pesquisas de Friedrich Jürgenson sobre a transcomunicação instrumental (1934-1967); e 6) período instrumental, que seriam os estudos atuais sobre esses fenômenos.
POSSÍVEIS PROBLEMAS EPISTEMOLÓGICOS DA METAPSÍQUICA
A classificação positivista das ciências, proposta por Comte (2005, p.61), marcou profundamente a história científica recente, pois traz consigo uma idéia que se propagou amiúde: o método das ciências naturais como paradigma de cientificidade. É tão explícita a intenção comtiana que a ciência social é nomeada de “física social”, a fim de mais aproximar seus métodos. Essa visão restrita de cientificidade, que busca unificar os métodos das ciências através do modelo metodológico das ciências naturais, malgrado sua ainda forte presença nos meios científicos, foi, durante todo o século XX, bastante criticada e transformada pelos estudiosos da epistemologia. Popper, que em alguns de seus escritos dos anos 1940 defende esse posicionamento monista em relação ao método das ciências (MOURA, 2002), afasta-se paulatinamente dessa posição, aproximando-se mais da visão do economista, e amigo pessoal, Friedrich von Hayek, que propugnava métodos distintos a áreas distintas das ciências (FERNANDEZ, 2000), como se pode ler na afirmação de sua sétima tese sobre as ciências sociais: “o errôneo e equivocado naturalismo ou cientificismo metodológico, que exige que as ciências sociais aprendam [...] das ciências da natureza o que é método científico” (1978, p.12).
Ainda no final do século XIX, os estudiosos dos fenômenos metapsíquicos já discutiam os aspectos metodológicos de suas abordagens (vê-se essa discussão em quase todos os trabalhos de vulto, como alguns já citados). E quase sempre se colocavam contrários à proposta positivista de unificar os métodos de estudo dos objetos científicos, para que se pudesse validar o caráter de ciência a determinado campo de estudo humano, sem embargo do esforço de alguns em buscar, devido à sua formação positiva, a adequação do método das ciências naturais ao estudo doutras ciências, como a metapsíquica. É notório, por exemplo, o desejo desses pesquisadores em se adaptar à linguagem e às técnicas, então predominantes, dos estudos da física, modelo maior de cientificidade para o homem do século XIX e do raiar do XX, como no já citado fragmento de Crookes (1996, p.28): “o que me foi provado por experiências repetidas e verificadas”; na idolatria do método indutivo feita por Hudson (1896, p.19): “Nada pode ser conhecido com certeza exceto por um apelo a fatos. Este é o raciocínio indutivo”; ou nos cuidados metodológicos de Cesare Lombroso (1999, p.64): “por muito repetidos e controlados por instrumentos de precisão”. O que se espera duma ciência nos moldes positivistas é justamente sua possibilidade de alcançar a objetividade do conhecimento através das repetições de experimentos em condições controladas.
Contudo, essa redução positivista nega peremptoriamente o caráter científico às humanidades, visto não ser possível, em grande parte de suas disciplinas, o uso desse expediente metodológico na abordagem de seus objetos específicos. O método observacional, em que o pesquisador precisa aguardar a ocorrência do fenômeno, sem possibilidade da sua repetição em condições controladas, é fato manifesto das ciências humanas, e, por extensão, dos estudos metapsíquicos. Essa discussão nas ciências humanas já se tornou clássica, e resultou, à revelia dalgumas contestações ainda aferrolhadas em seus idola theatri –no dizer de Bacon–, na validação do caráter científico de suas pesquisas. Alguns exemplos dessas fundamentações epistemológicas das ciências humanas são encontrados na controvérsia entre Popper e Adorno; nas abordagens metodológicas de Émile Durkheim e Max Weber no campo dos estudos sociais; nas discussões metodológicas freudianas sobre seu objeto de estudo, bem diversas dos debates epistemológicos das correntes comportamentalistas da psicologia; e na contribuição metodológica da antropologia cultural, como as de Lévi-Strauss e Franz Boas e seus estudos etnográficos e etnológicos.
Nessa mesma problemática se enquadram as pesquisas da metapsíquica de Richet ou da parapsicologia de Rhine, em muito desacreditadas pela impossibilidade de reprodução em condições controladas de diversos dos fenômenos estudados, principalmente aqueles considerados por Richet como objetivos –ele cita inclusive uma crítica feita a seus estudos, em que o autor argumenta da seguinte maneira: “Uma ciência que alega ser experimental mas confia em experimentos que não podem ser reproduzidos não é jamais uma ciência” (2003, p.6), e responde que: “Em nenhum tipo de experimento todas as condições estão absolutamente sob controle. Este axioma do método científico se aplica mais fortemente na metapsíquica do que em qualquer outra ciência” (2003, p.12)–. Bouvéry (1897, p.165-6), estudioso francês dos fenômenos metapsíquicos do final do século XIX, argumenta, diante da questão da cientificidade dessas pesquisas, que essa disciplina não se enquadra no rol das “ciências exatas, as quais realizam suas experiências à vontade”, pois “há coisas que ultrapassam o quadro das observações e das experiências de nossos laboratórios”. É interessante notar que essas exigências metodológicas, quase sempre inflexíveis, feitas aos estudos dos fenômenos objetivos metapsíquicos não se aplicam a muitas das ciências, e não apenas àquelas ligadas às humanidades, mas também às próprias ciências naturais, como a astronomia, por exemplo, que, apesar da matematização de seus princípios, é disciplina essencialmente observacional, sem possibilidades de reproduzir em condições específicas e controladas diversos de seus estudos e conclusões.
