Artigo apresentado no XXI Congresso
Espírita Pan-Americano, ocorrido em Santos, SP, entre os dias 5 e 9 de
setembro de 2012.
Autor: Sergio Mauricio
Pinto
INTRODUÇÃO
A
ciência espírita seria, segundo Kardec, uma ciência que trata da natureza,
origem e destino dos espíritos, bem como de suas relações com o mundo corporal,
mas essa proposição não é suficiente para caracterizar uma ciência, pois seu
objeto –o espírito– não é passível de verificação empírica, além de pressupor,
não como hipótese, a sua existência. Para superar essa dificuldade, Kardec
afirma que a ciência propriamente dita é incompetente para se pronunciar sobre
a questão do espiritismo, propondo uma nova ciência. Ressalta-se daí um grave
problema, pois ao propor essa nova ciência, Kardec rompe com paradigmas
fundamentais da epistemologia, e não apenas propondo métodos que se adequassem
às especificidades de seu objeto, mas propondo um objeto que não seria da
alçada da “ciência propriamente dita”. Entretanto, uma especialidade científica
qualquer pode, sobre seu objeto verificável, definir critérios e metodologias
adequados à sua abordagem, sem romper com os princípios que fundamentam a
atividade prospectiva da ciência, sob o risco de se ter um simulacro de
ciência, uma pseudociência, em seu lugar. Portanto, para que se possa um dia
falar em verdadeira ciência espírita, é preciso que os pesquisadores
interessados no tema superem a abordagem epistêmica kardecista, abandonando-a
por completo, e proponham nova definição do objeto estudado e sua metodologia
associada.
Não
se pretende, nesse texto, propor novo método de pesquisa para a ciência
espírita, apesar da especificação clara de seu objeto. O objetivo principal é
defender a ideia de superação e negação do pensamento kardecista, propondo um
espiritismo científico que se afaste por completo do pensamento original de
Kardec: um espiritismo não kardecista.
CIÊNCIA
A
ciência, como hoje conhecida, é uma construção gnosiológica moderna, e não se
confunde com a generalidade do conhecimento humano, que incorpora outras tantas
produções culturais como a filosofia, a arte, a religião etc.
Nos
primórdios da discussão gnosiológica, no mundo grego dos séculos VII e VI a.C.,
os primeiros pensadores já delineavam uma forma de conhecimento que buscava
compreender a natureza por meio da observação e do uso da lógica[1], características
precursoras daquilo que se estabeleceria posteriormente como ciência.
Como
um dos produtos socioculturais das transformações político-econômicas ocorridas
na transição do sistema de produção feudal para o capitalismo, que marca na
história a mudança de eras, da medieval para a moderna, a ciência possui
características que a distinguem das demais instâncias do conhecimento e a
posicionam de forma clara como um saber essencialmente objetivo, experimental e
metódico.
Sua
objetividade é caracterizada pela mudança moderna de paradigma na construção
gnosiológica, que passa a ter o objeto como centro estruturante do
conhecimento, relegando ao sujeito o papel de observador, compilador e
sistematizador das informações oriundas do objeto de estudo.O objeto deve
caracterizar-se como “perfeitamente observável, quantificável, purificado de
qualquer referência à experiência vivida, a significações, memórias,
interpretações incontroláveis”[2]. Não
se pretende, obviamente, dissimular o papel da subjetividade na elaboração
científica, que se apresenta em todas as etapas acima e cria, ao próprio
pesquisador, dificuldades para o alcance da objetividade pretendida, seja por
conta de suas crenças pessoais ou do contexto cultural em que vive. Não
obstante o comprometimento da atuação objetiva por meio de um único indivíduo,
ou grupo cultural similar, a intersubjetividade, que é a análise dos estudos
feitos através de outros indivíduos ou grupos em contextos diversos, a conhecida
revisão por pares, garante a objetividade pretendida, pois consegue superar as
armadilhas da subjetividade vividas por homens ou grupos isolados.
A
experiência é a pedra angular do conhecimento científico. Todas as hipóteses
jamais passarão disso se não forem corroboradas por experimentos que demonstrem
sua pertinência. Qualquer construção de conhecimento que não possua
fundamentação empírica não poderá se classificar como uma ciência. O fato
empírico é a evidência objetiva duma ciência. Aqui se pode também questionar a
objetividade do fato já que sua observação submete-se ao olhar do sujeito,como
o fazem alguns pensadores da epistemologia e da linguagem, argumentando de
forma correta sobre a falta de passividade da observação empírica, afinal “uma
observação é uma interpretação”[3],
ratificando a ideia comtiana de que “se de um lado toda teoria positiva deve-se
necessariamente fundar-se sobre observações, é igualmente perceptível, de
outro, que, para entregar-se à observação, nosso espírito precisa de uma teoria
qualquer”[4]; entretanto,
mais uma vez, é a intersubjetividade que a garantirá. Destarte, é necessário
que o objeto a ser perscrutado pelo pesquisador seja passível de verificação
empírica, caso contrário não se poderá falar em ciência.
