Segue brevíssima análise do aspecto metodológico da obra
A crise da morte de Bozzano. Esse pequeno trabalho apresentei numa
palestra no Teatro Espírita Leopoldo Machado (Telma), em Salvador, onde
militava o saudoso Carlos Bernardo Loureiro. A análise é mais
extensa do que a aqui apresentada, mas busquei reduzir sobremaneira os
textos das citações e dos meus comentários, para que ficasse de mais
fácil leitura.
1. Metodologia proposta: análise comparada.
“[...]
material que se presta a ser examinado e analisado com fundamento na
sua consistência intrínseca, que lhe confere um grau notável de
probabilidade, da mesma forma que as narrações dos exploradores
africanos se prestam a ser analisadas e verificadas, com fundamento em
suas concordâncias..."
A comparação entre o material mediúnico analisado e "as narrações dos exploradores africanos"
é estranha: é óbvio que o próprio autor poderia ir à África e retornar
com suas próprias observações, atestando ou não aquilo que foi relatado
anteriormente como verdadeiro ou falso. O mesmo não se poderia dizer da
morte...
2. Ainda a metodologia: o ônus da prova.
“Ninguém
pode afirmar ou negar a priori. O fato de negar ou de lançar ao
ridículo as ‘revelações transcendentais’ equivale a pretender conhecer,
de modo certo, o mundo espiritual, o que constitui presunção indigna de
um céptico que raciocine...”
Da mesma forma que se pode
afirmar sem provas, apenas amparado por um discurso pseudocientífico,
poder-se-ia negar sem qualquer constrangimento. Mais há ainda algo mais
sério nessa afirmação que vilipendia uma premissa científica: o ônus da
prova é de quem propõe a hipótese. E isso, definitivamente, não foi
feito pelo autor...
3. Metodologia: os médiuns.
“Se
se chegasse a comprovar que um dos médiuns empregados ignorava
absolutamente as teorias espíritas (o que excluiria a hipótese de uma
colaboração subconsciente), seria conveniente experimentar com outros
médiuns, para se obterem informações sobre o mesmo assunto; e assim por
diante, sem que se estabelecessem relações entre eles.”
Médiuns
que desconhecessem "as teorias espíritas" e que não tivessem relações
entre si. Perfeito! Mas isso foi feito? Como são os exemplos trazidos
por Bozzano?
4. Metodologia: como foi na prática.
“A
coisa é teoricamente possível, mas de realização difícil, porque é raro
que um só pesquisador chegue a encontrar numerosos médiuns, de maneira a
poder levar a efeito uma empresa formidável como essa. Mais prático
era, pois, aproveitar o material imenso que se acumulou [...],
relativamente às ‘revelações transcendentais’, para empreender uma
seleção severa de todas as peças, classificando-as, analisando-as,
comparando-as, tendo o cuidado de colher informações sobre os
conhecimentos especiais de cada médium, no tocante às doutrinas
espíritas.”
Bem, aqui ele já começa a se desviar de sua proposta...
5. Metodologia: o corte metodológico.
“[...]
todos os fatos, que citarei, de defuntos que narram sua entrada no meio
espiritual são tirados de coleções de ‘revelações transcendentais’
publicadas na Inglaterra e nos Estados Unidos. “Por que –
perguntar-me-ão os leitores – esse exclusivismo puramente anglo-saxônio?
[...] é claro que, se os povos anglo-saxônios são os únicos que, até
hoje, hão mostrado saber apreciar o grande valor teórico e prático das
‘revelações transcendentais’, como são os únicos que a isso se
consagraram, empregando métodos racionais, não me restava outra coisa
senão tomar o material necessário onde o encontrava.”
Esse corte epistêmico será analisado com mais propriedade num comentário feito no décimo-quarto caso apresentado.