Outro aspecto criticado e lembrado como característica de pseudociência da metapsíquica é a impossibilidade de previsão fenomênica. Loeffler (2003, p.161) lembra diversos exemplos de fenômenos naturais e humanos que são carentes de previsibilidade, como abalos sísmicos e condições climáticas ou comportamentos econômicos e fatos políticos, por mais que suas ciências se esforcem em seu maior e melhor entendimento; no entanto, isso não impede que se reconheçam seus atributos científicos e sua contribuição sui generis na compreensão dos fatos abordados. Destarte, não é esse o fator que fará com que o estudo dessa ordem de fenômenos não seja considerado uma ciência, pois, não obstante alguns pressupostos metodológicos necessários ao seu enfrentamento, deve ser objeto dos estudos científicos.
Um último problema associado a essas pesquisas é a possibilidade constante de fraude. É comum o relato de indivíduos que usaram da disposição de assistentes crédulos para conseguir impressionar através de uso de subterfúgios e prestidigitação, intentando imitar essa realidade fenomênica. Não se pode negar tal prática, ela é real. Há sempre pessoas dispostas ao embuste, em qualquer das atividades humanas. E isso inclui, necessariamente, as ciências formais, sejam naturais ou humanas. São, infelizmente, comuns os relatos de pesquisadores que fraudaram determinados estudos com a precípua intenção da promoção pessoal ou por interesses outros, como o famoso caso do homem de Piltdown, fóssil que ocuparia a posição de “elo perdido”, encontrado na Inglaterra em 1912 pelo paleontologista Charles Dawson; ou o caso da fusão a frio, técnica desenvolvida para fusão nuclear a temperatura ambiente pelos pesquisadores Martin Fleischmann e Stanley Pons em 1989, que se mostrou uma farsa ainda irrealizável; e mais recentemente o médico-veterinário sul-coreano Woo-Suk Hwang que afirmou em 2005 ter conseguido clonar embriões humanos, e que mais tarde confessaria a fraude intencional na manipulação de resultados de seu trabalho. Ainda outros exemplos poder-se-iam citar, pois a lista de desvios éticos no ambiente científico é tristemente longa em extensão e ampla em suas especialidades, mas para a finalidade aqui proposta bastam os citados para se constatar que a existência da fraude e dos problemas morais no exercício da prática científica não torna a ciência uma fraude. Não é porque houve fraudes no estudo dos fósseis que a paleontologia seja uma fraude, da mesma forma, as fraudes em experiências com clonagens ou nos estudos médicos não fazem das ciências biológicas uma fraude. Se há indivíduos dispostos a fraudar fenômenos metapsíquicos, porque os há aos borbotões, mesmo que não intencionalmente, isso não significa em nenhuma hipótese que o estudo dessa gama de fenômenos seja uma fraude ou uma brincadeira para pessoas simplórias, até porque, como visto, os nomes envolvidos nessas pesquisas não permitem esse tipo de inferência.
CONCLUSÃO
Afinal, o que torna então um conhecimento científico? Para Popper, será “sempre questão de decisão ou de convenção saber o que deve ser denominado ‘ciência’ e quem deve ser chamado ‘cientista’” (1993, p.55). Stengers (1990, p.80) propõe uma solução contextual à questão: “Qualquer resposta é histórica e coletiva, ela constitui em cada época e para cada ciência o que está em jogo no trabalho dos cientistas interessados”. Deve-se então, segundo Stengers, buscar a resposta ao problema específico da metapsíquica nas questões culturais que permearam o século XX. E, sobre esse problema em particular, ela afirma:
"Rhine recriou as questões parapsicológicas de tal maneira que as respostas devem ser admitidas como científicas conforme as normas epistemológicas, mas isso não funcionou. Não é à epistemologia que se deve pedir a resposta à questão 'isso é científico?', pois não há resposta de direito, normativa, trans-histórica" (1990, p.80).
O que resta claro, então, é que a exclusão dos fenômenos que interessam à metapsíquica, acima bem delineados, e por corolário a própria metapsíquica, do campo dos estudos científicos é uma questão meramente cultural e histórica, já que esses estudos foram e estão amparados por criteriosa metodologia científica, não sendo portanto, posto comum, coerente com a proposta do espírito científico o impedimento da melhor compreensão sobre essas questões, independente das hipóteses e respostas alcançadas.
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