Apesar
de o fato empírico ser a base do conhecimento científico, o método é a maneira
de garantir a coerência das informações observadas. Ou, no dizer de Poincaré,
“fazemos ciência com os fatos assim como uma casa é feita com tijolos; mas uma
acumulação de fatos não é ciência assim como um conjunto de tijolos não é uma
casa”[5]. O
método é o que faz um conjunto de fatos observados tornar-se conhecimento
científico, pois é o método científico que estipula um conjunto de regras e
técnicas com base nas quais devem ser feitos os estudos que se proponham científicos. Elaborando
de outra forma, “a entrada, quantitativamente prolífica, gera uma saída
organizada e composta por interpretações que se destacam, entre outras coisas,
pela capacidade de unificar o que estava disperso na experiência”[6], e
é o método esse processo intermediário que transforma entradas factuais em
saída do saber.
Rizzini[7] sugere
uma lista de nove características associadas ao conhecimento científico, que
ressaltam e completam as acima citadas. Dentre elas, pode-se citar como
complemento a que identifica a ciência como uma construção contínua e que,
portanto, suas assertivas sempre são parciais e efêmeras. Pode-se, nesse
sentido, dizer também que “a verdade científica muitas vezes é concebida como a
meta de um trabalho científico, ‘assíntota’ poderia ser a melhor palavra, já
que na ciência nenhuma certeza é irrefutável ou além do alcance das críticas”[8],
ou seja, o conhecimento científico é sempre assintótico, aproximativo, nunca
definitivo.
KARDEC
E A CIÊNCIA
Allan
Kardec, o sistematizador do espiritismo, quis propor uma nova ciência: a
ciência espírita. E essa ciência, o espiritismo, teria por objeto a natureza
dos espíritos, sua origem e seu destino, além das suas relações com o mundo
físico[9]. Além
disso, essa ciência espírita conteria “duas partes: uma experimental, sobre as
manifestações em geral; outra filosófica, sobre as manifestações inteligentes”[10].
Ciente
das dificuldades epistemológicas que sua proposta enfrentaria, argumentou que
essa nova ciência deveria pautar-se por paradigmas bem diversos daqueles que
forjaram a ciência desde seus primórdios no Renascimento, e afirma: “A ciência
propriamente dita, como ciência, é incompetente para se pronunciar sobre a
questão do espiritismo: não lhe cabe ocupar-se do assunto e seu pronunciamento
a respeito, qualquer que seja, favorável ou não, nenhum peso teria.”[11]
O
rompimento kardecista com os fundamentos do conhecimento científico, propondo
uma “nova ciência”, apenas ressalta o que já se faz claro: a proposta de Kardec
em nada pode ser equiparada ao conhecimento construído pela ciência. E não é a
classificação da ciência como “ciência materialista” que conseguirá superar o
imbróglio epistemológico construído pelo fundador da doutrina espírita, haja
vista que toda ciência, por definição, deverá amparar-se pela verificação
factual de suas hipóteses e, portanto, necessariamente ligada à realidade empírica
e material.
Para
diferenciar sua proposta científica, Kardec adjetiva a ciência de várias
formas: “ciência propriamente dita”[12],
“ciência material”[13], “ciência
comum”[14], “ciência
ordinária”[15],
“ciência positiva”[16], “ciências
exatas”[17], dentre
outras. No entanto, o problema da classificação duma espécie de conhecimento
como científico esbarra nas premissas já tratadas: objeto, empiria e método; e
se a proposição do novo conteúdo gnosiológico não se lhes consegue adequar, a
conclusão é única: não se trata de ciência, pois não há uma “ciência
propriamente dita” e outro tipo de ciência; ou se é ciência, ou não se é. E
isso não desmerece nenhum outro tipo de conhecimento em comparação ao
conhecimento científico, apenas os classifica, evitando-se a confusão teórica
que acabou por se perceber na proposta epistêmica kardecista. Assim, a
filosofia e a arte não são menores por não serem ciência e, da mesma forma que a
ciência não pretende ser arte, a filosofia não é ciência.
A
proposta epistêmica de Kardec consegue ferir todas as premissas do conhecimento
científico: o objeto sugerido não é um objeto propriamente científico; a
experiência não caracteriza o objeto especificado; e o método é inconsistente e
sem validade demonstrativa.
Das
três características basilares da ciência acima apresentadas, inicialmente
discute-se a especificação do objeto na doutrina kardecista, buscando
identificar seus problemas em relação ao paradigma científico. O objeto é
aquilo que melhor caracteriza uma especialidade científica qualquer. A biologia
tem como objeto todos os fenômenos que se relacionam com a vida e suas
consequências; a química trata da matéria, sua estrutura e propriedades; a
sociologia debruça-se sobre as relações humanas em sociedade; e assim se dá
para todos os ramos da ciência. É interessante notar que em todas essas
ciências particulares o objeto é empírico, ou seja, passível de verificações
factuais a partir de metodologias específicas adequadas a cada objeto. As
especialidades científicas conseguem “fazer falar”[18]
seus respectivos objetos.
O
objeto a ser perscrutado pela nova ciência espírita trataria, segundo seu autor,
“da natureza, da origem e do destino dos espíritos, e das suas relações com o
mundo corporal”[19],
em suma, o objeto dessa ciência seria o espírito. E ante qualquer
questionamento sobre a possibilidade empírica do objeto proposto, Kardec
assevera que “a dúvida, no que se refere à existência dos espíritos, tem como
causa primeira a ignorância sobre sua verdadeira natureza” e que, ao determinar
sua nova ciência, “tomamos, portanto, nosso ponto de partida na existência, na
sobrevivência e na individualidade da alma”[20].