6. Os casos: primeiro.
“Extraio
este fato de uma obra intitulada Letters and Tracts on Spiritualism,
obra que contém os artigos e as monografias publicadas pelo juiz
Edmonds, de 1854 a 1874. Sabe-se que Edmonds era notável médium
psicógrafo, falante e vidente. Alguns meses depois da morte acidental de
seu confrade, o juiz Peckam, a quem ele muito estimava, [...]”
Um
juiz que era notável médium psicógrafo, falante e vidente? Não eram
para ser médiuns sem nenhum conhecimento sobre espiritualidade e sem
relações com outros?
7. Os casos: terceiro.
“Reproduzo
um último caso de data antiga, que extraio do livro do Dr. Wolfe,
Starling Facts in Modern Spiritualism (pág. 388). ‘Jim Nolan’, o
‘Espírito-guia’ do célebre médium Sr. Hollis, que disse [...]”
À
revelia do bobo erro na tradução feita pela FEB, pois não era Sr., mas
Sra., o médium Sra. Mary J. Hollis era experiente, rica, membro da
Igreja Episcopal e com excelente relações no meio espiritualista.
8. Os casos: quarto.
“[...]
um fato tirado da obra de Mrs. Jessie Platts, The Witness. Trata-se de
uma coleção de comunicações mediúnicas muito interessantes, obtidas
graças à mediunidade da própria Mrs. J. Platts, viúva do Rev. Charles
Platts, que teve a infelicidade de perder seus dois filhos na grande
guerra. As comunicações publicadas provêm do filho mais moço, Tiny,
rapaz de 18 anos apenas, morto quando combatia na frente francesa, em
abril de 1917, e que se comunicou psicograficamente, mercê da
mediunidade improvisada de sua mãe [...]”
“Termino lembrando que Mrs.
Jessie Platts foi levada a cogitar de pesquisas mediúnicas e a tentar
escrever automaticamente, pela morte de seus dois filhos na guerra. Ela,
pois, nada conhecia – ou muito pouco – das doutrinas espíritas e tudo
ignorava acerca do conteúdo das outras coleções de revelações
transcendentais.”
Mais ou menos. O médium Sra. Platts levou
mais de um ano entre a morte de seu filho Tiny, em 28/04/1917, e o
recebimento da primeira mensagem em 03/07/1918. E em seu livro ela
relata que durante esse período teve contato com as ditas doutrinas
espiritualistas, apesar de afirmar ter sido pouco contato.
9. Os casos: sexto.
“A
Sra. Duffey, que é de espírito muito cultivado, se tornou médium
escrevente e escreveu as mensagens de que se trata, quando apenas havia
pouco tempo que se interessava pelas pesquisas mediúnicas, quando, por
conseguinte, ainda nada lera, ou muito pouco, sobre doutrinas
espíritas.”
O médium Eliza B. Duffey, famosa feminista
estadunidense, autora de diversos livros sobre saúde e educação da
mulher, convertera-se um ano antes dessas comunicações ao espiritualismo
e participava de uma sociedade espiritualista, dando inclusive
palestras sobre o tema.
10. Os casos: nono.
“Tiro-o
do recente livro de mensagens transcendentais intitulado A Heretic in
Heaven. O médium-narrador é o Sr. Ernesto H. Peckham, conhecido pelas
suas pesquisas metapsíquicas, o mesmo que precedentemente escreveu o
belo volumezinho intitulado The Morrow of Death”
Conhecido por suas pesquisas metapsíquicas e já escrevera outra obra sobre o tema? Sem mais comentários...
11. Os casos: décimo-segundo.
“A
mãe do autor das cartas (morto aos 30 anos, em 1918) começa por dizer
que, não podendo consolar-se da morte de seu único filho, desejou pôr-se
mediunicamente em comunicação com ele. Para esse fim, aconselharam-lhe
fosse à Direção do British College of Psychical Science. Foi na sede
dessa importante instituição que ela chegou a experimentar
sucessivamente, com quatro dos melhores médiuns, [...] Por um deles –
uma senhora dotada de faculdade para a escrita mediúnica – foi que
recebeu do filho [...]”
