Os finais de tarde dos sábados em companhia dum bom café,
cujos sabor e aroma me enlevam, e rodeado de livros numa boa livraria sempre
trazem oportunidades de reflexão sobre temas que incomodam ou tangenciam
algumas de minhas ideias. E essa tarde não foi diferente. Ao deleitar-me das
novidades literárias e culturais deparei-me com uma inusitada: Pensadores que
inventaram o Brasil, do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Confesso que
relutei inicialmente em comprar e ler o novo livro do sociólogo e professor Fernando
Henrique. E também confesso que minha relutância apenas refletia meu imenso
preconceito por sua trajetória política, que, penso, macula inexoravelmente sua
trajetória acadêmica. Afinal, o presidente Cardoso foi, a meu ver,
politicamente covarde e perdeu oportunidades históricas de superar algumas de
nossas sérias dificuldades sociais e econômicas. E tal história repete-se,
infelizmente, com os governos petistas, apesar de achar que esses conseguiram
avanços um pouco mais significativos do que aquele. Mas não é de política partidária
que quero tratar, e sim de sociologia, e mais especificamente de Gilberto
Freyre, que considero um dos maiores pensadores brasileiros, quiçá o maior (não
poderia deixar de lembrar dum outro Freire, o Paulo, um gigante da filosofia da
educação).
Cumpri meu ritual bibliográfico hebdomadário: peguei o livro
que ora interessava-me, sentei-me numa mesa qualquer da cafeteria, cumprimentei
as atendentes pelo nome e, antes de ter a oportunidade de pedir meu cappuccino,
uma delas me perguntou: “o de sempre, senhor?”. Sorri, aquiesci e acresci: “bem
quente!”.
Após ritual quase religioso, desliguei-me do burburinho ao
meu redor e ajustei meu foco cognitivo à leitura em questão. As páginas foram
passando com celeridade, indicando que a leitura era por demais agradável. Sim,
eu vencera o preconceito inicial e aproveitava agora o bom texto crítico do
ex-presidente. Fui direto ao capítulo sobre Gilberto Freyre, um dos
“inventores” do pensamento brasileiro, segundo o autor. E nisso, posso
adiantar, em total acordo com minha insipiente interpretação sobre a realidade
brasileira. Sim, não há quem leia Casa-grande & senzala que não se sinta
pleno de entendimento sobre a nossa realidade social. Não é apenas um clássico
da sociologia nacional, é mais do que isso: é uma obra de arte que fala do
Brasil com mágica, beleza e ciência. Um dos livros mais impactantes que já li.
E não apenas o li, mas o estudei com os cuidados necessários à elaboração de
uma dissertação acadêmica.
Apesar de reconhecer o mérito indelével do pensamento freyreano,
o sociólogo Fernando Henrique reproduz uma crítica à sua obra que sói acontecer
no ambiente acadêmico: Freyre seria um conservador e um disseminador da ideia
da “democracia racial” brasileira, odiada por 10 entre cada 10 estudiosos das
sociologia e antropologia tupiniquins. Sua obra seria uma ode ao falacioso sistema
escravista condescendente e à visão pouco realista da situação do escravo em
terras brasileiras. E nesse jogo dicotômico, no qual reconhece valores quase
transcendentais na obra de Freyre ao mesmo tempo em que chega a propor certo
“mal estar que sua obra causou, e quem sabe ainda cause, na academia”, reforça
um preconceito quase juvenil a um constructo intelectual que beira o
insuperável na sociologia nacional.
“Seu café, senhor”, diz-me a atendente com simpatia, trazendo-me
à realidade da livraria e fazendo-me ouvir de novo o rumor do vai-e-vem e das
conversas das pessoas à minha volta. A pausa foi essencial para sorver a bebida
em seu calor original. Continuo minha leitura sempre breve na livraria, a ser
concluída em ambiente mais propício: a tranquilidade do silêncio.
Em nova imersão no texto sobre minhas mãos, lembro-me de
outras críticas já estudadas, como os comentários dos historiadores Robert Slenes
e Cristiany Rocha, que veem Freyre apenas como um defensor da ideia do
patriarcado como fonte singular da formação social brasileira, chegando a
afirmar que esse “inventor do Brasil” compara o escravo a um animal sem
controle dos instintos que vive em situação de prostituição doméstica. E aqui
não poderia deixar de citar Casa-grande & senzala explicitamente:
“temos que reconhecer o fato de que desde os dias coloniais
vêm se mantendo no Brasil, e condicionando sua formação, formas de organização
de famílias extrapatriarcais, extracatólicas que o sociólogo não tem,
entretanto, o direito de confundir com prostituição e promiscuidade. Várias
delas parecem ter aqui se desenvolvido como resultado de influência africana,
isto é, como reflexos, em nossa sociedade compósita, de sistemas morais e
religiosos diversos do lusitano-católico, mas de modo nenhum imorais para
grande número de seus praticantes” (Global, 2004, p.130).
Não obstante a clareza do discurso freyreano acima bem
ilustrada, questiono-me se há realmente problemas científicos nesse clássico da
sociologia nacional ou se as críticas que leio não passam de má vontade por
parte de alguns estudiosos mais interessados em propagar mitos raciais. Como diria
a socióloga Cynthia Sarti, Freyre desperta uma “apreensão” no meio das ciências
sociais; apreensão, complemento, causada pelo vigoroso painel que expõe das
relações sociais, culturais, étnicas e econômicas, impedindo a construção do
mito racial inverso àquele que se culpa Freyre. E o ex-presidente, em coro, afirma
ser a obra em discussão uma construção mistificadora, adjetivo posto garrido de
sofisticações que ainda assim não esconde a dureza da crítica, haja vista a
desconexão óbvia, conforme o fragmento exposto, entre a obra e o pensamento dos
que sofreram do “mal estar” por ela causado.
A obra de Freyre ainda carece de crítica mais bem
fundamentada. Talvez o tempo e a maturação de seu conteúdo entre os estudiosos
permitam uma análise menos ideológica e mais racional. Culpá-lo de mistificar as
diferentes participações étnicas na formação socioeconômica brasileira,
baseando-se apenas num desejo nada científico de criar situações que os fatos
históricos não corroboram, é justamente mistificar, num sentido mais preciso. É
fato que não tenho pendores de Teseu, mas obrigar Freyre a deitar no leito de Procusto
é, no mínimo, uma injustiça intelectual.
Acabou o café. Fechei o livro. Paguei a conta. Fui-me
embora. Em casa terei boa leitura garantida e uma discussão solitária a travar
com um ex-presidente.