Quando
pretende tomar como ponto de partida a existência do espírito, a fim de usá-lo
como objeto de investigação sem que haja o amparo factual necessário que lhe assegure
essa opção, Kardec utiliza de recurso dogmático incompatível com o que se
depreende do conhecimento científico. Afinal, não há demonstrações objetivas da
existência de espíritos, pois, em verdade, os espíritos seriam uma hipótese a
ser verificada, se possível, do fenômeno observado por Kardec e por tantos
outros, jamais um “ponto de partida”.
Uma
ciência deve pautar-se pelo exame dos fenômenos observados, seu objeto, por
meio de experimentos orientados por métodos rigorosos que sustentem alguma
garantia demonstrativa das hipóteses formuladas. No caso espírita, o fenômeno
observado não é o espírito, que se enquadraria então não como objeto, mas como
hipótese daquilo que se pesquisa.
Todos
os relatos trazidos por Kardec sustentam essa afirmação, pois em nenhum momento
observou-se o objeto pretendido, mas manifestações de indivíduos vivos que se
diziam, ou se entendia, intermediários de seres imateriais, no caso das
manifestações classificadas como “inteligentes”; ou ainda manifestações de
movimentos e surgimentos de objetos que não se enquadravam nos cânones da
ciência da época, como exemplificam as famosas “mesas girantes”, no caso dos
fenômenos tidos como “físicos”.
Nesse
segundo momento, discute-se a experiência, outra característica fundante da
ciência, e suas relações com as propostas de Kardec.
O
mesmo se pode analisar acerca dos experimentos propostos como norteadores do
espiritismo prático, pois para Kardec, tratando dos fenômenos acima citados, “esses
fatos, nós os encontramos no fenômeno das manifestações espíritas, que são,
assim, a prova patente da existência e da sobrevivência da alma”[21].
Afirmação compatível com a presunção dogmática do objeto de estudo, já que não
há experiência possível que demonstre de forma patente a existência de
espíritos, ou qualquer outro objeto que não se deixe observar.
As
manifestações estudadas pela ciência proposta por Allan Kardec não caracterizam
o objeto pretendido, pois as hipóteses que delas advêm podem ser inúmeras, a
depender do tipo verificado, se “inteligente” ou “física”. Manifestações
“inteligentes” podem e são estudadas por outras especialidades científicas, que
propõem hipóteses mais coerentes com o fenômeno observado, haja vista não
lançarem mão de proposições imateriais para a explicação desses fatos, que
caracteriza o princípio lógico da navalha de Ockham. Quanto às manifestações
“físicas”, saltam aos olhos duas coisas, no mínimo, interessantes: primeiro, é
um fenômeno que, após sua explosão social no oitocentos, tornou-se muito raro
de ser observado, o que não passou desapercebido por Beloff: “a dura realidade
é que não há mais nenhuma Palladino”[22];
e, segundo, grande parte daqueles fenômenos relatados por pesquisadores do
século XIX foi refutada como fraude e outra parte desses relatos carece de
metodologia que ampare qualquer conclusão isenta de sectarismo ideológico.
Como
exemplo da segunda assertiva, um dos mais famosos objetos de estudo do século
XIX, a italiana Eusapia Palladino, investigada por quase todos os grandes
pesquisadores desse tipo de fenômeno na época, como Charles Richet, Alexandre Aksakof,
Cesare Lombroso, Oliver Lodge, Frederic Myers, Julijan Ochorowicz, e até mesmo o
casal Curie, dentre outros, “foi surpreendida em flagrante delito de trapaça”[23]
por Richard Hodgson, em experimentos sob seu controle em 1895, quando produzia
os impressionantes fenômenos que a tornaram tão conhecida. Fato que foi também
anotado por Lombroso[24],
ao informar que em Gênova, Eusapia Palladino recorreu a truques, supostamente obedecendo
a ordens de um espírito.
Exemplificando
também a falta de sustentação metodológica da maioria dos relatos da época,
cita-se Russel Wallace, que ao descrever um fenômeno de transe magnético por
ele produzido alega:
Produzi
o estado de transe em dois ou três garotos, de 12 a 16 anos de idade, com
grande facilidade e pude me assegurar que era genuíno. Em primeiro lugar, pelo
giro dos olhos em suas órbitas, de tal forma que a pupila não era vista quando
as pálpebras eram levantadas. Em segundo, pela mudança característica da
fisionomia. E em terceiro, pela prontidão com que eu podia produzir catalepsia
e perda de sensibilidade em qualquer parte do corpo.[25]
É
evidente que as formas de reconhecer a legitimidade do fenômeno pelo famoso
pesquisador, coautor da teoria evolucionista, não asseguram aquilo que afirma,
carecendo de maiores detalhamentos metodológicos.
Também
William Crookes, conhecido cientista inglês, descreveu uma experiência com a
inglesa Florence Cook, ao ver o espectro chamado de Katie King:
Confesso
que a figura era surpreendente na sua aparência de vida e de realidade, e tanto
quanto eu podia ver, à luz um pouco fraca, os seus traços assemelhavam-se aos
da Srta. Cook; mas, entretanto, a prova positiva, dada por um dos meus
sentidos, pois que o suspiro vinha da Srta. Cook, no gabinete, enquanto a
figura estava fora dele, esta prova é muito forte para ser destruída por
simples suposição do contrário, mesmo bem sustentada.[26]
Interessante
perceber que, apesar de os traços do espectro Katie King serem semelhantes aos
da Srta. Cook e de a luz estar fraca, conforme seu próprio relato, Crookes
prefere confiar no suspiro que cria vir de dentro do gabinete, achando tal
evidência “muito forte para ser destruída por simples suposição do contrário”, o
que chamou noutra correspondência de “a prova cabal”[27].