Os melhores médiuns do centro de pesquisas! Sem mais comentários...
12. Os casos: décimo-quarto.
“Trata-se
de uma santa mãe que se comunica por intermédio de sua filha. Orna a
brochura o retrato da morta, cujos traços angélicos se harmonizam de
modo muito sugestivo com o conteúdo das mensagens, das quais se exala o
perfume celeste de uma bela alma, em suprema comunhão de amor com todos
os seres do Universo. É tão espontânea, tão natural a forma em que são
ditadas as mensagens, que sugere aos que as leem a intuitiva certeza da
origem, autenticamente transcendental, donde promanam.”
Ou seja, a certeza da origem das comunicações é dada pela forma "tão espontânea, tão natural" das mensagens. Muito científico...
13. Os casos: ainda o décimo-quarto.
“[...]
a hipótese ‘reencarnacionista’. Sabe-se que é o único ponto importante
em que se depara com um desacordo parcial nas mensagens dos Espíritos
que se comunicam: entre os povos latinos, eles afirmam constantemente a
realidade das vidas sucessivas, ao passo que, entre os povos
anglo-saxões, estão em desacordo, na proporção de dois terços que negam
mais ou menos claramente esta forma evolutiva do ser humano, e de um
terço que a afirma, de modo mais ou menos categórico. [...] Entretanto,
conforme já o fiz notar em outras obras, este contraste de opiniões,
relativamente a um problema insolúvel para os que o discutem – e, por
conseguinte, essencialmente metafísico – nada significa, pois que os
próprios Espíritos reconhecem que tudo ignoram a esse respeito e julgam
do assunto segundo suas mesmas aspirações pessoais.”
Os
relatos dos povos anglo-saxões sugerem, por cerca de 67%, que não existe
reencarnação! Isso é muito significativo! Mas o autor resolve o
problema dizendo que tudo não passa de discussão metafísica e que os
espíritos não sabem de tudo! Resumindo a argumentação do autor: se a
opinião do espírito serve para corroborar sua hipótese, ela é válida
como prova; se a opinião, mesmo de 67% dos relatos, é contrária, tudo
não passa de deficiências pessoais dos comunicantes. Não se pode negar
que ele, ao menos, é muito esperto...
Mas fica uma pulga na orelha: 67% dos relatos mediúnicos trazidos nos países anglo-saxões afirmam não existir reencarnação! Isso sugere que o contexto talvez seja mais importante nos relatos mediúnicos do que supõe a nossa vã espiritologia...
14. Os casos: décimo-quinto.
“As
mensagens mediúnicas que vamos reproduzir foram obtidas pela Sra.
Rambova na residência de seu pai, situada nos arredores de Nice, com o
auxílio do médium americano Jorge Benjamim Wehner, que também servia
frequentemente para a fundadora da Sociedade Teosófica [...]”
Servia frequentemente de médium? Sem mais comentários...
15. Conclusões.
“[...]
os informes que transcrevi deveriam bastar, para confirmação da grande
verdade que ressalta dos casos dos médiuns improvisados, inteiramente
ignorantes das doutrinas espíritas e que, não obstante, recebem
mensagens concordantes, em que todos os detalhes coincidem com as outras
narrações do mesmo gênero.”
Ops, o que eu perdi? Será que li outro livro ou o editor misturou a conclusão desse com a descrição de outro?
16. Ainda conclusões.
“Em primeiro lugar, cheguei a demonstrar incontestavelmente,
fundando-me em fatos, que as mensagens mediúnicas, em que os Espíritos
dos defuntos descrevem as fases por que passaram na crise da morte e as
circunstâncias em que fizeram sua entrada no meio espiritual, concordam
admiravelmente entre si, de maneira tal que nelas não se encontra uma só discordância absoluta com as afirmações dos outros Espíritos que se hão comunicado com os vivos.”
Das
duas, uma: ou eu sou um completo maluco que não consegue compreender um
texto rudimentar ou o autor acha que somos todos acríticos...