Discutidos
os dois primeiros aspectos, parte-se nesse ponto à discussão da terceira
característica do conhecimento científico, o método, e suas relações com o
pensamento kardecista.
Retomando
Kardec, salienta-se nesse ponto o problema do método na elaboração de seus
estudos e de suas obras. E é o próprio Kardec, em seus textos póstumos, que
mostra os caminhos que percorreu até a conclusão daquela que seria a obra
capital da sua doutrina espírita: O livro
dos espíritos. Relata que seus primeiros contatos com o tipo de fenômeno
que motivaria a proposta duma ciência espírita ocorreram a partir de maio de
1855, em reuniões na casa da Sra. Plainemaison, onde presenciou pela primeira
vez os fatos conhecidos como “mesas girantes” e a escrita em ardósia.
Daí
passou a frequentar reuniões semanais na casa da família Baudin, que contavam
com a presença de duas jovens sensitivas, as senhoritas Baudin, que escreviam
em ardósia por meio duma cesta carrapeta, artefato usado para escrever textos
com o auxílio de duas pessoas. Nessas reuniões que Kardec afirma ter começado
seus estudos sérios, levando às sensitivas questões que envolviam filosofia,
psicologia e espiritualidade. Com o crescimento do volume de material
disponível, resolvera, ainda em 1855, elaborar um livro que contivesse aqueles
conhecimentos.
Em
1856, passou também a frequentar as reuniões na casa do Sr. Roustan, que tinha
como sensitiva a Srta. Japhet, uma sonâmbula, que usava a cesta de bico como
forma de comunicação escrita. Afirma Kardec que, nesse momento, a maior parte
do trabalho a que se propusera já se concluíra e que, a partir de então, usaria
as reuniões que frequentava para revisar seu trabalho. Adita que além das
jovens Baudin e da Srta. Japhet, Kardec lançou mão de alguns outros poucos sensitivos,
de forma eventual, conforme se apresentava alguma oportunidade, para realizar a
verificação de seus estudos e concluir sua obra. Segundo o próprio Kardec, “foi
assim que mais de dez médiuns prestaram sua assistência para este trabalho”[28].
Fica
evidente que a obra kardecista foi praticamente elaborada com o concurso de
apenas três sensitivas: as duas jovens Baudin e a Srta. Japhet. Os demais, que somaram
cerca de uma dezena, como diz o autor, foram consultados, quando se apresentava
uma ocasião para tal, buscando corroborar questões ou esclarecer aquelas mais
complexas.
Problemas
metodológicos se destacam no relato histórico de Kardec. Primeiro, a quantidade
de sensitivos usados para a elaboração de sua obra é pequena, mesmo que seu
trabalho intelectual que tratou de comparar e fundir respostas, coordená-las e
classificá-las, tenha conseguido superar muitas dificuldades das experiências vividas
nas reuniões descritas. Grosso modo,
pode-se afirmar que todo o trabalho de Kardec que resultou na primeira edição
de O livro dos espíritos se resume a
observações sistemáticas de três sensitivas e observações eventuais de outros
dez. Enfim, para uma proposta científica, que não prescinde de observações que
garantam a adequada aplicação da indução, não parece que o tamanho da amostra
seja significativo para a consecução de qualquer conclusão acerca do objeto
estudado.
As
sensitivas, ou seus objetos de observação, eram jovens, francesas e de
determinado nível social e cultural. Ao menos as três que foram fundamentais no
trabalho de Kardec e são citadas em seus relatos. Para se propor alguma
conclusão válida não apenas nesse contexto específico, seria necessário que
mais sensitivos fossem observados, e de preferência com variedade de
características humanas como faixa etária, sexo, nível social e cultural, crença,
nacionalidade etc. Nesse ponto se poderia perguntar se um sensitivo observado fosse
árabe, muçulmano, homem e velho, se as respostas obtidas por Kardec seriam as
mesmas.
Segundo,
deve-se também ressaltar a questão da intersubjetividade, que é garantidora da
objetividade científica. Não há, no período de observação, relatos
significativos de outros estudiosos que se debruçaram nessas questões, e os
poucos que o fizeram e chegaram a conclusões mesmo que pouco diferentes foram
refutados por Kardec como formadores de “sistemas contraditórios” que tenderiam
a desaparecer, “pois que a unidade se faria”[29].
A busca dessa unidade também inviabilizou a proposta cientificista kardecista,
já que impediu a proposição de hipóteses divergentes, como se dá normalmente em
qualquer construção epistêmica. É a observação amparada por metodologia
rigorosa que se coloca como juiz das hipóteses, corroborando-as ou
refutando-as.
Um
exemplo que se pode dar sobre esse problema são os comentários de Kardec sobre
a obra de J.-B. Roustaing, Os quatro
evangelhos. Kardec, cuidadoso, não a aprova nem a desaprova, mas observa
que as alegações do autor “até mais ampla confirmação não poderiam ser
consideradas como partes integrantes da doutrina espírita”[30].
Ainda
sobre o método kardecista, outro ponto interessante é o que é ele chama de
controle universal do ensinamento dos espíritos, detalhado na introdução da obra
O evangelho segundo o espiritismo. Em
suma, podem-se enumerar duas etapas desse método de estudos espíritas: a
avaliação do bom senso e a concordância dos ensinamentos dos espíritos. Em
relação ao primeiro ponto, é o próprio Kardec quem observa os problemas
inerentes à confiança no bom senso: “Esse controle, porém, em muitos casos é
incompleto, por causa da insuficiência de conhecimentos de certas pessoas, e da
tendência de muitos em considerar, como único juiz da verdade, o seu próprio
julgamento”[31].Pode-se
também acrescer a clássica introdução do Discurso
sobre o método, do pensador francês René Descartes, que vaticina: “O bom
senso é a coisa mais bem dividida no mundo, pois cada um se julga tão bem
dotado dele que ainda os mais difíceis de serem satisfeitos em outras coisas
não costumam querê-lo mais do que têm”[32].
Essa crítica cartesiana à evocação do bom senso em prejuízo do uso do método racional
é bem conhecida para ser ainda trazida por Kardec como valor epistemológico.
Para
superar esse obstáculo na busca do conhecimento sobre a natureza dos espíritos,
Kardec lança mão da opinião da maioria, considerando-a como baliza para a
consecução do bom senso, afirmando que aqueles que não têm confiança plena em
si mesmos “aceitam a opinião do maior número de pessoas, a opinião da maioria é
o seu guia”[33]
e que esse deve ser o caminho a se seguir na relação mantida com os espíritos,
completando que “seria tão ilógico”[34] não
seguir essa premissa.
Faz-se
necessária nova reflexão sobre essa escolha metodológica kardecista, pois a
opinião da maioria jamais será garantia do conhecimento científico. Aliás,
retomando Descartes, diz o filósofo racionalista: “a pluralidade dos votos não
é prova que tenha algum valor para as verdades um tanto difíceis de descobrir”[35];
afinal, não se trata de democracia ou uma escolha cultural qualquer, mas de
conhecimento científico. Assim, a se usar a metodologia proposta por Kardec que
valora epistemologicamente a opinião da maioria, dever-se-ia lembrar, apenas
como exemplo ilustrativo, que em certo momento da história, antes do período
renascentista, a maioria absoluta dos homens considerava a Terra plana. E, como
complemento, que uma parte significativa da sociedade contemporânea prefere
crer em mitos milenares a aceitar as evidências factuais do mecanismo da
seleção natural que forjou as espécies hoje existentes, incluindo o homo sapiens.
Quanto
ao segundo ponto, a concordância dos ensinamentos dos espíritos, explica Kardec:
“A única garantia séria do ensinamento dos espíritos está na concordância que
existe entre as revelações feitas espontaneamente, por intermédio de um grande
número de médiuns estranhos uns aos outros, e em diversos lugares”[36].
Volta-se
às questões discutidas anteriormente, pois as “revelações”, como diz Kardec, não
demonstram o objeto pretendido nem são respostas a uma única hipótese. Não
obstante se destacar a importância desses pontos cruciais na frágil construção
epistemológica kardecista, parte-se para uma análise interna de seus
pressupostos metodológicos, evidenciando os problemas inerentes ao seu uso.
O
que, parece, pretendeu Kardec foi atingir a validade do conhecimento construído
a partir do mecanismo da multiplicidade das comunicações, alternando médiuns e
garantindo seu isolamento uns dos outros, evitando-se a influência mútua de
suas respostas às questões propostas. Seria, então, a intersubjetividade
espiritual o método validador do saber espírita. A falha que se apresenta na
sugestão kardecista é que o objeto de estudos não tem valor epistêmico, pois as
generalizações induzidas a partir de suas análises pressupõem o objeto espírito
como verdade, sem considerar outras hipóteses possíveis. Mas essa análise já
foi feita anteriormente.
Outros
pontos destacam-se ainda dessa metodologia: o primeiro, como se vê na descrição
kardecista do processo de elaboração de O
livro dos espíritos, contida em Obras
póstumas, apenas poucos sensitivos foram consultados, sendo que a maior
parte da obra foi elaborada a partir das respostas produzidas por três jovens.
Assim, parece que o método proposto foi cobrado de outros que tentaram produzir
saberes espíritas, mas não foi usado de forma rigorosa por seu proponente.
Poder-se-ia argumentar, em favor da elaboração do espiritismo por Kardec, que
em O evangelho segundo o espiritismo
é dito que: “recebendo comunicações de quase mil centros espíritas sérios,
disseminados pelos diversos pontos do globo, temos condições de ver os
princípios sobre os quais essa concordância se estabelece”[37].
Entretanto, uma dúvida se apresenta: a que questiona a validade das
comunicações recebidas dos “quase mil centros”, já que tais relatos não foram
objeto de observação empírica do pesquisador durante seu processo de confecção,
mas que foram aceitas como evidências usando-se o argumento de autoridade
(“centros espíritas sérios”). Sabe-se que o critério de ajuizar evidências
apenas pela autoridade de quem as elabora não é um critério científico, pois a
metodologia da ciência não corrobora experimentos pela posição moral ou
intelectual de seu autor, e sim pela possibilidade de se reproduzir aquele
experimento, a partir do método descrito, por meio de equipes diversas, em
condições culturais diversas.
Sinteticamente,
não há garantias científicas sobre as comunicações recebidas por Kardec de
outros sensitivos longe de sua análise e verificação, relegando tais
comunicações a mera retórica desprovida de conteúdo epistêmico, não as podendo
considerar como dados no processo indutivo de elaboração de generalizações.
Afinal, não há como saber quantas e quais dessas inúmeras comunicações foram
produzidas dentro de condições controladas, ou não são simples opinião de
alguém travestida de comunicação espiritual, mesmo que se desconsidere a
possibilidade da má-fé.
O
segundo ponto refere-se à necessidade de existirem revelações espontâneas
oriundas de sensitivos mutuamente desconhecidos. O desconhecimento mútuo entre
sensitivos não garante o desconhecimento do conteúdo elaborado, pois,
provavelmente, esses indivíduos em questão, já que os centros que participavam
mantinham contato regular com Kardec, conheciam a obra kardecista até então produzida
e acompanhavam as novidades divulgadas. Seria difícil para esses sensitivos,
conhecendo a opinião kardecista expressada em seus textos, emitir e enviar
opiniões e elucubrações que, de alguma forma, ferissem aquilo que Kardec
propunha como doutrina espírita, pois, segundo seu credo, “o princípio da
concordância é ainda uma garantia contra as alterações que o espiritismo poderia
sofrer pelas seitas que quisessem apoderar-se dele e acomodá-lo à sua vontade”[38].
Kardec
chega mesmo a desestimular a divulgação de qualquer ideia que não tenha sido
avalizada por seus estudos, solicitando prudência na sua publicação,
apresentando-as estritamente “como opiniões individuais,mais ou menos
prováveis, havendo, porém, em todos os casos, necessidade de confirmação”, pois
não se poderia pretender “colocar-se contra a corrente de ideias, estabelecida e
sancionada”[39].
O estabelecimento e a sanção das ideias eram atividades exclusivas de Allan
Kardec.
Ou
seja, apesar de afirmar o contrário, quando diz que “não nos colocamos, em
absoluto, como juiz supremo da verdade e nem dizemos a pessoa alguma: ‘acreditem em
tal coisa, pois estamos lhes dizendo’”[40],
Kardec coloca-se, afinal, como juiz único das questões a serem incorporadas ou
não às bases de sua nova doutrina, pois, ainda segundo ele, sua posição de
centralizador das comunicações impunha essa responsabilidade.Responsabilidade que
fora revelada por um dos seus espíritos comunicantes: “é o operário que
reconstrói o que foi demolido”[41].
Das
afirmações kardecistas sobre o princípio da concordância pode-se inferir que
qualquer opinião que contradissesse suas ilações seria julgada como
improcedente e qualificada como seita a buscar um cisma doutrinário. Essa
postura de se colocar como missionário dos espíritos, um profeta da
contemporaneidade, não condiz com suas alegações positivistas e impõe um
argumento de autoridade ineficaz para um diálogo científico.
Um
terceiro ponto deve ainda ser analisado: o conteúdo das comunicações trazidas
pelos sensitivos. Segue a reflexão de Kardec sobre a questão:
Sabe-se
que os espíritos, em consequência da diferença que existe entre seus
conhecimentos, estão longe de possuir toda a verdade; que não é dado a todos
penetrar certos mistérios; que o seu saber é proporcional à sua depuração; que
os espíritos comuns não sabem mais que os homens, podem até saber menos que
certos homens. Que há entre eles, assim como entre os homens, os presunçosos e
os falsos sábios, que creem saber o que na realidade não sabem; os
sistemáticos, que tomam suas ideias como sendo a verdade, e, enfim, os
espíritos de ordem mais elevada, aqueles completamente desmaterializados e que
são os únicos despojados das ideias e dos preconceitos terrenos. Porém,
sabe-se, também, que os espíritos enganadores não têm escrúpulos de se
utilizarem de nomes que não são os seus, para fazerem aceitar suas ideias
fantasiosas, quiméricas. Daí resulta que, para tudo aquilo que está fora do
ensino exclusivamente moral, as revelações que cada um pode obter têm um
caráter individual, sem autenticidade; que essas revelações devem ser
consideradas como opiniões pessoais deste ou daquele espírito, e que seria uma
imprudência aceitá-las e promulgá-las levianamente como verdades absolutas.[42]
É
interessante notar que Kardec, em sua exposição metodológica sobre a autoridade
da doutrina espírita, afirma que as únicas revelações que podem ser alçadas à
categoria de “verdades absolutas” são aquelas que tratam do “ensino
exclusivamente moral”. Entretanto, uma leitura, mesmo que superficial, em suas
obras primaciais indica que seu conteúdo longe se encontra de ensinos
exclusivamente morais.
O livro dos espíritos,
por exemplo, que é a obra fundamental de todo o pensamento espírita, contém
diversas divagações acerca de questões teológicas, históricas, filosóficas e
até mesmo científicas, que em nada se assemelham a ensino moral. O livro dos médiuns contém um sem-número
de observações que se pretendem científicas. A gênese, sua última obra editada em vida, discute longamente
problemas científicos e teológicos. A única exceção talvez seja O evangelho segundo o espiritismo, que
contém praticamente apenas discussões de caráter moral, como explicado na sua
introdução.
O
critério usado por Kardec para a preparação de suas obras não foi o mesmo
recomendado na metodologia em discussão, direcionada aos curiosos e estudiosos
do espiritismo. Em A gênese, Kardec
redigiu longos capítulos acerca da astronomia e da geologia, nos quais analisa
a matéria e as leis físicas, a formação de planetas e estrelas, as eras
geológicas da Terra, a gênese da vida no planeta, dentre outros temas de
caráter filosófico-científico. E na introdução do livro afirma que “a sua
iniciativa pertence aos espíritos, ela, porém, não é formada da opinião pessoal
de cada um deles; ela não é, e nem pode ser, mais que o resultado do seu ensino
coletivo e concordante”[43].
Portanto, para o autor, todo o texto apresentado na referida obra foi submetido
à sua metodologia de concordância do ensino dos espíritos, o que deveria
garantir, segundo seu entendimento, a verdade nos conteúdos apresentados.
Entretanto,
a explicação apresentada em A gênese
para o movimento e a estrutura lunar[44]
não está correta; além disso, a defesa da geração espontânea da vida, que no
texto kardecista chega a afirmar que “o musgo, o líquen, o zoófito, o
infusório,os vermes intestinais e outros”[45]
ainda aparecem pelo mecanismo abiogenético, é algo plenamente superado pelo
conhecimento científico contemporâneo. Também O livro dos espíritos tem seus problemas científicos, como a mesma
defesa da geração espontânea, o surgimento da espécie humana e o entendimento
acerca dos cometas.
As
conclusões que se pode chegar a partir desses erros científicos apresentados em
seus livros é que, de acordo com o método da concordância do ensino dos
espíritos, aqueles que assessoraram Kardec em seu labor de produção do
espiritismo eram pouco afeitos às questões científicas e que a falha em não
seguir sua própria recomendação custou alguns problemas na elaboração de sua
obra, pois a incoerência entre a metodologia proposta e seu uso por Kardec é
explícita.
O
quarto, e último, ponto da crítica interna a ser examinado no método kardecista
é sua ideia de que a rápida propagação do pensamento espírita seria a prova
inconteste de sua vitalidade e seu conteúdo verdadeiro. Diz, de forma otimista,
o criador do método da concordância do ensino dos espíritos acerca do
crescimento do número de adeptos da sua doutrina: “Esse conjunto harmonioso já
se delineia. Ora, este século não passará sem que ele resplandeça em todo o
seu esplendor, de maneira a anular todas as incertezas”[46].
O
que se segue após a morte de Allan Kardec é um movimento contrário ao esperado
por ele. O espiritismo decresce rapidamente em França e chega ao final do
século XIX praticamente esquecido, lembrado apenas como uma febre curiosa
ocorrida durante o meado do referido século, quando muitos se divertiam com as
mesas girantes.O que se vê, mais uma vez, é o viés profético de Kardec que,
entusiasmado com o seu trabalho, não conseguiu realizar uma crítica mais aguda
às suas elaborações doutrinárias, pois considerava o espiritismo uma revelação
divina, do qual era o “missionário em chefe”[47], ao
invés de mera elucubração humana.
UMA
CIÊNCIA ESPÍRITA NÃO KARDECISTA
A
ciência espírita, como proposta por Kardec, com objeto e metodologia
inadequados, não conseguirá superar a crítica, correta e fundamentada, daqueles
que nela veem nada além do que um simulacro de ciência, uma pseudociência, a
disputar o mercado profícuo da fé dos espiritualistas interessados num
misticismo pouco elaborado. Ainda é uma ciência a ser construída.
Para
Carl G. Jung, por exemplo, que se dedicou sobremaneira ao estudo desse tipo de
fenômeno, com diversos textos publicados sobre o tema, numa de suas cartas ao
Dr. Fritz Blanke, em tom pesaroso, diz: “Infelizmente essas coisas ainda são
pouco pesquisadas. É assunto para os próximos séculos”[48].
Talvez se possa divergir de Jung e afirmar que tais coisas foram e são muito
estudadas. O que precisam é de melhor definição epistêmica.
Primeiramente
é preciso reelaborar o objeto proposto. Se se pretende fazer ciência,
esqueça-se o discurso sobre deus, provas de sua existência e seus atributos,
como aparecem na primeira parte de O
livro dos espíritos. Esse jamais será um tema da ciência, pois o objeto não
é passível de verificação empírica. Esse tema é exclusivo da filosofia e a
crença em deuses restrita ao campo da fé.
Abandone-se
a proposição, já citada de O que é o
espiritismo, que sugere o objeto dessa nova ciência como tratando “da
natureza, da origem e do destino dos espíritos, e das suas relações com o mundo
corporal”. Espíritos não podem ser o objeto de pesquisa, mas uma das hipóteses
de estudos da ciência espírita, pois não há como “fazer falar” esse objeto, ou
seja, não há formas de se o alcançar por meio de experimentos e métodos
adequados, haja vista que as técnicas metódicas propostas por Kardec para tal
objeto mostraram-se incoerentes e ineficazes.
Que
objeto poderia, então, fundamentar uma ciência espírita? Aquilo que Kardec
chama de fenômeno mediúnico. E apenas isso.A objetividade desse fenômeno é
patente e sua pesquisa possibilitada por técnicas empíricas que satisfizessem as
necessidades das hipóteses elaboradas.
Esse
objeto, evidentemente, tem relações próximas com outras especialidades
científicas, como as das ciências humanas, pois envolve aspectos antropológicos,
psicológicos e sociológicos do fenômeno pesquisado, e não poderia abrir mão de
seu apoio e conhecimento, como o artigo de Almeida e Lotufo Neto[49],
que trata das relações entre mediunidade e distúrbios mentais, exemplifica bem
essa colaboração, sem aqui avalizar hipóteses e conclusões.
O
cuidado com as variáveis, evitando-se inserções espúrias de dados não
controlados e a sempre presente possibilidade de fraudes, deverá nortear o
caminho do pesquisador espírita, evitando-se os percalços vividos pelos grandes
experimentadores do passado, já citados anteriormente.
Aqui
se deve fazer breve análise sobre a linguagem utilizada na ciência espírita. O
termo mediúnico, usado amiúde por Kardec e tantos outros estudiosos do tema,
não é apropriado para qualificar o tipo de fenômeno a ser estudado pelo
espírita, pois carrega consigo forte carga ideológica e conteúdo hipotético, já
que a mediunidade pressupõe a existência de comunicação entre espíritos e
indivíduos, caindo-se no mesmo problema de definição de objeto que incorreu
Kardec. Da mesma forma, devem-se rejeitar outras qualificações como fenômenos parapsicológicos,
sobrenaturais ou espirituais, pois incorrem todos exatamente no mesmo problema.Na
falta de nomenclatura adequada para adjetivar essa classe de fenômenos, propõe-se,
apenas como sugestão, o resgate do uso da expressão cunhada por Charles Richet[50]:
fenômenos metapsíquicos.
O
objeto de estudo da metapsíquica é amplo e variado em suas manifestações,
Charles Richet[51]
dividiu-o em fenômenos objetivos e subjetivos, o que Kardec classificou de manifestações
mediúnicas de efeitos físicos e inteligentes. Os primeiros caracterizam-se por
ações de consequências físicas suscetíveis de mensuração instrumental e
percepção sensorial, como ruídos em móveis e paredes (raps), deslocamentos de objetos (apports), materialização de espectros etc.; os outros se
caracterizam pelos fenômenos psíquicos subjetivos, puramente intelectuais, como
a capacidade telepática, a pré-cognição, a xenoglossia, as comunicações ditas
mediúnicas, dentre outro sem-número de manifestações.
Quanto
ao método, o controle universal do ensinamento dos espíritos, com sua proposta
de concordância em relação ao conteúdo das comunicações recebidas, é inviável
como método científico, pois, como já analisado, além de não conseguir atingir o
objeto proposto originalmente, o espírito, já que observa o conteúdo da
comunicação e não o fenômeno em si, parte de pressupostos incompatíveis com o
necessário ceticismo científico.
Portanto,
propor para o avanço do conhecimento espírita apenas a aplicação do método
kardecista em nova etapa de observações sistemáticas seria persistir no mesmo
erro conceitual e impedir, de fato, o surgimento dessa ciência, que continuaria
sendo, mesmo renovada, nada além do que pseudociência.
O
controle universal do ensinamento dos espíritos, proposto por Kardec, deve ser
abandonado como metodologia científica e relegado exclusivamente a atividade de
caráter religioso-doutrinário.
CONSIDERAÇÕES
FINAIS
Sempre
que se fala em superar Kardec ou avançar além daquilo que foi por ele proposto,
uma miríade de vozes se levanta a defender seu legado e, empunhando a bandeira
da pureza doutrinária do espiritismo, classifica seus interlocutores de
cismáticos, banindo-os do diálogo cultural.
Tal
postura reflete um dogmatismo incompatível com o conhecimento científico e dele
mantém distância conceitual. E de nada adiantará a citação contínua de Kardec,
evocando a criação duma ciência especial, diferente da “ciência ordinária”,
porque não existem concessões na construção do conhecimento científico: é-se
ciência ou não.
Assim,
a doutrina espírita sufocou, e ainda sufoca, o surgimento duma verdadeira
ciência espírita, sem ranços dogmáticos ou vícios religiosos, pois a restrição à
critica do pensamento de Kardec é um fator que impede o florescimento desse
saber.
Poder-se-ia
comparar a obra de kardecista com a obra comtiana e traçar alguns paralelos
curiosos: primeiro, ambos, Comte e Kardec, foram contemporâneos e franceses;
segundo, propuseram em seus estudos uma nova ciência, Kardec o espiritismo e
Comte a sociologia; terceiro, ambos, a partir do conhecimento que construíram,
propuseram doutrinas de caráter religioso, Kardec a doutrina espírita e Comte a
igreja positivista.
A
partir desse ponto, começam as diferenças. As propostas científicas de Comte
foram abraçadas pelos estudiosos das ciências humanas, que não tiveram nenhum
problema, como caracteriza a boa postura científica, em discutir, negar,
ampliar e propor novos caminhos às bases científicas da sociologia. Esse enfrentamento
do pensamento comtiano foi capaz de gerar diversos novos grandes
sistematizadores da sociologia, como Durkheim e Weber. Quanto à sua proposta
doutrinária, a igreja positivista não passa hoje de curiosidade histórica, com
pouquíssimos adeptos.
Já
as propostas científicas de Kardec foram, por seus discípulos, impedidas de
qualquer revisão, crítica, negação, correção ou mesmo complementação, pois são
consideradas verdades absolutas reveladas por espíritos superiores
arregimentados pela própria divindade.
Dessa
forma, enquanto a proposta científica de Comte ganhou vida e se estabeleceu
como uma ciência humana, ao espiritismo restou ser apenas mais uma curiosidade religiosa
dentro da variedade das doutrinas espiritualistas.
Concluindo
com Kardec, “vê-se, portanto, que o espiritismo não é da alçada da ciência”[52].
Ao menos o espiritismo kardecista.
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[17] KARDEC, Allan. O que é o espiritismo: introdução ao
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[18] STENGERS,
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[51]______. ______.
[52] KARDEC, Allan. O livro dos espíritos: filosofia
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